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A Descoberta da Dança

Coreógrafos investem na intersecção de linguagens para envolver o exigente público infantil em espetáculos interativos


A dança é parceira antiga do teatro infantil. Assim como a música, o movimento e as cenas coreografadas são velhos conhecidos dos que fazem e dos que assistem a montagens voltadas para a crianças. A eficácia é garantida. Ajuda a prender a atenção das plateias mais inquietas, preenche lacunas com sucesso, aumenta as possibilidades de diálogo com o público, entre outras funções.

Mas o que aconteceria se, de repente, o texto, a fala, a história saíssem da cena principal e o foco de luz caísse sobre a dança, fazendo-a passar a protagonista? Será que as crianças iriam gostar? Essas são perguntas feitas por criadores, artistas e pesquisadores a cada encenação voltada para esse novo público. É verdade que a coreografia não ganhou um palco só para ela nas agendas culturais para os pequenos tão “de repente” assim. Marco nessa história é o início dos anos de 1990.

Um dos primeiros fatos relevantes nessa trajetória teve lugar em 1991, com a criação de um núcleo brasileiro da Dance and the Child International (daCi – assim mesmo, só com o “c” maiúsculo). A organização internacional, cujo nome, em tradução literal, reúne os termos “dança”, “criança” e “internacional”, tem por objetivo promover atividades de ensino, pesquisa e produção de dança para crianças. A partir daquele ano, o Brasil começou a contar com representantes nos encontros trienais do órgão, além de realizar edições regionais por aqui. Com esse passo, pesquisadores e artistas iniciaram a articulação do papel da dança na formação do público infantil – como apreciadores da arte ou como indivíduos.

Foi então que surgiram as primeiras companhias brasileiras com a proposta de dançar para plateias infantis. Entre elas, as paulistas Caleidos Cia. de Dança, ligada à instituição Caleidos Arte e Ensino, criada em 1996, e Balangandança Cia., fundada em 1997. Vinte anos depois, já é possível afirmar que existe uma produção de dança para crianças no país em “plena expansão”, conforme define a artista, professora e pesquisadora da área Isabel Marques, fundadora da Caleidos Cia. de Dança. “Numericamente isso vem acontecendo com certeza. Mas esse é um primeiro passo. Agora está na hora de aprofundar”, explica.

Na visão da especialista, é preciso pensar, sobretudo, num espetáculo “que inclua a criança”, mais do que simplesmente ser voltado para ela. “Vejo esses grupos todos buscando justamente entender o espaço que existe hoje”, continua Isabel. “Mas vejo também que muito do que acontece são espetáculos que entregam a coisa pronta para a criança.” Para ela, esse não seria o melhor caminho. A pesquisadora esclarece que não se trata de chamar a criança para dançar junto. “Falo de ter a criança na plateia pensando, sentindo, descobrindo coisas. Ou seja, integrada àquele espetáculo.”

Novas possibilidades
Para a pesquisadora, o momento é de separar o joio do trigo, processo pelo qual passou a literatura infantil. “Existe um grande volume de produção [de livros para crianças], com muita coisa boa e muita coisa que nem tanto”, diz. “Então, acho que a literatura já percebeu isso, de reunir proposta estética, de conteúdo, de interesse e de tema. E acho que a dança para crianças está nesse caminho.” No entanto, para a especialista, o momento deve ser visto com bons olhos. “Porque há pessoas tentando”, emenda.

A bailarina Dafne Sense Michellepis, da Balangandança Cia., também vê hoje uma cena dedicada a um público que antes só podia contar com espetáculos adultos de classificação livre. E cita dois eventos recentes como importantes difusores dessa produção: o Fidinho, programação para crianças realizada desde 2008 como parte do Fórum Internacional de Dança (FID), e o Dança para Crianças, que reuniu em julho deste ano, no Itaú Cultural, apresentações, workshops e debates na área. “São duas ações que ajudaram muito nessa questão do cenário nacional”, relata. 

Diane Ichimaru, dançarina, coreógrafa, e criadora, juntamente com Marcelo Rodrigues, da Confraria da Dança, de Campinas, credita essa atual movimentação a uma busca das companhias por novas possibilidades de criação e pesquisa. “Acho que se descobriram as sutilezas, as possibilidades de enriquecer mais essa possibilidade de diálogo”, diz. A Confraria criou, em 2009, seu primeiro espetáculo para os pequenos, intitulado Brinquedos e Inventos para Dançar. Diane conta que o desejo de enveredar por essa seara surgiu da própria reação desse público ao assistir aos outros espetáculos da companhia. “A gente trabalha com uma questão muito plástica em cena, e que sempre atraiu a criançada”, informa.

Formação de plateia
Um dos aspectos que naturalmente vêm à tona quando o assunto é arte para crianças é a questão da formação de plateias – ou seja, investir hoje no apreciador de arte de amanhã. O mesmo vale para a dança. “Com o tempo que as crianças passam hoje na frente da televisão e do computador, acho que levar esse tipo de trabalho implica uma possibilidade de engajamento social, além do engajamento artístico”, analisa Dafne Sense Michellepis.

Para Diane Ichimaru, deve existir nessa relação um elemento de responsabilidade da parte dos produtores dessa arte. Caso contrário, o tiro pode sair pela culatra. “Uma primeira impressão boa vai repercutir a vida toda dela, mas o oposto também”, resume. “Cada apresentação é uma abertura para o mundo das artes cênicas. Quando trabalhamos com gente pequena, a cada plateia haverá várias crianças assistindo a um espetáculo de dança pela primeira vez. Isso é muito importante.”

É nessa tecla que Isabel Marques bate com especial insistência. “Dependendo do que está sendo produzido, pode ficar algo como: ‘Isso é dança? Então quero ficar longe’”, diz a coreógrafa. Ela também alerta que o fato de levar a criança a um espetáculo não pode ser chamado exatamente de uma ação de formação de plateia. “Qual a qualidade dessa apresentação?”, indaga. “Quando as crianças vão com a escola elas são apenas números para o teatro? Só para dizer que lotou? Sei de exemplos concretos desse tipo de coisa.”

Cuidado com estereótipos

Ainda que não existam fórmulas, a experiência das três companhias até aqui permite apontar alguns elementos que funcionam bem para a plateia de pequenos e outros que certamente não dão certo. “Quanto ao formato, posso dizer, por exemplo, que a criança não aguenta cenas muito longas”, começa Isabel Marques. “Então ficar explorando as possibilidades do movimento da mão durante 40 minutos não funciona. A criança vai ver isso durante dez minutos e depois ela vira a cabeça.” Para a pesquisadora, deve entrar em cena também o cuidado com a localização do público. “Faz diferença no produto estético final se as crianças estão na plateia ou no palco”, revela.

Entre os exemplos a serem evitados, em primeiro lugar, para Isabel, estão os estereótipos de uma infância vista pelos olhos do adulto. “Eu já vi espetáculos de dança em que o figurino era vestido de bola e maria-chiquinha”, observa. “E o dançarino tinha aquele jeitinho da Emília, do Monteiro Lobato.” Dafne Sense Michellepis concorda: “O que não pode ter, na minha opinião, são aqueles maneirismos de fala, aquele jeitinho ridículo, infantiloide”, diz. “A escolha de trabalhar com a linguagem da dança contemporânea implica sugerir alguns enigmas que vão instigar a plateia a pensar. Então, independentemente do cenário e do figurino, o que funciona é o que realmente se comunica com o universo da criança. Tudo gira muito em torno da comunicação.”
Diane Ichimaru conclui contando que a Confraria da Dança foi muito feliz ao achar o caminho da intersecção entre linguagens. “A gente brinca muito com objetos do cotidiano, e que são facilmente encontrados em qualquer casa”, exemplifica. “Levamos para a cena também a descoberta que a criança tem a cada dia, tanto em relação a possibilidades com o próprio corpo quanto com a transformação de objetos e com a criação das diversas linguagens, inclusive com a palavra.”


BOXE Arte e reflexão

Projeto do Sesc São Carlos põe em destaque ?a dança produzida para o público infantil

Realizado pela primeira vez em 2009, o projeto Dança Rima com Criança, do Sesc São Carlos, volta a explorar a relação da linguagem com o indivíduo em seus aspectos artísticos e também educacionais. Para enfatizar a proposta, a atividade em 2010 é realizada neste mês das crianças, do dia 12 ao 16. “Esse projeto tem dois nortes”, explica Sueli Arlette, técnica da unidade. “Um deles é trabalhar a formação de plateias e o outro é a reflexão sobre que dança é essa, como o professor pode utilizar esse recurso para trabalhar questões como inclusão, educação informal nesse momento da aula, o coletivo, os espaços disponíveis na escola.” Entre os objetivos da iniciativa aparece o de promover o encontro de profissionais e amadores da área de dança e deles com o público. “Pensou-se também em desmistificar a dança”, complementa Sueli. “Trazendo os profissionais que trabalham com crianças e os que trabalham para crianças.”

Segundo a técnica da Gerência de Ação Cultural (Geac) para a área de dança Marina Guzzo, o fato de o Sesc realizar tal ação pressupõe que a qualidade da programação é pensada para todos os públicos, inclusive para o infantil. “O que o Sesc quer com esse evento é propor qualidade, reflexão, difusão e circulação de espetáculos de dança para crianças com a mesma qualidade e serenidade”, confirma.

A programação do evento reúne espetáculos, rodas de discussão e vivências. “Entre os trabalhos, temos os mais interativos e outros com uma elaboração que exige que a criança se coloque mesmo como plateia”, esclarece Sueli. “Para as vivências, traremos profissionais de diversas áreas e que podem falar dos vários conceitos do trabalho de dança, enquanto as rodas de discussão contarão com profissionais com uma visão mais voltada para a formação de público e para a dança como recurso pedagógico.” Os temas das mesas são Dança: uma Alternativa para a Educação? e Girando, Rolando, Aprender Brincando.