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Preto no Branco

Itamar Assumpção criou as próprias regras na música popular brasileira e deixou um legado de eterna inspiração para todas as gerações

“Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu/Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé.” Assim Francisco José Itamar de Assumpção – vulgo Pretobrás, vulgo Itamar Assumpção – abre a canção Nego Dito, hit da Vanguarda Paulista (veja boxe Paulista sangue bom) e uma das mais pedidas e cantadas do homem que olhou para a música popular brasileira com seus óculos escuros de armação extravagante (vermelha, amarela, meio new wave) e disse, ainda na mesma letra: “Eu faço e aconteço”.

Os muitos nomes eram para despistar. Ser não sendo, chegar chegando e sair de mansinho, deixando mistério no ar. Quem era Itamar? “Era um personagem o tempo todo”, responde o músico e professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Luiz Tatit, integrante do extinto Grupo Rumo. “Ele nem aparecia muito nos lugares justamente para não desfazer esse personagem. Era um cara que não frequentava quase lugar nenhum. Ou as pessoas iam à casa dele ou não o encontravam. Ele nunca foi uma pessoa comum.”

Tatit se refere às personagens que Itamar assumia dentro e fora do palco. Uma espécie de coro de homem só com um discurso muito claro e caro ao músico que tinha na canção o principal meio de expressão. “Como na canção tem sempre alguém falando, dizendo alguma coisa, que é o canto, ela sempre faz com que a voz seja expressão de um corpo”, explica o professor Tatit. “E o personagem principal do Itamar, que no começo era chamado de Beleléu, ganhou uma força especial pelo fato de se identificar com sua própria figura. Ele incorporava muito a história do negro, do Nego Dito – às vezes ele se chamava de Pretobrás, o que dava uma autenticidade muito grande à voz.”

Segundo Tatit, havia algo de particular também no jeito de Beleléu ao cantar – ou falar nas músicas. “Muitas vezes eu até chamei de rock de breque ou reggae de breque”, diz. “Esse breque era justamente para entrar a fala. Então ele para, fala, comenta, e depois volta ao ritmo.”

Atemporal

Nascido na cidade de Tietê, interior de São Paulo, em 13 de setembro de 1949, Itamar Assumpção mudou-se aos 12 anos para Arapongas, no Paraná e começou a estudar contabilidade – curso que logo abandonou. Em Londrina, envolveu-se com teatro e música. Foi quando conheceu outro célebre “paulistano adotivo”, Arrigo Barnabé, também figura da Vanguarda Paulista. Em 1973, mudou-se para São Paulo, cidade com a qual estabeleceu uma “identificação absoluta”, conforme canta no CD inédito Pretobrás II – Maldito Vírgula (2010), parte da Caixa Preta que o Sesc lança em outubro (veja boxe E abre-se a Caixa Preta).

“São Paulo traz uma espécie de ruptura com as raízes”, continua Tatit. “A cidade não tem raiz, só tem futuro, não tem passado, então é um lugar onde ninguém precisa ficar mostrando aspectos de raiz, de história etc. E, nesse sentido, foi fundamental para ele.”

De acordo com Paulo Lepetit, músico, baixista da banda Isca de Polícia, que acompanhava Itamar, e produtor de Pretobrás III – Devia Ser Proibido (2010), o segundo inédito da nova caixa, a música de Nego Dito tem outra característica marcante: a multiplicidade. “Tem reggae, tem rock, tem soul, MPB, tem tudo”, afirma o produtor. “E ele tem uma maneira particular de misturar isso tudo, uma forma única.”

Para a pesquisadora de música popular brasileira Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, autora da dissertação “Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista”, defendida em 2005, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), essa “mistura” apontada por Lepetit é o que de mais paulista há na música de Itamar. “Tinha um público [na cidade, na época em que Itamar chegou] que estava interessadíssimo nessas experimentações todas”, analisa. “E São Paulo comporta isso tudo.”

Briga com a mídia

Na audição à imprensa dos CDs inéditos da Caixa Preta – realizada, em setembro, no Sesc Pompeia – Anelis Assumpção, filha de Itamar, comentou que o pai costumava dizer que era um “artista pop incompreendido”. De fato, é sabido que o músico morreu – em 12 de junho de 2003 – sem ver o reconhecimento que desejava. “Ele mesmo me disse, no começo dos anos de 1980, quando a gente começou a tocar, que seria igual ao Cartola, reconhecido só depois de morto”, conta Lepetit, que credita isso, assim como o músico Luiz Tatit, à forte personalidade de Itamar.

“Como todo mundo sabe, ele [Itamar] tinha um relacionamento difícil com os meios de comunicação, gravadoras e essa coisa toda”, continua Lepetit. “Então uma boa parte [do não sucesso] foi por opção dele. Ele teve várias chances de partir para o mainstream, mas, sempre que aparecia uma oportunidade dessas, ele fugia.” Tatit prossegue: “As gravações dele, do ponto de vista sonoro, são difíceis de dar certo, sobretudo naquela época em que o principal veículo era o rádio”, analisa. “São canções cheias de experimentação interna, o que as tornava difíceis de serem veiculadas.”

Itamar, por outro lado, não dava tréguas. “Ele estava sempre buscando coisas novas, inclusive dentro do próprio trabalho”, relata Lepetit. “Então, a cada show a gente mudava os arranjos. Até hoje brincamos, quando surge a ideia de tocar uma música, perguntando: ‘Mas qual arranjo, o 372 ou o 525?’ [risos].” O produtor lembra também da reação de Itamar quando alguém da plateia pedia um hit.

“As pessoas vão a um show e querem ouvir aquilo que está no disco, e com o Itamar isso era impossível”, diz. “A cada vez parecia que era outra música. Às vezes, num show, alguém gritava: ‘Toca Nego Dito’. E ele respondia: ‘Compra o disco e vai ouvir em casa, eu não vou tocar’ [risos]. E mesmo que tivesse no repertório ele tirava. Era uma figura única.”


SANGUE BOM

Como de vez em quando acontece na música brasileira, a Vanguarda Paulista ?reuniu as pessoas certas, no momento certo, no lugar certo

O momento era o final dos anos de 1970 e começo de 1980 – mais precisamente de 1979 até 1985. O lugar era o Lira Paulistana, casa de shows localizada na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, e, entre as figuras, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola, Ná Ozzetti, e os grupos Rumo, Premeditando o Breque – o Premê – e o Língua de Trapo.

É esse o cenário, elenco e temporada da Vanguarda Paulista. “Mais um momento do que um movimento, na verdade”, explica a pesquisadora de música popular brasileira Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel.  “E São Paulo aparece na confluência de todas as sonoridades que essas pessoas produziam. O Arrigo trazia uma leitura do dodecafonismo [sistema de organização de alturas musicais criado na década de 1920 pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg], e o Itamar foi o cara que trouxe uma sonoridade funk e uma temática que falava da questão da etnia.”


E ABRE-SE A CAIXA PRETA

Lançamento do Selo Sesc reúne discografia completa de Itamar Assumpção, ?além de dois CDs com material inédito e participação de convidados

O nome foi ideia do próprio Itamar. Caixa Preta, onde deveria estar toda a sua discografia – dez álbuns, produzidos entre 1980 e 2004. Título bem sacado como sua obra: é ouvindo as gravações das caixas pretas dos aviões que descobrimos o que realmente aconteceu, e preta também é a cor do Nego Dito, do Pretobrás e do Beleléu, personagens por meio dos quais Itamar Assumpção dizia a que tinha vindo.

A caixa com 12 discos tem lançamento este mês, com shows no Sesc Pompeia. O projeto do Selo Sesc tem curadoria das filhas de Itamar, Anelis e Serena, e da viúva do músico, Elizena Assumpção, e prevê a realização de uma série de seis shows. Os espetáculos reúnem amigos, convidados e parceiros para cantar as músicas do criador de canções como Nego Dito e Bomba H (veja a programação no Em Cartaz desta edição). “Estou muito feliz de a gente relançar toda a obra dele para pessoas que não a conhecem poderem ter pelo menos o direito de entrar em contato com isso, e aí fazerem sua opção”, disse à reportagem da Revista E a cantora e musicista Anelis Assumpção, filha de Itamar.

Novos sons – O projeto inclui os inéditos Pretobrás II – Maldito Vírgula e Pretobrás III – Devia Ser Proibido, produzidos, respectivamente, por Beto Villares e Paulo Lepetit. “Foi a redescoberta de um material que eu conhecia porque a maior parte estava comigo”, revela Lepetit. “Foi um grande prazer poder investir nessas músicas que estavam paradas, até meio esquecidas. Por isso digo que foi uma redescoberta.”

O trabalho foi o de criar arranjos, vocais e instrumentações tendo como guias a voz e o violão deixados por Itamar – que já tinha planos para lançar as continuações de seu Pretobrás – Por que que Eu não Pensei Nisso Antes?, de 1998. “Ele mesmo deixou tudo isso engatilhado”, retoma Anelis. “Ele já estava querendo reunir toda a obra numa caixa, já estava começando a produção do Pretobrás II e III.” Beto Villares comenta que tem muito de Itamar nesse material póstumo. “Nos salvou o fato de ele ter gravado as músicas com a ‘vibe [vibração] final’, interpretando mesmo”, diz o produtor em texto de divulgação do CD. “E também, claro, o fato dele ter bons parceiros de produção que gravaram, guardaram e disponibilizaram as sessões pro CD: Simone Soul, Luiz Waack, Paulo Lepetit, Renato Copolli.”

Importância – O diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, destacou durante audição dos inéditos para a imprensa, em setembro, no Sesc Pompeia, a intenção da instituição em dar oportunidade para que mais pessoas conheçam o trabalho “magnífico desse criador que nos deixou tão cedo”. “Itamar é um artista múltiplo, importantíssimo para a cultura paulistana, paulista e brasileira”, disse Miranda. “Participou intensamente da Vanguarda Paulista. Portanto, tem uma proposta inovadora, bastante reverente de um lado e bastante provocativa de outro, e foi um marco. É fundamental, portanto, trazer sua obra à tona, seja por meio daquilo que ele já produziu e que era conhecido, seja por material inédito.”

A gerente-adjunto da Gerência de Audiovisual do Sesc São Paulo Ana Paula Malteze revela que foi “durante a reta final do projeto” que ficou clara a importância de aproveitar o momento para oferecer shows com “uma mostra integral da obra” de Itamar Assumpção. “Impossibilitados de reproduzir fielmente o conteúdo dos CDs, afinal Itamar não está mais conosco, nós do Selo Sesc e as curadoras Anelis, Serena e Elizena optamos por recriar os shows com vários convidados. Então, o público verá uma série de apresentações que está sendo criada especialmente para o lançamento.” Ana Paula conclui dizendo que o lançamento reflete a filosofia do Selo Sesc: “difundir a cultura musical e exercer um papel de mediação junto ao público que favoreça a plena fruição das obras que apresentamos”.