Postado em
Luci Collin
PASSE
então decidiu ser sem relógios
e agora dorme com mouros e papalvos
e ouve trombetas e se quiser contrai escarlatina
e alimenta pombos nas fotografias dos turistas
e não depende de ponteiros
nem de aguaceiro ou de fresca
e tanto pode ser a velha renga a segurar sacolinhas
quanto o guarda noturno que espia vergonhas nuas
quanto o caracol abolido por falta de estiga
quanto as mãos instruídas que adivinham
cadências vulcânicas e gritos de anacronia
quanto a jovem crua e negligente
com aquilo que lhe escorre pelas coxas
quanto o vilão com cara de flandres
que apodrece em circunstância de bruma
quanto a menina antiquíssima que se fia
em angras e vaus e reticências
quanto o cardeal a abençoar sopa nenhuma
quanto a estátua movediça que cala e consente
quanto o helianto que acompanha a lua
quanto a boca que se esqueceu como é
que se mastiga
TEATRO DO MUNDO
o capricho maior é feito chuva de cinzas
na arritmia dos destinos
na fúria da terra que soterrou
cartas e futuros plenos
o livro de receitas e adão copulando
a onda inimaginável de imensa que
fez submergir o protopiano e talvez
toda a música e todo o grito
em torno do cio de um incêndio
o esto de um vesúvio
em letras exóticas o retrato do falso prócer
os dragões de bronze e de pó
de enormes gargantas e de esperas
nós e os eternos polegares que
demarcaram prefixos oxidados
monstros de história em quadrinhos
serpentes ao som sinfônico
as lendas em forma de perguntas
um pôster na parede explica
o céu de uma varsóvia
já no primeiro encontro as portas
abrem-se e os poetas saltam
e os plásticos e os pedaços
das conversas sem limites
esse agora é o sal exausto
de uma xangai mansa e cega
e as escadas são também esquecimento
tudo que é conjugável no passado
a história foge nalgum cavalo fátuo
porque tem seu próprio alfabeto
o homem sofre
o homem tem o olhar pequeno
e nega seu sol corroído
são exageros nunca hesitar
nunca suplicar por ideias
seus pés imensos seu rosto avariado
um jazz torto como dentes
abarrota o coração de uma matéria fosca
e aos lábios primitivos resta
sussurrar estrelas
PLANO CARTESIANO
amar sem ter
é paradoxo de tempo e espaço
é sismo sem magnitude
amar sem ver
amar sem nunca saber
é o oco do solilóquio
é o virtuosismo do mormaço
amar sem haver, sem nem refúgio nem regaço
o solipsismo do osso
o insosso do avatar
amar sem contemplar
amar sem abraço
é o aço do estoicismo
é esboço de amar, ameaço
amar sem abranger
é a armadilha da troça
bagaço de amar, sobrosso
amar sem ter vossa mercê
haver-se assim não se possa
amar sem ser
ACENDALHA
É imensa a vida
como nos conta a tinta sobre a tela
do quanto caducam os retratos
e os dedos que seguram este e outro cigarro
pelas noites uma esta fumaça misturada à prece
e às lembranças baldias e inaperfeiçoáveis
o susto no baile em que se vaga sem convite
e o resto o gosto engolido pela dança não solicitada
e o dançar-se apenas por dentro e o queimar-se
lento e insólito da donzela nunca favorecida
− quando a lâmina atinge o cepo
o algoz é o machado
então é isso:
é imensa a vida
são essas flores todas o que a mão pretende
e providencia regas e podas e mudas convictas
e se adoça a estação vindoura como doutrina enquanto que
em cada traço desenhado no negrume noites despencam
dias se reedificam e nascem nossos filhos loucos e
adormecidos ou sérios mas de voz ingênua
guardada e multiplicada noutro corpo
sustada e apreensiva noutro talhe
− a grama cresce e é preciso
amar as janelas
é isso:
as paisagens mudam e mudarão também
os traços da tela e o lapso dos filhos que deixamos
não vir − é quando o pincel chega ao maior rubro
e é o ar de novo e é a chuva devastadora
e a nossa ingratidão a deslembrar da seca
como nos contam as linhas fundas da pele
já que se percebe todo santo dia
que é a vida que vai no quadro e no escoadouro
que há o cansaço da espera e da crença
em receitas que nunca deram certo
esse fazer-se a cama de casal por séculos
mesmo quando já não há parelha alguma
então foi sempre isso:
esse tentar-se margear a vida a partir
dos cavacos catados para se fazer fogo
debruar a vida num jejum intérmino
entendê-la austera e inquebrantável
− no fim o que persiste em nos aquentar
é essa colcha que cerzimos lento
com os retalhos
das intempéries
LUCI COLLIN é escritora, tradutora e poeta, autora de mais de 20 obras. Entre elas: A Palavra Algo (2016), Rosa que Está (2019) – finalista do prêmio Jabuti 2020 na categoria Poesia –, A Árvore Todas (2020) e, a mais recente, o livro de contos Dedos Impermitidos (2021), todas elas lançadas pela Editora Iluminuras.