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Som perfeito
Uma vida dedicada à música. Parece simples, mas não há outra síntese possível para explicar a trajetória do clarinetista, saxofonista, arranjador e compositor Paulo Moura. O menino, que aos nove anos de idade tocava sua primeira clarineta, já se encantava com as fotos dos irmãos que se apresentavam nos cassinos do Rio de Janeiro. Com esse perfil, ele não poderia seguir outra carreira senão a de músico. Em quase oito décadas de sopro, fez da inovação sua marca registrada, numa busca incansável pelo som perfeito e o conceito que estava em sua cabeça e ouvidos. Não foi à toa que ganhou reconhecimento no Brasil e no mundo.
Foi o pai, Pedro Gonçalves de Moura, quem o iniciou na música, quando a família ainda morava em São José do Rio Preto, interior de São Paulo. “Estudava aquele instrumento (clarineta), que já dominava, só para poder tocar melhor, almejando um dia, sei lá, tocar na banda de música da cidade”, lembra o já consagrado instrumentista, durante uma de suas conversas com a psicanalista Halina Grynberg, sua esposa, empresária e produtora. Esses diálogos, que ocorreram entre 2008 e 2009, resultaram na biografia Paulo Moura, Um Solo Brasileiro (2011), da Editora Casa da Palavra. O músico sabia que tinha ido muito mais longe...
Somente depois que a família mudou-se para o Rio de Janeiro as coisas realmente começaram a acontecer para ele. Sempre estudando, Paulo passou a tocar também o saxofone. Aos 19 anos já era o primeiro saxofonista solista das orquestras de Oswaldo Borba e Zaccharias. Nesse mesmo ano, 1951, em sua primeira gravação em estúdio acompanhou Dalva de Oliveira cantando Palhaço, composição de Nelson Cavaquinho.
Como poucos, Paulo transitou com muita desenvoltura tanto pela música erudita, quanto pela popular. Apropriou-se da música clássica, do choro, do jazz, do samba, da bossa nova e da gafieira para criar algo novo. Sua capacidade de improviso e interpretação está presente em seus mais de 40 discos. Como músico de sopro, atuou em orquestras, duos de sax e piano, clarineta e violão, passou por trios, quartetos e bandas.
O maestro e pianista norte-americano Cliff Korman, que hoje vive no Brasil, lembra como conheceu Paulo. Foi na década de 1980, durante um curso sobre improviso no Creative Music Studio, em Nova York. Um dos professores era o instrumentista brasileiro. Na época, Cliff nem imaginava que ali nasceria uma amizade e parceria de longa data.
“Ele era exigente com os colegas, mas, sobretudo, consigo mesmo. Jamais perdeu a curiosidade de conhecer o novo, não só ouvir, mas entender e usar. Isso é uma prova de que foi um artista e não só músico. Ele mudou, transformou e nunca ficou para trás. São poucos os que fazem isso. Paulo nunca ficou satisfeito. Isso é fantástico!”, comenta o pianista.
Ele sabia aonde queria chegar
A carreira do instrumentista começou a deslanchar aos 24 anos. Paulo viu uma oportunidade de demonstrar sua técnica com a clarineta quando soube que Edu da Gaita havia gravado Moto Perpétuo, do compositor e violinista italiano Niccolò Paganini – algo inédito para um instrumento de sopro. Não perdeu tempo, comprou a partitura original para violino e começou a estudá-la.
“Levei pelo menos 15 dias para encontrar um jeito de tocar a música inteira. Inventei de acumular o ar nas bochechas, mantendo a palheta vibrando com esse ar acumulado no rosto e respirando enquanto exalava. Ou seja, uma loucura. Tive de levantar peso, correr na areia da Praia de Copacabana, praticar ioga...”, explica o próprio músico em outra biografia, esta disponível em seu site oficial. O esforço valeu a pena, pois esse feito abriu caminhos para a gravação do seu primeiro LP para a CBS, em 1956.
Três anos depois, era feita a gravação de Paulo Moura interpreta Radamés Gnattali. Na avaliação do musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello, esse foi o disco que colocou o clarinetista entre os grandes instrumentistas da época. Além do próprio Gnattali no piano, o álbum traz Pedro Vidal no contrabaixo, Trinca na bateria e Baden Powell no violão.
Com um currículo invejável, Paulo Moura acompanhou a orquestra de Ary Barroso ao México. Foi clarinetista por mais de 30 anos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. No Hotel Copacabana Palace tocou com grandes nomes do Jazz, como Lena Horne, Cab Calloway, Nat King Cole, Ella Fitzgerald, Sammy Davis Jr. e Marlene Dietrich. Também fez parte do conjunto Bossa Rio, apresentando-se no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962 – na mesma noite que Tom Jobim, Stan Getz e João Gilberto. Elaborou alguns arranjos para o primeiro LP individual de Elis Regina, Samba Eu Canto Assim, de 1965. Participou do show de lançamento de Marisa Monte. Em 2003, foi indicado ao Grammy pelo álbum Estação Leopoldina.
Um malandro erudito
É assim que o violinista, compositor e arranjador Gabriel Improta define Paulo Moura. Os dois trabalharam juntos em AfroBossaNova, de 2009, pela Biscoito Fino, último CD lançado em vida pelo clarinetista. “Ele tinha o lado bom do malandro. Sempre de chapéu, vestido de branco e bem humorado. Quando tocava mostrava todo o seu swing e balanço.
Tinha a ética do bom malandro, mas ao mesmo tempo mostrava toda a sua erudição”, lembra. A disciplina é outra das características do instrumentista. “Paulo nunca foi um boêmio inconsequente. Pelo contrário, era muito rigoroso, estudioso e sempre levou muito a sério sua atuação no palco. Ele tinha plena consciência do próprio talento”, comenta Zuza.
Os dois se conheceram quando o músico trabalhava na Rádio Nacional. A amizade rendeu muitas conversas sobre jazz e MPB, em especial sobre as músicas de Charlie Parker, além de trabalhos, como o premiado show Raros e Inéditos, no Sesc Pompeia.
Mesmo após ter alcançado o merecido reconhecimento, Paulo apontava a questão racial como obstáculo para galgar alguns espaços na sociedade. “Meu apego à música erudita era como um hobby secreto. (...) Tinha de considerar como um hobby, porque, na verdade, haviam me alertado de que seria muito difícil, no Brasil, um regente negro se realizar”, lembra o músico em sua biografia.
No entanto, o desafio foi superado: ele regeu sua Orquestra de Música Popular em 1968. Vinte anos depois, em comemoração aos cem anos da abolição da escravidão, foi a vez de comandar a Orquestra Sinfônica de Brasília e apresentar a peça Arredores da Lapa, de sua autoria. E durante a inauguração da ECO-92, no Rio de Janeiro, lá estava Paulo Moura conduzindo a execução de Suíte Carioca, outra composição sua feita para orquestra sinfônica, com coral de 150 vozes infantis e grupo instrumental de jazz.
“Acho que a MPB toda é uma tentativa de juntar as pontas do Brasil. Desde a Bossa Nova, passando pela Tropicália, há esse movimento das classes altas se aproximarem das mais baixas. O Paulo é a própria encarnação disso porque é capaz de juntar o popular e o erudito com muita competência e altíssimo nível. Ele fez isso melhor do que todo mundo. Sua arte é sincera porque ele faz parte dessa origem negra, do jazz, além de ser muito forte sua relação com a música afro”, elogia Improta.
Encontro de sons
Após o lançamento de Confusão Urbana, Suburbana e Rural, de 1976, Paulo Moura ganhou o mundo, impulsionando sua carreira de solista internacional ao apresentar-se no Festival de Artes Negras, na Nigéria, França, Holanda e Japão.
Produzido por Martinho da Vila, o álbum é considerado um marco da música instrumental popular brasileira por misturar percussão a instrumentos de sopro, de big bands e de choros. Cliff explica que o encontro do jazz, da gafieira, do choro, do sopro e de vários outros ritmos populares representando o lado urbano, suburbano e rural da música é extremante ousado e sofisticado. “Se não fosse bem amarrado, poderia virar um caos”, comenta. No entanto, ocorre exatamente o contrário. É uma obra completa. “Não têm faixas isoladas. É preciso ouvir o disco inteiro”, recomenda.
Ao falar da parceria, Cliff lembra ainda que Paulo Moura foi quem o levou pela primeira vez às estudantinas. “Naquela época, dificilmente eu conheceria esse ritmo fora do Brasil”, comenta. Segundo ele, esse é um tipo de música em que a base rítmica é priorizada e o Paulo, sempre com muito bom gosto, fez da gafieira um meio, um caminho para colocar o som, o arranjo, a mistura de ritmo e percussão que ele estava buscando. Fez isso sem tirar a intensidade do baile, da dança. É levar o som para um lugar agradável, onde “o público gosta e o músico gosta”.
Sem choro
Paulo Moura morreu aos 77 anos em 12 de julho de 2010, depois de seis anos de tratamento de um câncer linfático. Halina lembra com emoção as duas músicas que ele fez para ela: Linda, de Estação Leopoldina, e Tarde de Chuva, do álbum Dois irmãos.
Orgulhosa, diz que ainda vamos ouvir falar muito de Paulo. Segundo ela, há muita coisa inédita feita por ele. Algumas já estão disponíveis, como Paulo Moura & André Sachs – Fruto Maduro, com músicas inéditas em resultado da parceria entre os dois no período de 2004 a 2007. O álbum foi encartado na biografia de Paulo Moura e agora é lançado pela Biscoito Fino. Pela mesma gravadora foi lançado o primeiro álbum póstumo, Alento, em 2011.
Além disso, em julho de 2013 será possível conferir o Acervo Digital Paulo Moura, que trará um enorme conjunto de partituras, arranjos, anotações e todo tipo de material escrito pelo músico desde a década de 1950.
Comemoração em dose dupla
Programação especial homenageia o instrumentista Paulo Moura, que completaria 80 anos, e festeja o aniversário do Sesc Pompeia
A abertura da programação especial em homenagem aos 80 anos de Paulo Moura, no Sesc Pompeia, no dia 18 de julho, foi marcada pela banda ConFusão: o Som dos Subúrbios Paira no Ar (foto), formada por onze músicos e liderada pelo pianista e maestro Cliff Korman. Juntos eles apresentaram um show de gafieira, com arranjos criados pelo instrumentista, compositor e arranjador, evidenciando a ligação de seu trabalho com a cultura popular e suburbana, além de reverenciar aquele que é considerado o álbum que melhor sintetiza a obra do instrumentista, o disco Confusão Urbana, Suburbana e Rural, de 1976.
“A ideia de celebrar os 80 anos do nascimento de Paulo Moura proposta pela Halina [a psicanalista Halina Grynberg, esposa, empresária e produtora do músico], que é a curadora do projeto, veio se somar a nosso desejo de festejar os 30 anos do Sesc Pompeia”, lembra o técnico de programação da unidade Thiago Freire.
Outro importante encontro ocorreu nas noites de 20 a 22 de julho, quando cinco grandes pianistas – Wagner Tiso, Clara Sverner, Benjamin Taubkin, Arthur Moreira Lima e Cliff Korman – foram reunidos no mesmo palco para relembrar os momentos de parceria com Paulo. Durante a homenagem, eles exploram aquilo que o clarinetista fazia de melhor: aproximar o clássico ao choro e ao jazz.
A Cia. de Mysterios e Novidades, do Rio de Janeiro, e a banda de rua da orquestra SAGA, de São Paulo, fazem uma intervenção em referência a enredos da Lapa carioca, berço da miscigenação no Rio e do encontro e convivência entre as esferas rural e urbana. Durante a apresentação, no dia 12 de agosto, ocorrerá performances de rua com perna de pau, teatralização de temas ligados ao carnaval e outras manifestações que se encontrarão com a orquestra de gafieira, promovendo um grande festejo na rua principal do Sesc Pompeia.
A programação segue até 2 de setembro com a exposição Paulo Moura 80 anos – Pausa e Silêncio, que traz objetos pessoais e instrumentos musicais, organizados a partir do mote palco e intimidade, luz e sombra, resultando em um rico inventário de suas marcas afetivas e musicais.
Além disso, a cada 15 dias, no mês de agosto, a Choperia do Sesc Pompeia vai trazer uma banda de gafieira. “Essa é uma referência às gafieiras realizadas por Paulo Moura nessa unidade na década de 1980”, comenta Thiago Freire.
Tributo aos mestres
Paulo Moura reverenciou grandes nomes da MPB com discos memoráveis
Ao longo da carreira, Paulo Moura homenageou grandes nomes da música. Exemplo disso foi a gravação de Pixinguinha: Paulo Moura e os Batutas, em 1997, em comemoração ao centenário do compositor de Carinhoso, considerado o pai do choro.
O disco é uma referência aos Oito Batutas, que se apresentou em Paris, formado por Pixinguinha, Donga, Nelson Boina, China, José Alves, Raul Palmieri, Jacó Palmieri e Luís de Oliveira. No repertório do grupo eram apresentados choro, maxixe, canções sertanejas, batuques e cateretê. Na volta ao Brasil, o grupo foi renomeado para Os Batutas; influenciado por outros músicos com os quais tiveram contato durante a viagem, o conjunto passou a utilizar saxofone, clarinetas e trombetas, instrumentos característicos do jazz.
Em entrevista à Folha de São Paulo (8/4/97), Paulo Moura explicou como foi interpretar alguns dos clássicos de Pixinguinha: “Tentei modernizar mudando o andamento e incrementando a percussão”. Com esse álbum, ele ganhou o Primeiro Grammy Latino para Música de Raiz.
Em 2001 foi a vez de reverenciar Sebastião Barros, mais conhecido como K-Ximbinho, com o CD K-Ximblues, que ganhou o Prêmio Rival Petrobras, como melhor produção independente. O próprio Paulo, em seu site oficial, revelou o porquê da homenagem. Ele admirava sua versatilidade, a composição de choros orquestrais e a forma de tocar jazz. “Excelente clarinetista e vibrafonista, um artista multimídia, diríamos hoje em dia.” Entre seus grandes sucessos estão os choros Sonoroso e Eu quero é sossego.
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