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Mariana Salomão Carrara

Ilustrações: Luyse Costa
Ilustrações: Luyse Costa

Qualquer coisa morta na cara


Bate com força as duas palmas no chão, o sinal para o cachorro bater também as suas patas em saltinhos extasiados e correr depois para o colo, ou quem sabe para cima da cabeça que o menino deita na grama com os olhos fechados esperando as lambidas minúsculas, o cachorro pequeno demais para alcançar o nariz deslizando pelo ombro as patas de trás enroscando na camiseta cambalhotas e o menino de novo bate com força as duas palmas no chão e o cachorro responde batendo as suas e vem depressa e o colo e a cabeça e o nariz.

O menino levanta e corre aos tropeços, o cachorro ao lado, são dois filhotes cambaleando ainda os primeiros passos, o menino pisando as plantas do jardim que para o cachorro é ainda uma floresta uma imensidão de galhos e sombras, e deitam os dois de novo, rolar e lamber o nariz, o menino lambe de volta e ri e cospe mas volta a lamber a língua do cachorro que é tão pequeno que tenta entrar dentro da boca do menino que engasga e ri e volta a bater as duas palmas no chão, agora na pedra molhada da chuva antiga que ele espalma e o cachorro bate as duas patas da frente no chão e torna a pular e cabeça e nariz e cambalhotas.

Correm juntos até a beira da piscina e o menino levanta o cachorro por cima da água, olha você aqui olha esse é você, e o sol faz uma sombra bonita na água as patinhas nadando no ar e o cachorro olhando só o menino, sem ver o reflexo nem a sombra nem a água, nadando no ar e querendo alcançar o narizinho para outra lambida perguntando com as orelhas cadê as palmas na pedra e cabeça e cambalhota.

O menino apoia o cachorro no chão e ele pede colo de novo, menino com os joelhos na beira da piscina, a pedra áspera, o cachorro se deixa erguer de novo por sobre a água, a sombra dos pelos mexendo no vento, olha você aqui olha esse é você, e os olhinhos do cachorro nos olhos do menino que sorri e não entende muito bem o que acontece não sabe se são os braços esticados que cansam e doem ou se é uma curiosidade de filhote que ele também é, não entende mas abre as mãos e solta o cachorro que desce fundo na água e não era isso que o menino esperava, achava que ele ia boiar e nadar mas o cachorro com as suas cambalhotas e bolhas no fundo da piscina e o menino olha em volta e confere, ninguém espia, e na verdade alguém devia estar ali e nunca está, nem nas janelas, ninguém nunca olha, que raiva que dá das pessoas todas, o cachorro enfim emerge em ganidos baixos engasgados golfadas de ar enrolando na linguinha que tenta alcançar o nariz do menino agora muito longe, afastado da beira da piscina, talvez se ele se debruçasse alcançaria o filhote mas a essa altura com esses barulhos e depois desse sofrimento o que seria esse cachorro, o que pensaria do menino, talvez não lambesse mais, quem sabe mordesse, ou tivesse pra sempre qualquer coisa morta na cara, o cachorro cada vez mais longe da borda, as patas embaralhadas exaustas o pelo pesado de cloro, o menino olhando apavorado, esse ainda é você será já não sei, perigoso alguém ouvir esse choro encharcado, e o menino corre para dentro da casa e se abaixa sob a janela e espera, espera muito tempo até que já não ouça nada, e contêm os sons do próprio choro, o olho fechado, talvez planejando a mentira, ou esperando a lambida, ou apagando a imagem, olha você aqui esse é você, investiga de longe a piscina que ainda reverbera em ondas lentas, talvez seja só o vento, o menino respira mais devagar e espera a noite quando talvez alguém estranhe e todos aflitos procurem juntos o filhote e seja o menino mesmo quem o encontre duro e cheio de água, olha você aqui, e espantado subirá finalmente no colo da mãe e os dias vão passando, qualquer coisa morta na cara.

 

 

Ramalheira


De tempos em tempos eu sou uma árvore. Há o perigo de estar com minha filha no colo e o braço torna-se um galho retorcido e alto que avança pela janela, frutos que me despencam da pele que engrossa depressa em cascos trepidantes de colônias de formigas que me passeiam em fila, a cabeça dói de repente muitíssimo, folheia-se larga e verde para além do teto, não caibo no quarto e a copa se curva a coluna enverga e as pernas se trançam em raízes gigantes, e então me flagram assim súbita figueira doméstica, e a seiva me escorre quente e densa. Grito por sol, qualquer sol que seja uma lâmpada fosforescente um abajur, e fico aqui troncuda e secular espantando o intruso com os galhos revoltos.

Não me deixam portanto segurar minha filha, nem um instante porque eu de repente árvore a despencá-la minúsculo fruto, por isso eles vêm e me colhem a menina, não vá essa mãe arvorar-se dela.

Espio a menina no berço, música amena, tudo em ordem, fauna e flora do quarto contidas, não posso compreender a maldição nem adivinhar o gérmen e vou me armando repentina planta e acontece de me notarem antes de avançar pelo teto, as raízes ainda fracas os braços resistindo caulescentes enquanto me tombam e me arrastam na folharia que me desprega dos cabelos, atam-me à boleia da caminhonete onde continuo a engrossar e espessar seca, as ranhuras queimando das formigas.

Eles se apressam e nas ruas as outras árvores resplandecem e me olham assim caída aberração das fêmeas todas, as entranhas se encaracolam fibrosas, o peito em nós lenhosos, e se no caminho chove me torno escorregadia de limo e eles precisam de muitos médicos para conter-me, o hospital tão experiente em desumanizações.

Tentam tratar a mulher e não a árvore, e eu insisto que o problema é a árvore não me entendem eu digo a louca é a árvore que me toma e não larga arranquem de vez as sementes mas não arrancam, remédios, injeções, amarram-me os braços como se assim não florescessem e eletrizam-me os dutos e me devolvem em casa, eucalipto venenoso impossibilitando o solo e a vida. Torno a esperar o sol no quarto, minha filha chora baixinho na porta ao lado, e me estico nos restos da minha folhagem dentro da minha sombra, e sou oca, a mais oca das mulheres.

Um dia me arborizo e floreio inteira e gigante e maciça e estendo os braços amadeirados e firmes e espero anos até que me confiem e me ajustem as cordas de um balanço e quem sabe ela venha, a minha filha, ainda menina e me veja assim frondosa e me escale num abraço os pés descalços na minha casca e se ajeite no farfalhar fresco das minhas folhas e se abandone contente no meu balanço, e eu sinta no tronco o esgar das cordas, o tremor das suas idas e vindas, o vento pequeno sob os meus galhos. A doçura da sua primeira gargalhada.

MARIANA SALOMÃO CARRARA é escritora, autora de Fadas e copos no canto da casa (Quintal Edições, 2017), Se deus me chamar não vou (Editora Nós, 2019), que ficou entre os 10 finalistas na categoria Romance Literário do Prêmio Jabuti de 2020, e do recém-lançado romance É sempre a hora da nossa morte amém (Editora Nós, 2021).