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Dona Rosa cantando
Foi a semana em que dona Rosa mais cantou, a semana em que meu pai morreu. Ela, nossa vizinha da direita, vivia às turras com minha mãe por causa de um gato que sempre roubava a carne que ela deixava em cima do fogão. Por causa disso, o marido vivia batendo nela. De cá, a gente só ouvia os berros de seu Davi dizendo que tava cansado de comprar carne, chegar em casa e só comer feijão com porcaria. A porcaria era sardinha em lata, a gente até já sabia disso, de tanto que ele reclamava. Parede meia tem esse problema.
A vingança de dona Rosa não demorou muito: chumbinho no bucho de Capeta, o nosso gato preto. Malvada dona Rosa era, mas ninguém podia negar que tinha a voz mais bonita da rua. Era ela que no fim da tarde ia pro alto-falante do bairro anunciar os fatos do dia, animais perdidos, casamento, batizado, fazer declarações de amor.
Dona Rosa cantava o dia inteiro enquanto fazia as coisas da casa, sempre de pano na cabeça, escondendo o chumaço dos cabelos quando não tinha dinheiro pra alisar. Era outra das brigas dela com seu Davi. Ele dizia que ela gastava muito com aquilo e nem passava bem um mês o cabelo dela já estava enrolando de novo.
Foi graças a dona Rosa que a gente ficou conhecendo os cantores do rádio. Ela gostava muito de Nelson Gonçalves e de Ângela Maria. Sabia de cor todas as músicas deles e também as de Dalva de Oliveira. Sua voz chegava a tremer nas alturas quando cantava “Babalu”.
Meu pai também não dizia nem sim nem não quando se falava nela. Preferia ficar calado. Tinham sido colegas de escola. Mas quem ele odiava mesmo era seu Davi, e foi por causa dele que meu pai resolveu ir embora de vez pro Rio. Seu Davi tinha espalhado na fábrica que nosso pai era ruim da cabeça porque já tinha se internado duas vezes pra se tratar das doideiras que davam nele.
Depois de meses numa tristeza que parecia não ter fim, meu pai achou que já estava bem, mas os médicos diziam que ele não devia viajar sozinho. Teimoso meu pai sempre foi. Minha mãe queria que ele abrisse um negócio, uma bodeguinha que fosse, pra vender manga, jaca, coco. Ele preferiu ir embora mesmo, porque se ficasse ali ia terminar havendo uma desgraça entre ele e seu Davi.
Minha mãe, com suas vidências, achava que era a última viagem que nosso pai ia fazer. Tinha sonhado com um menino que sempre lhe aparecia quando ia acontecer uma coisa ruim. O menino estava na frente do portão de ferro rendilhado da ferroviária e não sorria para ela. Quando sorria, era sinal de coisa boa, como da vez que ela ganhou no bicho.
E foi numa manhã meio chuvarenta, a gente ainda dormindo, que nosso pai se foi. Eu só ouvi ele assoando o nariz quando se despediu de minha mãe, que caiu num pranto de nariz tapado pra não acordar a gente, mas terminou acordando.
Foi justo naquela semana que o nosso rádio quebrou. Dinheiro pra comprar as válvulas queimadas era igual a tirar comida de nossa boca. Ainda não era tempo de manga, quando as vendas do sítio ajudavam na roupa de fim de ano e outras coisas mais. Era outubro, e meu pai havia partido.
Passou-se uma semana e não tivemos nenhuma notícia dele. A viagem levava uns cinco dias. Mas havia baldeações, havia chuvas, havia pontes quebradas, tudo isso podia atrasar a viagem. Telefonar para saber alguma coisa era impossível. Mal sabíamos o que era um telefone. Só tinha mesmo nas repartições ou nas casas dos muito ricos, que ficavam bem longe daquela rua de areia fofa e nenhuma calçada. Notícia só chegava por carta ou telegrama porque o carteiro conhecia a gente.
Duas semanas se passaram e a apreensão chegou até o caçula, cinco anos apenas, que passou a um chorar sem fim. O nervosismo tomou conta de minha mãe, que mais tremia que fazia as coisas dentro de casa. Inquieta, ia pra rua, voltava suada e mais nervosa ainda, de tanta história triste que ouvia das vizinhas. Ela não tirava do juízo que alguma coisa muito grave tinha acontecido com o nosso pai. Enquanto isso, dona Rosa cantava, cantava, como jamais tinha cantado. Algumas pessoas vinham nos conformar. Vai ver ele tinha perdido o trem em alguma baldeação, ou, pior ainda, tinha perdido o juízo de vez, de tanto remédio brabo que tinha tomado pra sair daquele estado de quase morto que durou bem um ano. Ia ser difícil localizar aquele que não se reconhecia nos próprios retratos. Ele podia também ter se embrenhado no sertão da Bahia. Sempre falava assim quando se via aperreado pra dar roupa e de-comer pra tanto filho. “Sumo no sertão e ninguém me acha”, era o que ele dizia, pra tristeza nossa e da nossa mãe.
Enfim, três semanas depois da partida, chegou do Rio uma carta pedindo notícias do meu pai. Era uma carta da madrinha de meu irmão mais novo. Minha mãe se desesperou. Os maledicentes diziam que ele devia ter fugido com alguma rapariga. Mas minha mãe nunca deixou de acreditar na sinceridade de meu pai. Ele nunca foi de ter outra, ela dizia.
“Eu sabia que uma coisa ruim tinha acontecido, meu coração só me fala de coisa ruim”, minha mãe repetia depois de mais um gole d’água, não sei quantas vezes no dia. E pra completar a desgraça descobriu que estava grávida. O sexto filho, numa família sem nenhuma renda, a não ser da venda das coisas do sítio da tia Isaura. “Mais uma boca pra alimentar como, meu Deus?”
Nós na nossa aflição e dona Rosa que não parava mais de cantar. Quanto mais ouvia minha mãe chorando, mais aumentava o som do rádio e cantava, cantava, cantava. Já estavam tocando as primeiras marchinhas do próximo carnaval, e ela não perdia tempo, pra chegar nos bailes com todas as músicas na cabeça. “Menina Vai” era a que ela mais cantava. A gente não entendia por que ela punha o rádio tão alto, só podia ser pra nos lembrar que o nosso estava quebrado já fazia um bom tempo, e quebrado ele ficaria para nunca mais.
Uma vizinha da casa em frente à nossa contou pra minha mãe que dona Rosa tinha escutado que um trem saído no mesmo dia do de nosso pai tinha descarrilado na Bahia. O alvoroço tomou conta da rua na mesma hora, todo mundo querendo saber o que tinha acontecido de verdade, se ele tinha escapado ou se já estava morto e enterrado sem a gente saber. Minha mãe desandou a chorar diferente agora, um pranto todo quieto, como se chorasse mais por dentro que por fora. Ela já se via viúva com mais um filho pra nascer, sem pai vivo e sem dinheiro. O único jeito era ir até a estação e perguntar se tinha tido mesmo algum acidente.
E ela foi. Voltou com a notícia de que tinha tido, sim, um acidente feio na subida de uma serra, quase não tinha sobrado ninguém, o trem do nosso pai. Quando ela chegou chorando, dona Rosa botou a cabeça na porta, a salinha cheia de gente pra nos consolar. Dona Rosa apareceu e falou com aquela voz tão clara de tão limpa: “Bem que eu ouvi uma notícia assim. Se soubesse que era o trem de Alexandre eu tinha avisado. Bem que falei pro Davizão, capaz de Alexandre estar nesse trem”. Ela nunca chamou meu pai de seu Alexandre. E saiu cantarolando “O Meu Mundo Caiu”.
Mais uns dias e se confirmou a morte de nosso pai. Como minha mãe não sabia dar um passo sozinha, foi preciso ir com um cunhado até o lugar do acidente, que para nós era pra lá do fim do mundo, pra ver se ele não estava em algum hospital com uma perna ou um braço quebrado. Ou mesmo sem memória, se tivesse levado uma pancada na cabeça já fraca.
Alguns dias depois, os dois voltaram. Quando apontaram na esquina, nosso tio trazia na mão a malinha de papelão de xadrez azul de meu pai. A salinha se encheu de gente para os pêsames, uma novidade pra nós. Da casa de dona Rosa veio uma voz que não era tão limpa como a de sempre, mas um pouco tremida, cantando uma música que falava de um amor “que teve o seu começo numa festa de São João”. Uma música que a gente não conhecia.
Antonio Carlos Viana é autor de livros como Cine Privê (Companhia das Letras, 2009) e Jeito de Matar Lagartas (Companhia das Letras, 2015), ambos vencedores do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) na categoria contos. É professor aposentado da Universidade Federal de Sergipe, mestre em Teoria Literária pela PUC-RS e doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Nice, França.