Postado em
Páginas de Espírito Livre
Além de resgatar técnicas artesanais de produção, as atuais publicações independentes inovam no formato digital e ganham status de objetos colecionáveis
Passional, libertadora. Para quem produz e divulga uma publicação independente, as palavras escolhidas para falar sobre o assunto vêm sempre regadas de entusiasmo. Tal empolgação é uma das razões que fizeram as criações de arte impressa, fanzines e quadrinhos ressurgirem com força nos últimos anos, conquistando público, mercado e status de objetos colecionáveis. Nem o embate “papel versus digital” inibiu o novo ciclo de ascensão das publicações independentes: enquanto a grande imprensa busca saídas para não abandonar o papel, feiras de impressos alternativos veem o número de expositores e público se multiplicar.
“O papel, a tinta, a impressão, a costura... é tudo passional. Ver pronto fora do computador, poder passar a mão e folhear é muito mais legal”, comenta a criadora da Feira Plana, maior feira de publicações independentes do país, Bia Bittencourt. Na opinião de Bia, o que motiva as pessoas a produzirem vai além do papel ou da internet. “É enxergar a liberdade em criar, produzir e distribuir o próprio trabalho sem intermediários. O embate talvez seja contra a burocracia e as dificuldades em publicar, ou apenas poder fazer isso sozinho em casa do jeito que quiser”, diz ela, que considera os zines – como algumas publicações independentes são chamadas – objetos de espírito livre. “Tem a ver com autonomia. Com enxergar o processo inteiro do começo ao fim”, completa.
Revolução no fazer
Apesar dos zines terem se popularizado nos anos 1970 e 1980 com técnicas manuais de recortes e colagens, é inegável que as novas tecnologias trouxeram uma revolução para a produção independente. É o que constata o professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor do livro O Rebuliço Apaixonante dos Fanzines (Marca de Fantasia, 2011), Henrique Magalhães. As novas possibilidades mudaram diversas etapas da produção: desde a composição e montagem até a divulgação. Outro fator foi a redução dos custos de produção e impressão. “As impressoras a laser e as gráficas rápidas, que possibilitam pequenas tiragens, transformaram completamente a concepção das publicações independentes, que passaram a ter um aspecto por vezes até melhor que as publicações do mercado”, compara o professor. “Não seria demais afirmar que isso gerou um mercado dirigido, em contraponto ao mercado de massa.”
Henrique esclarece que, apesar de haver divergência nas nomenclaturas, o fanzine é apenas um dos diversos tipos de publicação independente. “Os fanzines são as publicações dedicadas à análise, informação e investigação sobre um sujeito artístico”, diz. Segundo o professor, há cada vez maior participação de autores e editores independentes em feiras e eventos, mas poucos produzem fanzines. Isso não quer dizer que eles saíram de cena. “Eles resistem em certos nichos renegados à massificação da internet e são usados como prática pedagógica em escolas e faculdades”, exemplifica.
Público cativo
Enquanto muitos fanzines propriamente ditos têm migrado para sites e blogs, outros tipos de publicações de arte impressa, quadrinhos, ilustrações, poesias e colagens se multiplicam. Na Feira Tijuana, realizada anualmente em São Paulo, o número de editoras participantes passou de 20, em 2009, para 120, em 2014. Segundo a editora e diretora do evento Ana Luiza Fonseca, há outro movimento visível para quem organiza as feiras: visitantes passaram a se tornar editores participantes. “A feira desperta interesse a ponto de motivar o público a se especializar na produção de publicações. Consequentemente, agrega mais público, como vimos ao longo das seis edições da Feiras, Tijuana”, detalha.
A maneira como o público visitante consome as publicações também se transformou. “Muitos agora colecionam arte impressa. É uma produção razoavelmente acessível, e que pode formar outra vertente de colecionismo de arte”, opina Ana Luisa. A editora ressalta ainda que o público é atraído por motivos que variam desde o conteúdo até a forma ou técnica. Para ela, os impressos trazem informações que criam um diálogo pessoal entre publicação e leitor: “Por isso, tornam-se objetos tão atraentes”.
Colcha de retalhos
Fanzines já nasceram com pé na contracultura e logo se tornaram ferramentas de comunicação autoral
Nos anos 1970 e 1980, a melhor maneira de conhecer bandas e se informar sobre a cultura underground era folheando as páginas de um fanzine criado com recortes, colagens e fotocópias. Como conta o livro O Que é Fanzine (Brasiliense, 1993), o nome “fanzine” surgiu como um neologismo formado pela contração dos termos ingleses fanatic e magazine, ou seja: a revista do fã. Por isso, por definição, é uma publicação alternativa e amadora, geralmente de pequena tiragem e impressa artesanalmente.
Os primeiros fanzines eram voltados para a ficção científica, então considerada uma subliteratura. O pioneiro foi The Comet, criado em maio de 1930 nos Estados Unidos. No Brasil, o primeiro fanzine a surgir também tratava de ficção científica. Era o Ficção, criado em 1965, em um clube de Ficção Científica de Porto Alegre (RS).
Se num primeiro momento os fanzines serviram apenas de canal para a integração dos fãs, logo partiram para a reflexão e troca de ideias. O fanzine Sniffing Glue, editado por Mark Perry a partir de 1976, foi um dos primeiros a conquistar maior projeção e se tornou porta-voz do movimento punk. No número dez, a publicação ganhou alcance internacional, com 8 mil cópias em offset (padrão mais utilizado na indústria gráfica pela capacidade de imprimir em alta qualidade e que consiste da interação entre água e gordura). Após ser abraçado pelo movimento punk, a partir dos anos 1980 e 1990 os fanzines passaram a se diversificar cada vez mais. Hoje, podem-se encontrar publicações sobre os assuntos mais variados, como música, cinema, quadrinhos, literatura e contracultura em geral.
Na internet, é possível encontrar material de diferentes zines nacionais que exploraram a mesma ideia do 'faça você mesmo' em diferentes momentos, como Esquizofrenia, Contravenção, Midsummer Madness e Kaskata.
Circulação de ideias
Feiras, oficinas e bate-papos incentivam a produção alternativa
Feira de Publicações Independentes
Criada com o objetivo de divulgar projetos editoriais, apresentar novas propostas e manter vivo o interesse na área, a Feira de Publicações Independentes do Sesc Pompeia completou, em 2014, três edições. Nos eventos anuais realizados desde 2012, reuniu edições independentes, realizou minicursos e bate-papos. “Entendemos que faz parte da ação cultural do Sesc dar visibilidade e acesso a essa produção artística. A produção atual, cada vez mais, é de grande qualidade e possui, por característica comum, uma incessante busca da experimentação”, comenta o supervisor das Oficinas de Criatividade do Sesc Pompeia, Guilherme Leite Cunha.
Design Mão na Massa
Em novembro e dezembro, as Oficinas de Criatividade do Sesc Pompeia oferecem o projeto Design Mão na Massa, uma série de cursos e workshops de design gráfico, ilustração e processos criativos. Entre os cursos oferecidos estão técnicas que vão da caligrafia à ilustração, passando por oficinas de processos criativos e outros temas como Imersão no Desenho Expandido, Diário Gráfico – o Livro como Suporte e Sign Painting.
Bate-papo sobre Fanzine e HQs
No dia 7 de novembro, o Sesc Itaquera promoveu um bate-papo sobre Fanzines e HQs com o quadrinista Marcatti, a arte-educadora, poeta e fanzineira Thina Curtis e o artista plástico, ilustrador e quadrinista Gau Ferreira. A conversa foi realizada na Biblioteca Municipal Raimundo de Menezes como parte do Festival do Livro e da Literatura de São Miguel Paulista. Organizado pela Fundação Tide Setubal com apoio do Sesc, o festival transformou, durante três dias, pontos de ônibus, praças, calçadas e escolas da Zona Leste de São Paulo em espaços literários.
Vozes distintas
A diversidade é a tônica da produção independente atual no Brasil, com temas que vão dos quadrinhos à arte impressa
Dazibao - Com dois números publicados neste ano, a revista independente de crítica de arte aborda arte e cultura em suas relações com economia, política e poder. A ideia é trazer à tona discussões contemporâneas, a partir do prisma contestatório, procurando alargar os debates sobre arte e cultura.
Kaput Livros - Criado pela organizadora da Feira Plana, Bia Bittencourt, começou com publicações que sobraram da feira e logo tornou-se uma livraria e editora de publicações nacionais e internacionais de diferentes estilos: fotografia, ilustrações, poesias, colagens e outros tipos.
Miolo Frito - Criado em 2013, é uma publicação independente de quadrinhos feita pelos colegas Adriano Rampazzo, Benson Chin, Breno Ferreira, Camila Torrano, Shun Izumi e Thiago A. M. S. Com três edições publicadas, faz a própria descrição como sendo um “rodízio psicoativo de quadrinhos mastigáveis, nem sempre digeríveis”. “Nesse ritmo de publicação de duas edições por ano, conseguimos ter mais tempo para pensar em novos recursos, suportes e meios de impressão”, explica Benson Chin.
Café Espacial - Além de histórias em quadrinhos, traz artigos sobre cinema, música, teatro, literatura, fotografia e design. Com versão impressa e digital, foi criado em 2007 na cidade de Marília, interior de São Paulo, pelo editor Sergio Chaves e a jornalista Lídia Basoli. Com 12 edições publicadas, recebeu seis premiações nacionais e foi indicado duas vezes ao prêmio de melhor publicação alternativa no Festival de Angouleme, na França, o maior evento de quadrinhos da Europa.
QI - Criado em 1993 por Edgard Guimarães, tem como tema principal as histórias em quadrinhos. Traz resenhas, textos informativos e histórias em quadrinhos autorais. Premiado diversas vezes como melhor fanzine pelo Prêmio Angelo Agostini, já chegou a ter uma tiragem de 700 exemplares. Hoje, com tiragem de 100 exemplares, é vendido por assinaturas.