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A construção do instante
Ao olhar para minha fotografia, estranhei aquela expressão e quase não me reconheci. Apenas me recordo que naquele dia fui pega de surpresa e não tive a oportunidade de me preparar, ajeitar a postura, o olhar ou o sorriso. Foi aquele instante fugidio entre a informalidade e a percepção da presença da câmera. Naquela imagem não posada, ainda sem retoques, o fotógrafo conseguiu traduzir o misto de tensão e vulnerabilidade daquele breve momento.
Em busca de entender e interpretar o real em imagens, muitos fotógrafos mergulham na vida de seus retratados. Claudia Andujar produziu seu famoso ensaio sobre os índios Yanomami convivendo com eles, fotografando seu dia-a-dia em comunidade e experimentando, ao mesmo tempo, um pouco de suas vidas e sensações, para traduzir a dor, o tédio, o prazer e o êxtase das pajelanças.
O documentário “O Sal da Terra”, que será lançado em DVD pelo Selo Sesc, traz algumas reflexões sobre o exercício constante de inter-subjetividade que é próprio da fotografia. O filme sobre o fotógrafo Sebastião Salgado, dirigido por seu filho Juliano Ribeiro Salgado e pelo cineasta alemão Wim Wenders explora a subjetividade do fotógrafo, imerso na realidade retratada. Apresentado e premiado recentemente no Festival de Cannes, na mostra “Um Certo Olhar”, o longa metragem é uma narrativa íntima e singular da vida e da obra do artista.
A narrativa partiu da percepção do filho de Sebastião Salgado ao começar a filmar em 2009, quando os dois conviveram com a tribo Zo’é, na Amazônia. O fotógrafo preparava o ensaio “Gênesis” e lançava seu olhar sobre os costumes de uma pequena tribo que vive isolada na floresta no norte do Brasil, enquanto a câmera de Juliano voltava-se para o fotógrafo.
Foi esse exercício de metalinguagem, essa investigação exaustiva do processo de trabalho do fotógrafo – seus momentos de encantamento, interesse, susto, surpresa e revelação - captada pelas lentes de Juliano, que proporcionaram as quinze mil horas de filmagem, editadas e transformadas por Wim Wenders na narrativa do documentário.
Participei de uma experiência reveladora durante a realização da exposição e posterior publicação “O Brasil Passa Pelo Sesc”, de 2007. Fotógrafos como Araquém Alcântara, Gal Oppido, Iatã Cannabrava, Mila Petrillo, Pedro Martinelli, Luiz Braga, Tiago Santana e coletivos como ImageMágica e Observatório de Favelas documentaram, com liberdade de expressão, a programação e o cotidiano das unidades do Sesc no Brasil, durante um período de quatro dias. O livro trouxe um mosaico de imagens que refletem as faces múltiplas da instituição, resultado não só das diferenças culturais entre Estados e cidades, mas justamente da diversidade de olhares.
Numa época de produção e circulação alucinada de imagens, impulsionada pela crescente facilidade das tecnologias digitais, nos surpreendemos com fotografias que se destacam e nos emocionam com a sua capacidade de interpretar o mundo em instantes, com seus múltiplos significados e leituras. A relevância desses instantâneos passa não somente pelo assunto escolhido, mas, fundamentalmente, pela interação subjetiva que o fotógrafo consegue estabelecer com seus temas e objetos.
Sandra Karaoglan, formada em Rádio e TV, é gerente adjunta do Centro de Produção Audiovisual do Sesc