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Marçal Aquino
Repórter policial, contista, romancista e premiado roteirista de cinema. Dos múltiplos papéis que desempenha, Marçal Aquino prefere o de literato. É autor de O Amor e Outros Objetos Pontiagudos (Geração, 1999), premiado com um Jabuti, Faroestes (Ciência do Acidente, 2001), Famílias Terrivelmente Felizes (Cosac Naify, 2003), entre outros.
Há 21 anos iniciou parceria com Beto Brant, o então cineasta recém-formado que veio a se tornar um dos nomes mais importantes do cinema nacional recente. Quando não são adaptações de obras do escritor – como é o caso de Os Matadores, O Invasor e o mais recente Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios –, os roteiros de Beto Brant contam com a colaboração de Marçal.
Em entrevista à Revista E, Marçal explica de que maneira o jornalismo o ajuda na ficção, fala sobre o cinema nacional contemporâneo e sobre o que conta na concepção de seus personagens. “O Nelson Rodrigues, talvez o maior dialoguista da literatura brasileira, dizia que o defeito do escritor é ‘tomar pouco cafezinho’. Com isso, ele queria dizer que alguns escritores não circulam para ouvir seus ‘personagens’ nas ruas ou não prestam atenção à sintaxe cotidiana das pessoas”, diz. “Diálogo é arte de ourives, mas é preciso ouvir o outro para aprender.” A seguir, trechos.
Você é hoje um dos roteiristas mais solicitados do cinema brasileiro. Como se forma um roteirista? Qual foi o seu percurso? Roteiro se aprende na escola?
Acredito que um curso de roteiro é um bom despertar para um roteirista. Porém, uma vez dominada a técnica básica do roteiro, tem de entrar em cena a criatividade do sujeito, que é essencial, assim como sua capacidade de imaginação visual. Nem preciso dizer que um roteirista deve ver cinema com paixão, com ganas de fanático. Ver e rever.
De tudo: filmes, séries, o que for. Narrar é um aprendizado constante. Por fim, pessoalmente, penso que a literatura é indispensável a qualquer roteirista. Quem me converteu em roteirista foi o Beto Brant, que me chamou para ajudá-lo a escrever a versão final de Os Matadores, adaptado de um conto meu. Nunca passei por escolas, aprendi fazendo – ou melhor, estou aprendendo até hoje, já que, como eu disse, é um aprendizado que nunca cessa.
O que ajudou é que sempre gostei de cinema e a vida inteira, como narrador, tive curiosidade por roteiros. O roteirista tem sido um profissional bastante valorizado no cinema brasileiro atual. Você mesmo está com a agenda cheia. Como aconteceu essa mudança?
A partir da chamada “Retomada”, a primeira exigência que o Minc [Ministério da Cultura] passou a fazer, antes de habilitar qualquer projeto a captar pelas leis de incentivo ao audiovisual, foi o roteiro. Com isso, a figura do roteirista passou a ser mais valorizada, coisa que em geral não acontecia no cinema brasileiro. É importante falar também que entrou em cena toda uma geração de cineastas jovens, que enxergam a importância do roteiro por outra perspectiva. E com a expansão das séries televisivas, o mercado cresceu para os roteiristas, que não precisam viver exclusivamente de seu trabalho para o cinema – coisa impensável.
Quando o diretor modifica seu roteiro, corta personagens, cenas inteiras ou mesmo quando o montador altera a sua ordem narrativa, isso dói? Ou o cinema deve ser encarado como um trabalho coletivo, onde a questão não pode ser levada tão a ferro e vaidade?
Cinema é, necessariamente, coletivo. O roteiro é a pedra fundamental, digamos assim. A partir daí, todo um grupo de profissionais vai interagir com o texto, com o objetivo de transformá-lo num produto audiovisual final. As alterações são a coisa mais natural que existe, pelo menos é assim que encaro. Afinal, em última análise, o filme é do diretor, é ele o maestro da coisa.
Meu território individual é a literatura. Quando cedo um texto para adaptação, estou pronto a atender às necessidades, ideias e exigências do cineasta, com total desprendimento. É assim que acho que deve ser. Uma boa adaptação é aquela que estabelece um diálogo com a obra literária na qual se baseou, não tem a ver com fidelidade.
Você escreve livros, roteiros para cinema e agora faz seriados para televisão. Qual a diferença entre esses suportes em termos de escrita?
Literatura é a minha casa, é a coisa pela qual espero ter de me justificar no fim. É exercício individual, solitário. Talvez seja o momento de maior solidão e, no entanto, necessariamente, você se vê cercado por personagens e situações mais palpáveis do que o real, que fica suspenso por um tempo.
Roteiro é, para mim, uma outra forma de contar histórias, obedecendo às estruturas de uma linguagem técnica específica. Além disso, nunca escrevo roteiros sozinho. Tenho sempre um ou mais parceiros em cada empreitada. Acho essencial esse diálogo na hora da criação.
Você é jornalista de origem. No que o jornalismo influencia a sua escrita ou mesmo o seu olhar criativo?
Sempre ouvi dizer que o jornalismo prejudicava a literatura. Na geração anterior à minha, formada por gente que brilhou no jornalismo e na literatura, havia esse comentário. No meu caso, a coisa foi radicalmente oposta. A prática da escrita jornalística aparou ainda mais meu texto, que sempre foi conciso. E a experiência de repórter, sobretudo a reportagem policial, foi fundamental, pois me colocou em contato direto com um universo e com personagens que, mais tarde, iriam se tornar muito caros à minha literatura.
É necessário se fazer pesquisa de campo antes de se escrever uma história?
Não gosto muito de pesquisa. Na minha experiência, sempre acabou me desviando do que interessava, quando não esvaziando o interesse ficcional que eu tinha por determinados assuntos. Só faço pesquisa quando indispensável e sempre para esclarecer algo pontual.
Como se cria um personagem que não faz parte do seu meio social? Onde você busca apoio para criar também sua maneira de falar?
Toda literatura, dizia o velho Faulkner[escritor norte-americano, que viveu entre 1897 e 1962, autor de O Som e a Fúria (1929)], provém do trinômio “observação, imaginação, experiência”. Meus personagens passam por aí. Às vezes, tem mais peso um tipo ou uma característica que vi na vida real, outras vezes o que me interessa é imaginar alguém – que passo a ver a partir daquele momento, o que também é uma experiência magnífica: lidar com pessoas que não existem.
É como cuidar de um zoológico invisível. Diálogo a gente aprende a fazer lendo os grandes mestres (aqui no Brasil, gente como o Luiz Vilela e o Dalton Trevisan, por exemplo) e ouvindo com atenção o mundo nas imediações. O Nelson Rodrigues, talvez o maior dialoguista da literatura brasileira, dizia que o defeito do escritor é “tomar pouco cafezinho”.
Com isso, ele queria dizer que alguns escritores não circulam para ouvir seus “personagens” nas ruas ou não prestam atenção à sintaxe cotidiana das pessoas. Diálogo é arte de ourives, mas é preciso ouvir o outro para aprender.
Quais são os ingredientes para constar de um bom roteiro? Sexo, violência e mulheres nuas ainda fazem parte do cardápio?
É muito difícil definir de forma apriorística o que é um bom roteiro; é mais fácil reconhecer um quando o encontramos. E é importante não perder de vista que um roteiro excelente pode muito bem virar um filme ruim – são muitas as possibilidades de ruína. Em contrapartida, há muitas histórias de filmes maravilhosos que nasceram de roteiros deficientes, quando não inexistentes. Acho que Casablanca é um dos clássicos desses casos, pois foi praticamente escrito junto com as filmagens.
O Brasil ressente-se de roteiros originais? Os roteiros baseados em livros em geral têm sido mais consistentes?
Penso que é muito mais difícil escrever um roteiro original do que adaptar uma obra já existente. Talvez isso explique por que a literatura é matriz histórica do cinema.
Vivemos um boom na produção audiovisual brasileira? Por conta do número de filmes e produções para a televisão?
O cinema brasileiro vem mantendo um patamar de produções bastante vigoroso. O problema continua sendo o gargalo na hora da distribuição e da exibição. Fazer cinema no Brasil tem sempre algo de épico.
Por que o roteirista era pouco valorizado durante o Cinema Novo? A maior parte dos roteiros era assinada pelos próprios diretores.
Especificamente na época do Cinema Novo, estavam em cena diretores-autores, que gostavam de escrever (e de ler). Acho que isso explica por que a maioria escrevia seus próprios roteiros.
Também no chamado Cinema de Invenção, de Rogério Sganzerla e Julio Bressane, embora antagônicos à estética do Cinema Novo, os roteiros sempre tinham a participação ativa dos diretores. O que você enxerga de bom em roteiros como O Bandido da Luz Vermelha e Matou a Família e Foi ao Cinema?
O Bandido da Luz Vermelha e Matou a Família e Foi ao Cinema são clássicos. Acho que é muito por conta da absoluta liberdade com que trabalharam os diretores e com o frescor criativo que imprimiram em cada fotograma desses dois belos filmes.
Filmes da Atlântida, produzidos na década de 1950, eram apoiados em roteiros, e muitos de seus filmes conseguiram sucesso popular. Um dos ingredientes para se alcançar o público passaria pela confecção de um roteiro profissional?
Um bom roteiro é um excelente ponto de partida. Mas não é garantia, em absoluto, de que o filme vá ficar bom ou de que vá alcançar sucesso. Mercado, felizmente, é coisa insondável. Ou então não existiriam os retumbantes fracassos de bilheteria.
O cinema da Boca do Lixo foi outra fase de sucesso da indústria cinematográfica brasileira. Eram boas aquelas histórias chamadas à época de pornochanchadas? Bem estruturadas?
Roteiro não era a principal preocupação dos filmes feitos naquela época, em São Paulo. O que não impediu que grandes artistas dessem suas contribuições – caso, por exemplo, do Marcos Rey, um escritor espetacular, que trabalhou como roteirista na Boca. Há roteiros muito bons do período.
Costuma-se dizer que falta ao cinema brasileiro saber contar uma história. Concorda?
Acho ingênua essa afirmação de que o que falta ao cinema brasileiro é contar uma boa história. Ao menos os filmes brasileiros a que assisto contam histórias, algumas até mal contadas, mas isso é assunto para outra pergunta.
Além da narrativa, criticam-se bastante os diálogos das produções brasileiras. É assim difícil escrever falas menos empoladas ou mais espontâneas?
Em certo momento, o diálogo foi, de fato, um calcanhar de aquiles dos filmes nacionais. É só imaginar a loucura que deve ter sido dublar certos filmes, que não foram captados com som direto, como acontece hoje com a totalidade da produção nacional. Hoje, diálogo ruim não é mais desculpa. Até porque temos excelentes roteiristas em atividade, gente que sabe o peso e a importância do diálogo para a verossimilhança de qualquer narrativa.
O cinema brasileiro recente caminhou pesadamente por temáticas como violência, favela e miséria. Chegou-se a falar no estilo favela movie. De repente, esse modismo cessou. O público cansou dessa vertente?
Uma das características do tal Cinema da Retomada foi essa tentativa de apreender o que se passa na realidade do país, coisa que, em épocas não muito distantes, com a tutela da censura, não foi possível fazer. Daí, a favela e essa conflagração cotidiana aparecerem como elementos recorrentes num certo momento. Não creio em modismos. Acho que, até segunda ordem, o tema foi devida e magistralmente examinado. Agora, é hora de procurar outros elementos da realidade para objeto de reflexão.
O personagem do bandido, do traficante povoa 9 entre 10 filmes brasileiros. Por que essa repetição de biotipias?
Não tenho números nem análises suficientes para fazer esta afirmação, mas adianto que é um personagem tão legítimo como outro qualquer para ser tratado pelo cinema. É a nossa realidade, essa que a televisão e os jornais nos esfregam na cara todos os dias. Se o cinema de corte realista ignorar esse tipo de personagem, estará cometendo uma fraude.
Qual seria um excelente roteiro brasileiro recente?
Gosto de diversos roteiros recentes e no que eles resultaram nas telas. Dois exemplos: Febre do Rato, do Hilton Lacerda, é espetacular na sua radicalidade poética; Tropa de Elite 2, assinado pelo Bráulio Mantovani, pelo Rodrigo Pimentel e pelo José Padilha, é eletrizante.
“Gosto de diversos roteiros recentes e no que eles resultaram nas telas. (...) Febre do Rato, do Hilton Lacerda, é espetacular na sua radicalidade poética; Tropa de Elite 2 (...) é eletrizante”
“Toda literatura, dizia o velho Faulkner, provém do trinômio ‘observação, imaginação, experiência’. Meus personagens passam por aí. Às vezes, tem mais peso um tipo ou uma característica que vi na vida real, outras vezes o que me interessa é imaginar alguém (...), o que também é uma experiência magnífica: lidar com pessoas que não existem”
“Narrar é um aprendizado constante. (...) Quem me converteu em roteirista foi o Beto Brant, que me chamou para ajudá-lo a escrever a versão final de Os Matadores (...). Nunca passei por escolas, aprendi fazendo – ou melhor, estou aprendendo até hoje”
“Uma das características do tal Cinema da Retomada foi essa tentativa de apreender o que se passa na realidade do país (...). Daí, a favela e essa conflagração cotidiana aparecerem como elementos recorrentes num certo momento. Não creio em modismos. Acho que, até segunda ordem, o tema foi devida e magistralmente examinado”
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