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Matérias da edição

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Luci Collin

Ilustrações: Paulo Sayeg
Ilustrações: Paulo Sayeg

PASSE

então decidiu ser sem relógios

e agora dorme com mouros e papalvos

e ouve trombetas e se quiser contrai escarlatina

e alimenta pombos nas fotografias dos turistas

e não depende de ponteiros

nem de aguaceiro ou de fresca

e tanto pode ser a velha renga a segurar sacolinhas

quanto o guarda noturno que espia vergonhas nuas

quanto o caracol abolido por falta de estiga

quanto as mãos instruídas que adivinham

cadências vulcânicas e gritos de anacronia

quanto a jovem crua e negligente

com aquilo que lhe escorre pelas coxas

quanto o vilão com cara de flandres

que apodrece em circunstância de bruma

quanto a menina antiquíssima que se fia

em angras e vaus e reticências

quanto o cardeal a abençoar sopa nenhuma

quanto a estátua movediça que cala e consente

quanto o helianto que acompanha a lua

quanto a boca que se esqueceu como é

que se mastiga

 

 

TEATRO DO MUNDO

o capricho maior é feito chuva de cinzas

na arritmia dos destinos

na fúria da terra que soterrou

cartas e futuros plenos

o livro de receitas e adão copulando

a onda inimaginável de imensa que

fez submergir o protopiano e talvez

toda a música e todo o grito

em torno do cio de um incêndio

o esto de um vesúvio

 

em letras exóticas o retrato do falso prócer

os dragões de bronze e de pó

de enormes gargantas e de esperas

nós e os eternos polegares que

demarcaram prefixos oxidados

monstros de história em quadrinhos

serpentes ao som sinfônico

as lendas em forma de perguntas

um pôster na parede explica

o céu de uma varsóvia

já no primeiro encontro as portas

abrem-se e os poetas saltam

e os plásticos e os pedaços

das conversas sem limites

esse agora é o sal exausto

de uma xangai mansa e cega

e as escadas são também esquecimento

tudo que é conjugável no passado

a história foge nalgum cavalo fátuo

porque tem seu próprio alfabeto

o homem sofre

o homem tem o olhar pequeno

e nega seu sol corroído

são exageros nunca hesitar

nunca suplicar por ideias

seus pés imensos seu rosto avariado

um jazz torto como dentes

abarrota o coração de uma matéria fosca

e aos lábios primitivos resta

sussurrar estrelas

 

 

PLANO CARTESIANO

amar sem ter

       é paradoxo de tempo e espaço

       é sismo sem magnitude

amar sem ver        

amar sem nunca saber

       é o oco do solilóquio

       é o virtuosismo do mormaço

amar sem haver, sem nem refúgio nem regaço

       o solipsismo do osso

       o insosso do avatar

amar sem contemplar

amar sem abraço

       é o aço do estoicismo

       é esboço de amar, ameaço

amar sem abranger

       é a armadilha da troça

       bagaço de amar, sobrosso

amar sem ter vossa mercê

       haver-se assim não se possa

amar sem ser

 

 

ACENDALHA

É imensa a vida

como nos conta a tinta sobre a tela

do quanto caducam os retratos

e os dedos que seguram este e outro cigarro

pelas noites uma esta fumaça misturada à prece

e às lembranças baldias e inaperfeiçoáveis

o susto no baile em que se vaga sem convite

e o resto o gosto engolido pela dança não solicitada

e o dançar-se apenas por dentro e o queimar-se

lento e insólito da donzela nunca favorecida

− quando a lâmina atinge o cepo

o algoz é o machado

então é isso:

é imensa a vida

são essas flores todas o que a mão pretende

e providencia regas e podas e mudas convictas

e se adoça a estação vindoura como doutrina enquanto que

em cada traço desenhado no negrume noites despencam

dias se reedificam e nascem nossos filhos loucos e

adormecidos ou sérios mas de voz ingênua

guardada e multiplicada noutro corpo

sustada e apreensiva noutro talhe

− a grama cresce e é preciso

amar as janelas

é isso:

as paisagens mudam e mudarão também

os traços da tela e o lapso dos filhos que deixamos

não vir − é quando o pincel chega ao maior rubro

e é o ar de novo e é a chuva devastadora

e a nossa ingratidão a deslembrar da seca

como nos contam as linhas fundas da pele

já que se percebe todo santo dia

que é a vida que vai no quadro e no escoadouro

que há o cansaço da espera e da crença

em receitas que nunca deram certo

esse fazer-se a cama de casal por séculos

mesmo quando já não há parelha alguma

então foi sempre isso:

esse tentar-se margear a vida a partir

dos cavacos catados para se fazer fogo

debruar a vida num jejum intérmino

entendê-la austera e inquebrantável

− no fim o que persiste em nos aquentar

é essa colcha que cerzimos lento

com os retalhos

das intempéries

 

 

LUCI COLLIN é escritora, tradutora e poeta, autora de mais de 20 obras. Entre elas: A Palavra Algo (2016), Rosa que Está (2019) – finalista do prêmio Jabuti 2020 na categoria Poesia –, A Árvore Todas (2020) e, a mais recente, o livro de contos Dedos Impermitidos (2021), todas elas lançadas pela Editora Iluminuras.

 

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