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Giselle Beiguelman
por Giselle Beiguelman
A artista digital e pesquisadora Giselle Beiguelman sempre foi inquieta. Quando a internet ainda era quase desconhecida no Brasil, a professora do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) já havia criado uma forte relação com as mídias digitais, sendo uma das responsáveis pelo surgimento do UOL, o conhecido provedor de conteúdo à internet brasileiro. Seus trabalhos com artemídia resultaram em diversas obras premiadas, com destaque para O Livro Depois do Livro (1999), egoscópio (2002) e Fast/Slow_Scapes (2007). Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, a convidada desta edição falou sobre o início de sua carreira, contou como foi o surgimento do UOL e comentou sobre a lógica de compartilhamento nas redes. “Hoje em dia, é comum a produção de aparelhos para um consumo mais individualizado”, afirma. “Paradoxalmente, a palavra-chave da cultura digitalizada é compartilhamento.” A seguir, trechos.
Trilha digital
Comecei a trabalhar com internet em 1994. Fiz parte da equipe que implantou o UOL e desenvolvo projetos para celular desde 2001, quando se começou a discutir a possibilidade de os celulares terem conexão com a internet. Fiz os meus projetos artísticos usando celular, o que na época foi algo bastante marcante e acabou se tornando um fato histórico. Isso é bastante curioso, porque na época o celular tinha uma velocidade de conexão que era menor que a do fax. Era um tempo em que nem se falava de internet propriamente dita. Para celular se falava em sistema WAP (Wireless Application Protocol) e havia toda uma discussão de como elaborar, transmitir, havia formatos próprios de imagem, etc.
Recentemente, o Ronaldo Bressane [escritor, jornalista e editor] disse que nós somos jovens há pouco tempo. Isso é um atestado desse fato. Basicamente eu não tenho nenhuma formação em arte nem em comunicação. Eu fiz graduação, licenciatura e doutorado em História e nunca imaginei que trabalharia com algo fora do campo da prática historiográfica. Trabalhei mais de dez anos no patrimônio histórico da Eletropaulo, quando ela era estatal. Havia um departamento próprio de pesquisa, no qual comecei a me interessar pela tecnologia como uma questão cultural e estética. A minha aproximação com o universo digital se deu muito em função da relevância que a poesia visual e a poesia concreta tinham na obra paulista nos anos 1980. Quando foi colocado o computador no patrimônio histórico, era um Windows 3.1 com tela colorida. Aquilo foi uma descoberta. A minha tese de doutorado na USP foi uma das primeiras a serem digitadas no computador. Lá na USP tinha que fazer uma inscrição para imprimir a tese, onde havia uma fila. Tinha que se organizar bem para não perder os prazos.
Enfim, fui testando e imprimindo papéis diferentes. Entre 1993 e 1994, houve o projeto Arte e Cidade, que inclusive foi a primeira intervenção realizada no Sesc Belenzinho. Uma das ações se passou no prédio onde eu trabalhava, no edifício da Eletropaulo, onde é o Shopping Light. Um dos projetos era o CD-ROM desenvolvido por aqueles artistas que participavam da exposição. Durante a apresentação eu via aquelas coisas aparecendo e se transformando e pensei: “Nossa, eu quero fazer isso!”. Realmente comecei a me digladiar mais cotidianamente com esse universo. Sou totalmente autodidata e naquela época começou a possibilidade de existirem serviços de fato voltados à internet comercial no Brasil. Ainda era uma miragem. Sei que para pessoas um pouco mais novas isso tudo deve parecer uma história do além, mas de fato foi assim. Em 1994 a gente não sabia se ia ter internet ou não; tinha em alguns lugares como USP e Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], mas era um mito. Em determinado momento, ocorreu a privatização das teles, a coisa se acelerou muito rápido e apareceu a oportunidade de trabalhar no UOL – antes de ser o que é hoje –, que foi uma verdadeira TV Tupi no começo. Todo mundo aprendeu a fazer fazendo. O pessoal acaba brincando que eu fiz doutorado em História e livre-docência no UOL.
Bem para todos
Hoje em dia, é comum a produção de aparelhos para um consumo mais individualizado. Paradoxalmente, a palavra-chave da cultura digitalizada é compartilhamento. Mesmo o uso individual só é validado – até corporativamente – na medida em que ele é compartilhado. Com toda a sua perversidade, é um sistema primeiro elaborado a partir da lógica do compartilhamento, e a reputação não se constrói mais pela exclusividade do acesso que você tem a determinadas coisas, mas pela sua capacidade de multiplicar entre vários o acesso que você dá a elas. Essa é uma lógica que vai da cultura das celebridades à cultura underground, ou seja, ela é um dado do processo de digitalização da cultura como um todo.
Um dos embates político-contemporâneos mais interessantes é que a própria rede só existe porque ela dependeu e ainda depende desse universo do conhecimento colaborativamente desenvolvido. Você não vai achar o inventor da internet, mas os inventores. E como a rede se auto-organizou? Em algum momento da vida alguém já deve ter parado para se perguntar “Como assim o http:, a parte principal da internet? É grátis?”. Sim, isso é grátis. O protocolo não é de ninguém. Isso é surreal no mundo pós-capitalista em que vivemos. As pessoas pagam pelas operadoras de celular, mas não pagam pelo princípio fundador de tudo. No limite, aqui, para tudo funcionar, a gente precisa pagar a conta de energia elétrica. Ninguém é dono da eletricidade, mas tem alguém que a fornece e que se autodetermina dono. Já o protocolo de internet não tem um dono sequer, é um consórcio de todos nós. É isso que permitiu a existência da rede em si. Todas essas histórias um pouco míticas sobre os grandes capitalistas e não capitalistas da internet, no fundo, tratam de uma biografia de processos de desenvolvimento colaborativo.
“Ninguém é dono da eletricidade, mas tem alguém que a fornece e que se autodetermina dono. Já o protocolo de internet não tem um dono sequer, é um consórcio de todos nós.”