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Os velhos amigos

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Amanhã atravessarei a ponte grande da via férrea
para falar os nomes dos meus velhos amigos.
Todos aqueles que me trouxeram
pão de batata para o café da manhã.
Irei ao antigo armazém de trigo e fécula de mandioca
do final da rua São Pedro e São Paulo.
Pedem-me que eu fale seus nomes
nas tardes das quartas-feiras
para que se desfaçam os vultos da solidão.

Falarei com a voz da rola dos campos de fava.
Grrroou para o Peter Dubin em dó maior.
Grrroou para o Frank Cassani em fá menor.
Grrroou para o John Thompson em si sustenido.
Grrroou para o Paul Fischer em dó menor.
Grrroou para o Gunther Schneider em ré maior.
Grrroou para o William Lang em si bemol menor.

Eu transporto suas sombras
nos bolsos das minhas calças
e os matei para afugentar
as suas dores do colo do fêmur.
Ah! Meus velhos amigos não devem
sentir dores no colo do fêmur.
Ah! Não, não, não, não, não, não devem.
Ah! Não suporto ouvir os gemidos
que saem dos vasos de flores.

Amanhã, quarta, meus velhos amigos.
Depois que passe o trem de carga,
beberemos chá de hibisco e vinho tinto polonês.
grrroou, grrroou, grrroou, grrroou, grrroou, grrroou.



O IRMÃO MORTO
Para Ugo Giorgetti

Morreu teu irmão.
Morreu trêmulo como os velhos homens
das antigas fazendas de café.
Proclamava-se teu irmão
e falava dos passeios pelos parques
que tu proporcionavas, cedendo-lhe,
nas manhãs do outono,
o extraordinário carro estrangeiro
onde coaxavam os sapos de papo azul.

Está morto teu irmão
e as palavras são secas e distantes
e não há pássaros voando no céu
nem lagartos verdes subindo nas
paredes da velha casa.

O tempo passou como os três vasos
pendurados no muro do quintal
e tu deves guardar no teu coração
a palavra: irmão.


UM DIA EU IREI PARA O CÉU

Papai e mamãe
estão mortos, entre os mortos.
Morreram inesperadamente no dia
em que morreu Jesus Cristo.
Ressuscitaram no primeiro dia do ano
e agora e para sempre estão no céu.

Às vezes eu ainda digo
papai, existem duzentos e cinquenta milhões
de mamíferos mortos nos campos de milho.
Os lagos são profundos e cheios de peixes tristes.
Eu vou saltar do degrau dessa calçada
com a minha camisa branca.

Outras vezes eu falo
para minha mãe
mamãe os patinhos estão andando lentos
sobre a madeira encurvada dos barcos,
tremem de frio
e não sei que alimento lhes dar.

Eles estão no céu onde tocam as clarinetas
e eu sei que os olhos
que vejo no olho mágico
são os olhos deles.

E sei bem que
entre esses pássaros fabulosos com penas acesas
que se aglomeram no final da tarde
nos galhos mais altos das árvores,
estão eles.


O CORAÇÃO DOS OUTROS

Nós não amamos o coração dos outros, meu irmão.
Desde março eu venho lutando para ser bom
afagando os pelos dos cachorros brilhantes.
Ontem arremessaram com uma força estúpida
um pão nas minhas costas.
Quando virei-me
um homem corria com sua carroça de rodas de borracha,
cheia de papelão e restos de madeira queimada.
Satanás! Vai para o inferno, imbecil!
Gritei-lhe, meu irmão.
Era um pão seco, duro,
sujou-me a roupa, doeu-me o pescoço.

Em abril
quando eu caminhava para o almoço
uma mulher com colar de papéis coloridos,
uma mulher miserável, moradora de rua,
chamou-me, mas eu cerrei os ouvidos.
Não lhe dei atenção.
Mais recente
antes que se iniciasse o inverno,
outra mulher, bem mais velha e com uma bengala,
pediu-me que lhe comprasse um prato de comida.
Disse-lhe que não tinha dinheiro.
Eu tinha dinheiro, meu irmão,
não lhe comprei a comida.

Luto para ser bom
mas às vezes sinto que ainda existe
violência e tumulto em mim.
Quando chego em casa
acendo a lanterna
e faço exercícios de bondade perpétua,
acariciando as minhas mãos.
Deixo-as bem abertas, espalmadas
e aperto loucamente os ossos dos dedos.

Penso às vezes
Que não amamos o coração dos outros, meu irmão.


ANJOS

Havia estrelas silenciosas
correndo abraçadas no céu.

E havia pombos dormindo
com seus filhotes protegidos
pelas asas de suas mães delicadas.

E havia um muro de pedras
que se erguia cheio de flores
e formava uma paisagem noturna
com perfumes de jasmim.

Não havia escuridão.
Havia uma lua que cantava
como se fosse uma soprano louca.

Nada que me dissesse
a noite está sem identidade visual
porque havia identidade visual
e estava bela como a imensidão
de uma mãe com luvas.

Não havia cerração absoluta
e nenhuma chuva regressando.

Eu vi a gata preta morta
e o seu fantasma de ouro.

Eu vi os olhos hipnotizados da gata morta
e as faíscas fulminantes de pavor.

Vi os quatro filhotinhos mortos
entre o sangue e os destroços.

Vi os olhos mortos do assassino
com suas pálpebras de carvão
e a cegueira de cobra, cheia de gotas,
esquivando-se pela noite.

Vi as pétalas das rosas brancas
movendo-se iguais a coelhos brancos,
no chão dourado do jardim.

Celso de Alencar é poeta, autor de "Sete" (Pantemporâneo, 2001) e Testamentos (Pantemporâneo, 2003), entre outros


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