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Paulo Cesar de Araújo

Crédito: Leila Fugíí
Crédito: Leila Fugíí



O historiador e jornalista fala da pesquisa sobre a censura à música brega durante a ditadura e defende a liberação de biografias não autorizadas


Historiador e jornalista, Paulo Cesar de Araújo é autor de Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002), sobre a censura à música brega durante a ditadura militar, Roberto Carlos em  Detalhes (Planeta, 2006), que teve distribuição proibida em 2007, e O Réu e o Rei (Companhia das Letras), recém-lançado, sobre os bastidores do caso. No ano passado, envolveu-se na polêmica com o grupo Procure Saber, em que músicos como Roberto Carlos, Caetano Veloso e Chico Buarque defenderam a proibição de biografias não autorizadas no Brasil. “O que assustou Roberto Carlos foi a qualidade do livro. Se fosse um livro ruim, ele deixaria para lá. Quanto mais elogios eram feitos, mais ele ficava irritado”, afirma. Na entrevista a seguir, Paulo fala sobre sua posição quanto ao tema e sobre o lado transgressor da música brega brasileira.


Após ter sido apreendido em 2007, seu livro sobre o Roberto Carlos se transformou em um símbolo da luta pela aprovação do projeto de lei que permite a publicação de biografias não autorizadas. Como foi aquela situação?
O Roberto entrou com processo civil e criminal. No civil, pedindo a apreensão do livro e uma multa de R$ 500 mil por dia. No criminal, pedindo a apreensão do livro e a minha prisão por um tempo superior a dois anos. Ele pediu tudo que era possível: prisão, apreensão, proibição e indenização. A Editora Planeta falou que o corpo jurídico me defenderia e defenderia a editora. Como eu nunca tinha tido processos, concordei. Aí veio o juiz do Rio, proibiu o livro com uma liminar e colocou uma multa de R$ 50 mil por dia. O juiz criminal marcou uma audiência de conciliação, que inicialmente pareceu uma coisa boa. Chegando lá, qual não foi nossa surpresa ao perceber que o juiz estava francamente favorável ao Roberto Carlos? Nós constatamos que a causa estava perdida. A multa pelo livro continuar à venda nas livrarias era de R$ 3 milhões, então a editora achou melhor entregar a obra e o Roberto retirar o processo. Foi nesse contexto, com essas condições, que o livro saiu de circulação. A editora entregou 11 mil livros que tinha em estoque, comprometeu-se a não fazer novas edições, e ele continua proibido até hoje. E, diferente de hoje, a questão não estava em debate. A polêmica toda veio depois da apreensão do livro.

Por que Roberto Carlos implicou com o livro?
Pelo fato de ser uma biografia não autorizada. O que há naquele livro que ele não saiba? Você imagina Roberto Carlos, com 50 anos de sucesso, preocupado em o livro falar que ele teve um romance com uma atriz? Ele convive com isso há 50 anos. Para entender o que o incomodou, você tem que entender sua personalidade obsessivo-compulsiva. Ele só faz o que ele quer, quando ele quer, da forma que ele quer, e é assim pelo menos desde 1965. Aí vem um cara que ele não conhece e faz um livro sem autorização, contando tudo que ele pretendia contar e não contar no livro. Ainda mais um livro de força, que chegou com capa da revista Bravo! e de segundos cadernos. O que assustou Roberto Carlos foi a qualidade do livro. Se fosse um livro ruim, ele deixaria para lá. Quanto mais elogios eram feitos, mais ele ficava irritado.

O que levou aquela constelação dos resistentes à ditadura, como Chico Buarque e Caetano Veloso, a se posicionarem contra as biografias não autorizadas?
Quando surgiu essa notícia de que Roberto Carlos estava se encontrando com Caetano, Chico e Gil, eu pensei que seria bom para arejar a cabeça dele, que vive num mundo mais empresarial do que artístico. Para minha surpresa, aconteceu o contrário. Foi um desastre aquilo. E depois ele ainda demorou a se manifestar e, quando deu entrevista ao Fantástico, mostrou uma posição menos radical do que a que os outros vinham tendo. Foi uma coisa sem cabimento. Como é que uma organização chamada Procure Saber poderia se aplicar à proibição de livros? Era uma contradição. Eu acho que o fator predominante foi dinheiro. Roberto Carlos, por exemplo, estava preocupado com isso, não com privacidade. Ele está preocupado que exista uma produção sem a participação dele, sem ser da forma que ele quer, e que renda dinheiro a outro. A Paula Lavigne disse com todas as letras que não é justo que só o biógrafo ganhe dinheiro. Caetano fala que não está preocupado que falem da vida dele, mas está solidário aos colegas. O Chico me parece o mais puro nesse sentido. Ele me pareceu preocupado com a privacidade realmente, até porque sempre foi reservado. Mas, nos demais, o que predominou foi o controle da obra e dos rendimentos do livro, que podem virar cinebiografias, filmes, séries.

Como historiador, você considera que o tipo de restrição que eles querem colocar acaba com a produção de historiografia no país?
Uns dizem que eles não tiveram essa percepção de que o que valia para eles valeria para o filho do Médici, que também pode querer ler os originais e ganhar uma porcentagem dos lucros. Será que eles têm um olhar tão voltado para o próprio umbigo que não perceberam? Na prática, você não poderia mais contar a história do país porque precisaria ter autorização e participação na vendagem. Isso inviabiliza qualquer produção independente no Brasil, e eles não tiveram essa noção? Não é possível. O Chico, como herdeiro dos direitos autorais de Visão do Paraíso, poderia ser processado. Por isso que a irmã dele foi mais esperta, por ser filha de historiador. Como é que o Chico não teve essa posição?

Quando você mostrou a gravação da entrevista que Chico Buarque negou ter dado, ficou claro que ninguém pode ser biógrafo de si mesmo?
Foi altamente didático. O livro já havia saído em 2006, quando ele não falou nada. No momento da polêmica do ano passado, a intenção dele me pareceu mostrar que as biografias não autorizadas estão na mão de irresponsáveis, mas isso acabou revelando o oposto do que ele pretendia: mostrou a necessidade de haver pesquisa, biógrafos isentos e questionamento dessas verdades.

Qual a sua expectativa para a mudança da legislação?
Estou otimista. O debate ajudou inclusive a levar os juízes a terem sentenças favoráveis. Alguns juristas defendem que não seria preciso mudar a legislação, bastaria ela ser bem interpretada. A legislação diz “salvo se autorizada a publicação de escritos”, no sentido de escritos que a pessoa deixou, como um diário ou um original de livro. Não é a produção de outro sobre ela. A produção intelectual de outro sobre ela não é dela. Outra parte da lei diz que a utilização da imagem de uma pessoa deverá ser proibida se destinada a fins comerciais. Finalidade comercial é usar a imagem de uma pessoa para vender um produto, e isso tem que continuar proibido mesmo. Mas jornais, livros e revistas não têm finalidade comercial, e sim cultural, ainda que sejam vendidos.

Nesse debate, muitas pessoas colocam a biografia como uma obra fechada, mas na verdade cada pessoa escreveria uma biografia diferente do Roberto Carlos, por exemplo. A biografia é uma interpretação?
Sim, é dessa multiplicidade de versões que você tem uma riqueza de personagens. Por isso que esse pensamento autorizado é totalitário, conservador e retrógrado em todos os sentidos. É uma visão empobrecedora da realidade, da história e da memória. Isso não pode prosperar, e não acredito que irá prosperar, em pleno século 21 e no estágio que nós estamos de um estado democrático. A Constituição brasileira é clara ao dizer que é livre a manifestação intelectual, científica e artística, independente de censura e licença. É liberdade de expressão.

Algumas pessoas veem as biografias como um instrumento de espionagem na vida alheia. Qual sua visão sobre isso?
Acho que quem diz isso não lê biografias. São leitores de colunas de fofocas. A biografia é uma janela para você entender uma época da sociedade. Se você lê a biografia do Garrincha, você passa por uma época do futebol brasileiro, as copas do mundo, e o Garrincha é o fio condutor. No caso do Roberto ele era um fio condutor para conhecer uma época da música e da sociedade brasileira. Claro, não existe biografia sem vida pessoal. A biografia vai sempre relacionar o público e o privado. É um gênero literário que trabalha com essas duas instâncias, mas um livro que só fala da vida pessoal é outro gênero.

Na sua pesquisa sobre música brega, você fala sobre a censura que os cantores sofreram na época da ditadura, apesar de eles nunca terem se destacado por serem da oposição. Que tipo de repressão era essa?
Na verdade havia dois tipos de repressão. Uma era a repressão política, que atingiu artistas como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gonzaguinha, que eram de oposição e tematizavam esse aspecto. O outro tipo era a repressão moral, não tão lembrada na historiografia, e que atingiu a música brega. Isso fazia parte da paranoia de que o comunismo internacional teria um plano de dominar as sociedades cristãs desestruturando o núcleo familiar, então os militares identificavam o questionamento da organização familiar como um ato de subversão. No caso da música brega, esse foi o aspecto mais visado, porque os cantores falavam muito de relações extraconjugais, amantes, divórcio e desencontros.

Era uma ousadia para o público da época?
Isso que é curioso. Os bregas estavam um pouco na contramão do seu próprio público, que era majoritariamente conservador. A música “Cristo, quem é você”, por exemplo, é uma exceção dentro da onda mística, que chegava ao Brasil com Tim Maia, Raul Seixas, Roberto Carlos, Jorge Ben, Ronnie Von. Uma música que diz “Cristo, quem é você? Fui na sua casa e não lhe encontrei” era uma ousadia. É por isso que eu digo que de certa forma eles foram mais transgressores que os cantores da MPB, que falavam para um público já convertido. Quando o Caetano falava “É proibido proibir”, ele não estava chocando o público dele. Os cantores brega, não. Eles estavam levando uma mensagem transgressora a um público mais conservador e católico, por isso eles tiveram músicas ou trechos proibidos.

O que os levou a ter essa posição em relação a comportamento e convicções religiosas?
É importante dizer que nem todos tiveram essa postura. Você encontra isso mais em alguns artistas e menos em outros. No caso de Odair José, isso é forte. Essa pergunta que você me fez eu fiz diretamente a ele, e a resposta foi que ele sempre desconfiou daquelas convicções conservadoras, mas que hoje não pensa mais dessa maneira. Então, entre os motivos, estavam a juventude e o senso crítico individual de cada um. Os cantores brega eram cronistas do cotidiano urbano e, como todo cronista, observavam e queriam expressar a realidade. Por isso falavam da empregada, do homossexual, do amor livre, do consumo de drogas, do divórcio. Eles comentavam aquilo que atingia mais diretamente a vida das pessoas. Eles não estavam preocupados com filosofia, que era preocupação de cantores universitários.

Essas temáticas relacionadas ao cotidiano estavam mais presentes na música brega do que na MPB de elite. A esquerda estava preocupada com outras coisas?
A esquerda tinha uma preocupação mais coletiva, tanto que em muitas músicas da MPB da época existe a expressão “meu povo”. Você não tem a palavra povo na música brega. Eles eram o povo e não tinham essa pretensão de serem portadores da voz de um povo.

Podemos dizer que esses cantores sofreram a repressão calados?
Com certeza. Na MPB, a censura se tornou um tema deles. Chico, por exemplo, escreveu a música “Essa passou”, na qual ele mostrava que havia várias músicas proibidas, que não passavam pela censura. Nos bregas, a censura ficava por isso mesmo. Não dava manchete no jornal, não repercutia, e isso ajudou o esquecimento.

Você acredita que isso ocorria porque os bregas não tinham noção do momento histórico que estavam vivendo?
A todos eles eu fiz a pergunta sobre onde eles estavam quando foi decretado o AI-5 e eles não lembravam. Um deles me falou que, quando ouviu falar de AI-5, pensou que era um grupo musical, como o MPB 4. Por terem uma formação mais proletária, eles não tinham muita consciência histórica do que estavam vivendo. Era como se a vida fosse sempre assim, tudo era muito natural. Já na MPB eles estavam mais conscientes disso e vivendo esse contexto histórico.

De onde vem o preconceito com a música brega? É um preconceito de classe?
As elites culturais brasileiras têm um critério de avaliação estética que valoriza aquilo que é tradicional e moderno. Não é à toa que os artistas preferidos da elite cultural são Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, que representam tradição, ou Caetano, Djavan, Elis, jazz, que representam modernidade. Invariavelmente é isso. Em cantores como Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano e Nelson Ned as elites não identificam nem tradição nem modernidade. O preconceito não é pelo fato de ser popular, porque a elite não despreza Zeca Pagodinho ou Martinho da Vila, que estão identificados com uma tradição de valor cultural para as elites. É um preconceito de classe nesse sentido, mas não no sentido de ser para um público mais pobre. Na verdade, na música brega você tem um duplo preconceito. É rejeitado por ser música de pobre e pelos autores não estarem enquadrados nem na tradição nem na modernidade.

Em países como Estados Unidos, é comum haver grandes intérpretes como Frank Sinatra dando nova roupagem a canções populares. No Brasil não existe essa maturidade?
Aqui sempre foi bem mais tarde. O próprio Luiz Gonzaga foi durante muito tempo desprezado pelas elites culturais. Era um cantor do povão. A partir do final dos anos 1960, o tropicalismo ajuda a incorporar essa questão dos opostos, da guitarra e do berimbau, chique e brega, e aí o Lupicínio Rodrigues e o Luiz Gonzaga foram assimilados. Isso pode vir a acontecer com o Waldick Soriano, por exemplo. Eu o cito porque defendo que ele é um gigante da música brasileira e a síntese desse gênero musical. Todo mundo conhece “Eu não sou cachorro, não”, a obra dele está no inconsciente coletivo nacional. Eu não acho ele menor que Nelson Cavaquinho, por exemplo.


“A proibição de biografias não autorizadas inviabiliza qualquer produção independente no Brasil. Na prática, você não poderia mais contar a história do país”
 

“A todos eles eu fiz a pergunta sobre onde eles estavam quando foi decretado o AI-5 e eles não lembravam. Um deles me falou que, quando ouviu falar de AI-5, pensou que era um grupo musical, como o MPB 4”


“De certa forma a música brega foi mais ousada que a MPB, por levar uma mensagem transgressora a um público conservador e católico”


“O brega é rejeitado por não se enquadrar nos critérios de avaliação estética das elites culturais brasileiras, que valorizam aquilo que é tradicional ou moderno”