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Musa de muitas gerações

O violão entrou cedo na vida de Nara. Aos 12 anos ela já tinha aulas e apreciava o jazz
O violão entrou cedo na vida de Nara. Aos 12 anos ela já tinha aulas e apreciava o jazz




Nome expressivo da bossa nova, Nara Leão criou o próprio conceito de moderna música brasileira



A emancipação feminina no Brasil foi uma conquista lenta, que teve no universo das artes várias representantes. O direito ao voto, por exemplo, expressão direta da cidadania, só foi conquistado pelas mulheres no Brasil em 1932, ainda que na época apenas as casadas (com autorização do marido), viúvas e solteiras com renda própria pudessem votar. Dez anos depois, em 1942, nascia Nara Leão, que mais tarde se tornaria ícone da música e da independência feminina.


Na década de 1950, ela e a família se mudaram de Vitória (Espírito Santo) para o Rio de Janeiro, indo morar no tradicional bairro de Copacabana. Aos 12 anos, a menina aprendia violão com o músico Patrício Teixeira e era fã do jazz norte-americano. No final da década, por volta de 1957, o apartamento localizado na Avenida Atlântica, no edifício Champ-Elysées, abrigou as históricas reuniões dos músicos que viriam a formar um dos mais renomados fenômenos musicais brasileiros, a bossa nova.


E tal pioneirismo a tornou, além de um expoente do futuro movimento, uma intérprete inovadora da Música Popular Brasileira (MPB). “Nara, ao lado de Elis Regina (1945-1982), é uma das formadoras do próprio conceito de “moderna” MPB, que surgiu por volta de 1964, 1966”, afirma o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), autor de livros sobre História e música popular, Marcos Napolitano. “A peculiaridade de Nara é que ela sempre se manteve muito independente da crítica e da mídia, ao contrário de Elis, mais ligada às demandas da indústria fonográfica, até pela enorme popularidade que possuía.”


Samba Session


Em setembro de 1959, Nara assiste ao I Festival Samba Session na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), conhecido por ser um dos primeiros shows a reunir os músicos envolvidos com a bossa nova.


No mesmo ano, já no mês de novembro, Nara faz sua estreia como cantora, no show chamado Segundo Comando da Operação Bossa Nova. Entre as canções interpretadas, estava Se é tarde me perdoa, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli (1928-1994), este último namorado de Nara nos anos 1950. Os dois se conheceram nas reuniões musicais na casa da cantora.


Os encontros de amigos se tornaram assunto da imprensa logo na virada da década. O jornal Correio da Manhã chegou a acompanhar e publicar em seu encarte, a revista Singra, uma dessas reuniões no apartamento de Nara.


Sérgio Cabral reproduz em seu livro Nara Leão – Uma Biografia (Companhia Editora Nacional/Lazuli Editora, 2008) uma declaração de Nara dada ao Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), na qual ela definia seu papel na época: “Eu funcionava para o grupo como uma espécie de computador. Sabia de cor todas as letras, melodias e acordes, mas só podia abrir a boca para cantar quando alguém precisava que alguma música fosse lembrada. [...] Acho mesmo que só permaneci no grupo por causa da minha casa. Ninguém acreditava em mim, mas, também, ninguém me escutava cantando”.


No entanto, a voz e o talento de Nara não tardaram em despontar. Enquanto se dedicava à prática da xilogravura, participou de apresentações pelo Brasil e, em 1963, fez seu primeiro show como profissional no espetáculo “Pobre Menina Rica”, no qual dividia o palco com Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (1913-1980), fase em que se desdobrou em aparições em programas de TV e na gravação do primeiro disco, o qual estampava seu nome no título.


Boa de crítica e de público


A boa aceitação de seu trabalho levou Nara a estrelar o espetáculo Opinião. No entanto, foi obrigada a deixar o projeto em decorrência de problemas na garganta. Ao sair, Nara indica como sua substituta uma jovem e desconhecida cantora que a impressionara e viria a surpreender muitos brasileiros, a baiana Maria Bethânia.


Na opinião do jornalista e músico Rafael Cortez, idealizador do show tributo Cantoras de Hoje Cantam a Nara de Sempre, previsto para ocorrer no primeiro semestre de 2014, o disco essencial da cantora é justamente este de sua estreia. “Nara, de 1964, era esperado como um LP de bossa nova, com músicas alienadas, cantadas por uma garota rica e bonita da Zona Sul do Rio. Eis que ela surge com um trabalho apurado, mostrando sambas que coletou nos morros cariocas, canções de denúncia das desigualdades, provocações ao sistema e muita, muita opinião. Nascia a Nara artista. Essa que infelizmente nunca teve outra similar e mantém uma lacuna profunda nesse Brasil mais pobre musicalmente que temos hoje”, opina.


Para o músico Hélio Ziskind, outro álbum especial é Meu Primeiro Amor (1975), que marca a volta de Nara para o Brasil depois de um período na França. “Em quase todas as canções está presente o tema da separação e da saudade. Sonoramente, tem elementos da bossa nova, mas equilibrados de modo muito maduro com as raízes da nossa música popular. É um disco que não envelhece”, garante. Para o músico, os discos que vieram depois dele parecem transmitir uma vontade mais pop, por assim dizer, uma expansão em termos de estilos. “À sua maneira, Nara faz mergulhos na música brasileira com a mesma elegância e concisão de um João Gilberto ou Caetano”, compara.


Vendo a moça passar


Talvez, uma das imagens mais presentes na memória sobre Nara seja sua participação no Festival da Música Popular da Rede Record, em 1966, defendendo duas canções, O Homem, de Millôr Fernandes, e A Banda, de Chico Buarque. E não deu outra. A Banda venceu o festival, juntamente com Disparada, do compositor Geraldo Vandré. Porém, mesmo com a bem-sucedida trajetória, no início dos anos 1970, a musa praticamente se retirou da vida pública, dado o clima de repressão e controle das artes que havia no Brasil, postura que evidencia um descompromisso em relação à mídia e à estrutura fonográfica que começa a se desenvolver.

Vítima de complicações decorrentes de um câncer, Nara faleceu em 1989. Antes de se internar na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro, a cantora excursionou por algumas cidades da região Norte, fazendo seu último show em Belém do Pará. Para o professor Marcos Napolitano, Nara ocupou um papel central na cena musical, cultural e política do Brasil entre 1964 e 1972. “Seus discos entre 1964 e 1968 são antológicos e fundamentais para compreender a MPB nascente, o engajamento musical e a música como veículo de crítica cultural”, afirma.


“Acho que este momento da sua obra ainda está por ser devidamente analisado pelos historiadores da canção brasileira. Quase sempre se fala de Nara a partir de outros temas – a bossa nova, o show Opinião etc –, mas a sua trajetória artística particular ainda precisa ser mais bem focada.” A discografia completa da cantora pode ser ouvida em seu site oficial: www.naraleao.com.br.


PENSAMENTOS MUSICAIS

A carreira da Nara Leão desenvolveu-se entre dois movimentos importantes da música popular, a bossa nova e a tropicália

No livro História e Música – História Cultural da Música Popular (Editora Autêntica, 2002), escrito por Marcos Napolitano, fica evidente que a eclosão da bossa nova, em 1959, marcou o surgimento não só de uma outra historicidade para a esfera da música popular, mas também de outro pensamento musical, mais voltado à valorização da mistura dos gêneros brasileiros com as tendências modernas da música internacional de mercado, como o jazz e o pop.


Outro apontamento importante que vai ao encontro do pensamento de Napolitano pode ser encontrado no texto de Paulo Venâncio intitulado “Um pensamento musical”, publicado em 1984, no Folhetim, da Folha de S.Paulo. No registro, o autor afirma que a bossa nova foi a “primeira e única tentativa de pensar a música brasileira em sua totalidade. Está longe de ser um estilo ou gênero musical. É um pensamento musical, uma forma de refletir sobre música [...] o advento definitivo da música popular moderna no Brasil”.


A trajetória de Nara, que se tornou um dos expoentes de tal movimento, se desenvolveu entre o surgimento da bossa e a Tropicália – inicialmente encarada como um movimento crítico da MPB nacionalista e engajada. 
“A bossa nova foi uma escola estética e uma forma de sociabilidade, que teve Nara como uma das protagonistas”, explica Napolitano. “Mas acho que a principal marca da cantora foi a abertura que ela operou, a partir da bossa nova, para outros gêneros e estilos de música brasileira.”


MEMÓRIA AFETIVA


Hélio Ziskind relembra toda a doçura e riqueza melódica contida no disco Meu Primeiro Amor


A abertura do projeto O que é, O que é – Artes para Crianças, que aconteceu de 11 a 20 de outubro no Sesc Belenzinho, ficou sob o comando do intérprete e compositor Hélio Ziskind, que tocou na íntegra o disco Meu Primeiro Amor, lançado em 1975, por Nara Leão.


A atividade foi elaborada pela Gerência de Ação Cultural do Sesc e desenvolvida pelo Núcleo Socioeducativo da unidade.


Ziskind prestou essa homenagem às crianças e a Nara. “Além de continuar produzindo para o público infantil, ele fez parte da história de muitas pessoas, tanto pelo seu trabalho com o Grupo Rumo quanto pelas composições que fez para programas como Cocoricó, Glub-Glub, Castelo Rá-Tim-Bum”, afirma a técnica do Núcleo Socioeducativo, Aline Medeiros de Souza.

Para Ziskind, os méritos do disco se encontram na beleza das canções, dos arranjos e na maneira direta e sem vaidade com que Nara canta. “Cantar um disco na íntegra não é uma viagem rápida de avião. É uma estadia num lugar, é andar a pé por ele. Os arranjos e as harmonias surpreenderam a todos os músicos”, recorda. “Ao fazer um show com esse disco eu quis sentir, na prática, como as crianças reagiriam às canções, ouvidas não na cama, à noite, mas no palco, num ambiente de show. Fiquei satisfeito com a reação: as crianças ouviram e captaram.”