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Esperança como legado
A GRANDEZA E OS TALENTOS DO ATOR, PRODUTOR, DIRETOR E GESTOR CULTURAL SÉRGIO MAMBERTI DENTRO E FORA DOS PALCOS
Na arte e na vida, Sérgio Mamberti (1939-2021) trilhou, com maestria, distintos caminhos que o inseriram entre os artistas essenciais de seu tempo e de sua gente. Em mais de seis décadas de carreira, o ator, diretor, produtor, autor, artista plástico e gestor cultural construiu uma sólida trajetória que se confunde, por vezes, com alguns dos momentos emblemáticos do cinema, do teatro e da teledramaturgia do país. Engajado na política, deixou um legado único também como fomentador de políticas públicas culturais. Em cada passo reafirmava, convicto, a esperança no coletivo – e de que o melhor ainda estava por vir.
Nas palavras do professor do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Wanderley Martins, Mamberti destacava-se nas mais diferenciadas dramaturgias e experimentações desde a década de 1960. “No começo da sua carreira já brilhava com o Grupo Decisão, ao lado de Antônio Abujamra (1932-2015), em importantes releituras de clássicos adaptadas à contemporaneidade, como Antígone América”, explica.
O ator em registro feito para entrevista à Revista E, publicada em março de 2020 | Adriana Vichi
Ao lado de Paulo Villaça (1933-1992) e Ruthinéa de Moraes (1930-1998), deu voz ao universo de personagens marginalizados pela sociedade em Navalha na Carne, de Plínio Marcos (1935-1999), na qual interpretou o camareiro homossexual Veludo. O texto, de 1967, considerado subversivo pela ditadura militar, foi censurado. “Já a sua participação na estrondosa e avassaladora montagem de O Balcão, de Jean Genet (1910-1986), dirigida pelo argentino Victor García (1934-1982), foi uma das suas mais destacadas performances. O Juiz criado por ele evidencia um rigoroso preparo vocal”, analisa Martins, referindo-se à antológica montagem – cuja estreia aconteceu em dezembro de 1969, depois de muita dúvida sobre a viabilidade do projeto –, também estrelada, idealizada e produzida por Ruth Escobar (1935-2017).
Nascido em Santos, litoral paulista, Sérgio se formou na Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP) nos anos de 1960. A diversidade de experiências vividas na instituição – com colegas como Sylvio Zilber, Myriam Muniz (1931-2004), Silnei Siqueira (1934-2013) e Ilka Zanotto –, o rigor técnico e a disciplina proporcionados pelo curso o prepararam para o turbilhão cultural que, nas décadas seguintes, mudaria o padrão das encenações brasileiras.
ARTE DA GENEROSIDADE
“Sérgio Mamberti era um tipo de ator clássico, que conseguia imprimir verdade a qualquer personagem que interpretasse, o que fazia com um carisma nato. Ator generoso com os colegas com quem contracenava, ele acabava por sobressair justamente pela naturalidade com que exercia o ofício e pelo companheirismo com quem dividisse a cena com ele”, pontua o jornalista e membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) Miguel Arcanjo Prado. “Mamberti se apropriava de cada palavra, dando a ela infinitas possibilidades de significado, deixando cada texto que dizia mais profundo e poético”, completa.
Traços que se fazem notar tanto nas atuações marcantes para o grande público, como a do mordomo Eugênio na novela Vale Tudo (1988) ou a do carismático Dr. Victor Stradivarius da série infantil Castelo Rá-Tim-Bum (1994), quanto em alguns dos clássicos do cinema brasileiro – a exemplo de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, Toda Nudez Será Castigada (1973), dirigido por Arnaldo Jabor, e A Dama do Cine Shanghai (1988), de Guilherme de Almeida Prado.
A partir dos trabalhos na sétima arte nasceu a amizade com a atriz e diretora Helena Ignez, ícone do movimento Cinema Marginal. Conheceram-se no Rio de Janeiro, nos anos 1960, e seguiram amigos durante toda a vida. “O Sérgio era alegria, era amor. Havia uma enorme qualidade na elaboração dos personagens, resultado de muita dedicação ao ofício, ao atuar. Era essa a sua marca registrada”, lembra a atriz.
Helena testemunhou de perto uma das fases mais felizes da vida do amigo, ao ser madrinha de sua união, em 1964, com a atriz Vivian Mehr (1942-1980). Do matrimônio nasceram os filhos Duda, Carlos e Fabrício Mamberti. A prematura morte da companheira, aos 37 anos, deixou uma profunda cicatriz no artista. Em 1982, Sérgio conheceu Ednardo Torquato, com quem viveu por 37 anos. Juntos, adotaram a filha Daniele. Em 2019, experimentaria o luto mais uma vez, com a morte do companheiro. Essas e outras passagens da vida do ator estão presentes na biografia Sérgio Mamberti: Senhor do Meu Tempo, lançada pelas Edições Sesc São Paulo (leia Memórias luminosas).
POLÍTICAS CULTURAIS
Ativista político desde a juventude, Mamberti assumiu vários cargos do então Ministério da Cultura a partir dos anos 2000. Dedicou-se às secretarias de Artes Cênicas, Identidade e da Diversidade Cultural, e foi secretário de Políticas Culturais. Presidiu, ainda, a Fundação Nacional das Artes (Funarte) de 2008 a 2010.
Seu trabalho foi crucial para a criação de editais que descentralizaram a gestão da cultura, dando espaço para a diversidade existente no país. “Em sua gestão foi pensada uma dimensão política da cultura em três eixos: Simbólico (de criação), Direitos Culturais e Economia Criativa. Valorizou e incentivou o movimento dos povos indígenas, a Rede Cultural do Campo, a democratização das leis de incentivo e o Fundo Nacional de Cultura”, detalha o professor Wanderley Martins.
Para o ator e presidente do Instituto Inhotim, Antonio Grassi, que também ocupou a presidência da Funarte por dois mandatos (de 2003 a 2007 e 2011 a 2013), Mamberti foi fundamental na construção e na consolidação de políticas públicas para a cultura. “Mamberti incorporou ao trabalho a periferia, trouxe um novo olhar para a gestão cultural sem jamais perder a ternura, o que é muito difícil de ver na gestão pública. Ele tinha esse traço afetuoso, poético, sem radicalismos, como forma de lidar com as pessoas e as ideias, inclusive de quem discordava dele”, revela Grassi.
Nos palcos, seu último trabalho foi o espetáculo O Ovo de Ouro, que esteve em cartaz no teatro do Sesc Santo Amaro em 2019. Com direção de Ricardo Grasson e texto de Luccas Papp, a peça aborda a função dos comandos especiais formados por prisioneiros judeus selecionados para trabalhar nas câmaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial. A montagem evidenciava a disposição do então octogenário ator, que faz uma homenagem ao seu David, pai da falecida esposa Vivian, em colaborar com jovens talentos – Papp escreveu O Ovo de Ouro em 2014, aos 21 anos.
A bem-sucedida temporada foi um marco na carreira do incansável Mamberti, que atravessou a vida sempre vislumbrando novos destinos. A peça reestreou em outubro, no Sesc Vila Mariana, com Duda Mamberti, filho de Sérgio, fazendo o papel do pai, em uma homenagem ao ator.
Artista de seu tempo
SÉRGIO MAMBERTI PARTICIPOU DE 36 FILMES, 38 NOVELAS E CERCA DE 80 PRODUÇÕES TEATRAIS. CONHEÇA ALGUNS DOS SEUS TRABALHOS MARCANTES NO TEATRO, CINEMA E TELEVISÃO:
espetáculos
1964 O Inoportuno, de Harold Pinter. Direção: Antônio Abujamra
1968 Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Direção: Jairo Arco e Flexa
1969 O Balcão, de Jean Genet. Direção: Victor García
1975 Réveillon, de Flávio Márcio. Direção: Paulo José
1984 Hamlet, de William Shakespeare. Direção: Márcio Aurélio
1985 Tartufo, de Molière. Direção: José Possi Neto
1995 Pérola, de Mauro Rasi. Direção: Mauro Rasi
2015 Visitando o Sr. Green, de Jeff Baron. Direção: Cássio Scapin
2019 O Ovo de Ouro, de Luccas Papp. Direção: Ricardo Grasson
teledramaturgia
1970 As Pupilas do Senhor Reitor (Record TV)
1981 Brilhante (TV Globo)
1986 Dona Beija (Rede Manchete)
1988 Vale Tudo (TV Globo)
1990 Pantanal (Rede Manchete)
1993 Agosto (TV Globo)
1994 Castelo Rá-Tim-Bum (TV Cultura)
1997 Anjo Mau (TV Globo)
2011 O Astro (TV Globo)
filmes
1968 O Bandido da Luz Vermelha
Direção: Rogério Sganzerla
1973 Toda Nudez Será Castigada
Direção: Arnaldo Jabor
1982 Rio Babilônia
Direção: Neville de Almeida
1987 A Dama do Cine Shanghai
Direção: Guilherme de Almeida Prado
2000 Brava Gente Brasileira
Direção: Lúcia Murat
especiais
2009 Sala de Cinema – Sérgio Mamberti – SescTV
2020 Sérgio Mamberti em “Plínio Marcos, um Homem do Caminho” #EmCasaComSesc
2021 Leitura de “A Mosca Verde”, de Ed Anderson
Memórias luminosas
LIVRO CELEBRA A VIDA DE UM ARTISTA SÍMBOLO DE ENTUSIASMO E ESPERANÇA
Durante quatro meses, duas vezes por semana, o jornalista e escritor Dirceu Alves Jr. dirigia-se ao sobrado – repleto de livros, plantas e peças de artesanato – em que Sérgio Mamberti habitou grande parte de seus 82 anos, no bairro do Bixiga, na região central da capital paulista. O ano era 2018. Das extensas e minuciosas entrevistas colhidas dos encontros com o ator, nasceu a autobiografia Sérgio Mamberti: Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc São Paulo, 2020). Escrita a quatro mãos, a obra apresenta ao leitor, ao longo de 376 páginas, o homem alegre, festivo, “mas que enfrentou situações muito pesadas no decorrer da vida, muitas perdas de pessoas amadas, várias delas de forma seguida, com pouquíssimo tempo de intervalo”, conforme explica o autor.
No prólogo, a atriz e amiga Fernanda Montenegro escreve sobre o homenageado: “Nunca o vi sem a sagrada esperança ativa”. Os sentimentos de esperança e de resistência acompanham toda a obra, fazendo jus ao entusiasmo com que o ator encarou a existência até o fim da vida – encerrada no dia 3 de setembro, em decorrência de uma infecção nos pulmões. “Os momentos em que o Sérgio mais se emocionou foram aqueles sobre a morte do pai dele e, depois, a morte da Vivian, sua mulher”, comenta Dirceu.
Episódios curiosos, como sua vertente empreendedora, estão presentes no livro – Mamberti foi sócio de um restaurante no final dos anos 1990. A obra detalha, também, histórias saborosas, como sua incursão pelo movimento Desbunde, dos anos 1970, tema do capítulo Mergulho Lisérgico na Arte. “Ele era festivo, esperançoso, vibrante com tudo, com o trabalho, com o amor, com as descobertas, com novas oportunidades, e isso fazia dele uma pessoa luminosa. Ele acreditava que tudo sempre daria certo, que era preciso acreditar, tocar a bola para a frente e não se curvar diante das dificuldades”, enumera Dirceu Alves Jr.