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Artesão de Ilusões
Viver conforme a própria ideologia e guiado pelos valores artísticos pode ter uma conotação utópica hoje, quando as relações humanas estão cada vez mais dissolvidas num contexto acelerado e pouco íntimo. Mas é justamente a intimidade com o fazer artístico que nos faz crescer os olhos sobre os trabalhos de Wesley Duke Lee. Desenhista com pleno domínio da técnica e conhecimento sobre a teoria da história da arte, optou por não produzir doutrinado sob nenhum movimento ou escola. Dizia-se do princípio de que o artista não sabe o que está fazendo. O contrário seria uma demonstração de mediocridade.
Intitulado “realista mágico”, nasceu em São Paulo, em 21 de dezembro de 1931. No entanto, durante a vida optou por flertar com o mundo. O termo realista mágico foi cunhado pelo crítico de arte Pedro Manuel Gismondi, sendo um pretexto para que a herança surrealista de Duke Lee viesse à tona. Houve até a composição de uma marca e fotos tiradas no estilo modernista, fazendo referência à Semana de Arte Moderna de 1922. Uma dessas imagens ilustrou matéria publicada na extinta Revista Manchete, em 1965. Tudo para mostrar o êxito da sua participação na Exposição de Arte do Japão, ?a 8º Bienal de Tóquio.
Da infância entre a casa dos pais na cidade e a dos avôs no bairro de Santo Amaro, veio a adolescência e o curso livre de desenho no Museu de Arte de São Paulo (Masp), aos 19 anos. A ideia do curso era reproduzir a filosofia da Bauhaus, uma fusão da Academia de Belas Artes com a Escola de Artes Aplicadas de Weimar, Alemanha. Segundo o livro Wesley Duke Lee: Um Salmão na Corrente Taciturna, da historiadora da arte Cacilda Teixeira da Costa, esse foi um momento de particular efervescência na cidade, decorrente da criação do Masp (1947), do Museu de Arte Moderna (MAM-SP, 1949) e da Bienal Internacional de São Paulo (1951).
De 1952 a 1955 vem a sua fase americana. Duke Lee viveu em Nova York e, na Parsons School, iniciou seu treinamento para a publicidade e um contato maior com a História da Arte, que era parte da sua formação como publicitário. Em carta enviada aos pais, conta que uma vez por semana trabalhava no Museu Metropolitan e, para descansar, passeava pelas galerias, deparando-se com um acervo de obras realistas e uma seção com pintores impressionistas. Embora tenha tido contato com a Pop Art, sua estética e suas preocupações não chegaram a conquistá-lo. O que lhe chamou a atenção no período foram a corrente surrealista e o grupo Dadaísta, além das obras de Marcel Duchamp.
Ensinar para aprender
Nada mais emblemático para quem está em formação do que o contato com um professor que sirva de exemplo e inspiração. Karl Plattner (1919-1986), um italiano que veio morar no Brasil pela primeira em 1952 e teve Duke Lee como seu aluno ao longo da década. Avesso a discussões políticas, ideológicas ou formais, Plattner era favorável à fidelidade da figura. Do aprendizado com o professor surgiu a vontade de retribuir, que foi saciada quando aceitou ser professor de Carlos Fajardo, Frederico Nasser, José Resende e Luiz Paulo Baravelli e, posteriormente, com a fundação por seus discípulos da Escola Brasil, que ajudou na formação de novos artistas e funcionou até o ano de 1974 no bairro de Santo Amaro, com o compromisso de promover o ensino da arte em bases não acadêmicas.
Outro mestre que influenciou Duke Lee foi o cineasta Ingmar Bergman. Nos anos de 1960, a insatisfação e o receio de se dedicar unicamente às artes plásticas levou o brasileiro a tentar o caminho do cinema. Havia trabalhado como assistente de direção em dois documentários, então cogitou a hipótese. E rumou para a Suécia em busca do cineasta, com o desejo de trabalhar e, consequentemente, aprender. A viagem não foi exatamente como planejou. Bergman não o aceitou em sua equipe. O conselho foi para que Duke Lee concretizasse suas aspirações com o cinema no Brasil, afirmação que o redirecionou para o único caminho que fazia sentido, o das artes plásticas.
Além do que se vê
Duke Lee foi um dos propagadores da volta da figura e do uso do espaço nas obras. “Ele queria sair do quadro, extrapolar o espaço. O que na época chamou de ambiente passou a ser as instalações, tão presentes em qualquer exposição de arte contemporânea”, contextualiza Cacilda, que pesquisou a sua vida e obra por 20 anos. Além disso, a pesquisadora ressalta a antecipação do contato com as intervenções sonoras e de imagem. “O Helicóptero (1968) foi a primeira instalação com TV no Brasil e, infelizmente, está em péssimo estado de conservação”, completa.
O descaso também é mencionado por Nelson Leirner, amigo na empreitada da fundação da Rex Gallery, misto de galeria com espaço experimental em que os artistas, além de ter um lugar para expor, podiam gerir seu negócio e desenvolver um programa cultural. A Rex acabou constituindo um núcleo de reações ao sistema da política para as artes. “O que infelizmente acontece dentro da arte brasileira é o abandono do artista. Ele nunca foi considerado um artista da moda e foi esquecido com todo o seu valor. Esse grupo continua sendo um dos movimentos mais importantes do Brasil, tanto pela novidade quanto por sua ruptura”, relembra Leirner.
Outra inovação trazida por Duke Lee foi o primeiro Happening, que aconteceu em 1963, no João Sebastião Bar e misturava cinema, estímulos sensoriais e dança. A intenção era expor a série Ligas, que tinha como objeto o universo feminino e havia sido recusada por galerias de Roma, Milão e pela Bienal de São Paulo, devido ao caráter erótico. Cacilda define o trabalho como uma tentativa de conhecer a si mesmo por meio desse mundo que ele “amava, desejava, temia, odiava, via e imaginava para poder penetrar na realidade que tentava revelar”.
A Fortaleza de Arkadin
Em 1990, Wesley aceitou o convite do comissário brasileiro Casimiro Xavier de Mendonça para a 44ª Bienal de Veneza e projetou especialmente para a ocasião a Fortaleza de Arkadin, uma instalação feita com 144 toras de madeira e 21 xerografias, compondo uma cidade murada em forma de uma vulva. A obra marca outra etapa na trajetória do artista, que passa a experimentar novas técnicas e suportes para montar um painel na estação Trianon-Masp do metrô. O resultado foi Um Espelho Mágico da Pintura no Brasil, nome do conjunto de painéis que tomaram as paredes da estação no ano de 1991.
No ano seguinte, foi a vez de o Museu de Arte de São Paulo (Masp) organizar uma retrospectiva com trabalhos de um significativo período de sua carreira, entre os anos de 1953 e 1991. Daí em diante sucederam-se várias participações em exposições coletivas e individuais, para dar vazão a seu espírito inquieto. Leirner descreve o amigo como organizado e ativo: “Seu grande mérito foi nunca parar de trabalhar. Ele também construiu a sua própria casa ateliê em Santo Amaro. Íamos visitá-lo e éramos recebidos com aquela paciência oriental”.
E de Max Perlingeiro, amigo, diretor da Pinakotheke Cultural e organizador da retrospectiva que aconteceu no período da morte de Duke Lee – ocorrida em 12 de setembro de 2010, em decorrência de complicações respiratórias –, fica o retrato “de um homem que trabalhou a vida inteira, lendo e pesquisando antes de criar uma nova série de obras, que só ficavam prontas porque ele não tinha pressa”.
Homenagem ao mestre
Nos anos de 1960, o artista Luiz Paulo Baravelli estava em formação. Finalizou o curso de desenho/pintura e ingressou na graduação em arquitetura. Foi nesse período que teve como mestre Wesley Duke Lee. Mas não em uma relação de aprendizado acadêmica e sim dentro do ateliê. Baravelli estava no grupo de estudantes que procurou o artista com a intenção de tê-lo como professor. Daí em diante estabeleceram um intenso convívio de trabalho, culminando com a fundação da Escola Brasil, que reproduziu os ideais artísticos defendidos por eles. A seguir, um carinhoso depoimento de Baravelli sobre essa experiência:
Dez coisas que aprendi com Wesley Duke Lee
- Enquanto as pessoas morarem em casas com paredes, haverá lugar para a pintura.
- Quando todos estão trabalhando, eu estou brincando; ?quando todos estão brincando, eu estou dormindo.
- O jeito certo de se suicidar é usando uma pistola. Uma pistolinha de água com estricnina.
- Quem entendeu, entendeu. Essas pessoas serão doravante ?conhecidas como “a elite”. Às outras sugiro um pouco de estudo.
- Deve-se começar o dia no estúdio varrendo bem o chão.
- Você vai ser realmente um bom artista quando não conseguirem ?mais encaixar seu trabalho em uma exposição coletiva.
- Uma carreira de artista não é uma corrida de 100 metros; é uma maratona de 40 quilômetros.
- Quero ir ao céu, claro. Mas não com esses caras aí.
- Há problemas bons e problemas ruins. Evite os ruins.
- Elegância é algo que acontece quando as coisas vão mal.
Registros audiovisuais
O processo criativo do artista e suas inquietações pessoais são tema de relatos poéticos e não lineares em forma de documentário
A exibição de Arkadin d’y Saint Amér, documentário sobre ?Wesley Duke Lee, será feita pelo SescTV, em 12 de setembro, dia em que se completam dois anos de seu falecimento. Após a estreia, será possível conferir as reapresentações, marcadas para sábado (15), às 14h; domingo (16), às 20h; e terça (18), às 19h. Lançado em 2009 e dirigido por Cacilda Teixeira da Costa e Sérgio Zeigler, o curta-metragem, uma homenagem ao artista, retrata sua viagem à Alemanha, em 2001.
O título do documentário é referência ao alter ego de Duke Lee. Dividido em três atos narrados por Zuca Ardan, um dos heterônimos do poeta Carlos Felipe Saldanha, o filme conta as aventuras de Arkadin d’y Saint Amér. A narrativa não segue ordem linear, evidenciando o viés poético da produção. O principal motivo da viagem de Duke Lee era se reencontrar com Sabine Berg, musa da sua série Thriumpho de Maximiliano, composta de desenhos feitos de diversos materiais.
Um desdobramento inesperado foi ouvir de sua musa que estava velho, o que provocou reflexões sobre a frustração e a passagem do tempo. “Mais do que o retrato do artista, o que encontramos durante a narrativa é o retrato do homem, suas influências, seu processo criativo e o compromisso de transmitir o conhecimento aos novos talentos, motivo pelo qual surge a Escola Brasil [fundada por seus discípulos com o compromisso de promover o ensino da arte em bases não acadêmicas]”, afirma a animadora cultural do SescTV Sílvia Garcia. Na sequência de Arkadin d’y Saint Amér, será reexibido um episódio da série O Mundo da Arte – Wesley Duke Lee, O Artesão de Ilusões. Por meio de depoimento de críticos e historiadores, a série contextualiza trabalhos de artistas relevantes no cenário nacional, aproximando os criadores dos seus admiradores.
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