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Cultura feita à mão
Cultura feita à mão
por Guilherme Leite Cunha
A vendedora aposentada ajusta o ampliador na aula de “Fotografia e laboratório P&B”. O enfermeiro se esforça em lixar no curso de “Marcenaria lúdica”. A professora de matemática afia as agulhas no “Bordado experimental”. Esses três cursos acontecem em unidades do Sesc em São Paulo e proporcionam diariamente o reencontro do indivíduo com sua própria produção – pessoas que se veem muitas vezes clivadas de si, no ambiente maquinal do trabalho assalariado. E, por meio disso, esses indivíduos, engajados em diferentes profissões, se reencontram com o “potencial criador de que são portadores”, como nos dizia a arquiteta Lina Bo Bardi.
Na última década, a procura por cursos livres de arte teve uma forte expansão, e é sintoma de uma vontade geral das pessoas por fazer e criar. Essa característica contemporânea se coloca como um levante contra a sociedade de consumo e a indústria de massa. É, em última instância, uma rebeldia contra a ação meramente reprodutora, ensinada pela educação tradicional e reproduzida em postos de trabalho mundo afora. Assim, o que se vê é um retorno ao universo das manualidades. Não de maneira nostálgica, mas de modo crítico, pois absorve as novas tecnologias que favorecem a criação, como percebemos na disseminação de impressoras 3D ou de CNCs Router (máquinas que cortam de modo computadorizado).
Fazem parte desse universo cultural o movimento do Faça você mesmo (DIY, Do it yourself, originalmente em inglês, ou Craft) e o movimento Maker (ou “dos fazedores”). O DIY se referia a projetos de reparos caseiros que as pessoas faziam sozinhas, surgidos no contexto da escassez do pós-guerra. Nas décadas seguintes, o movimento começou a ser associado à cultura punk e alternativa. A sua força se encontra na expressão cotidiana: as pessoas cada vez mais fazem suas próprias roupas, sua cerveja, seus móveis e até suas casas. O movimento Maker é uma extensão da cultura DIY, e possui o lema do “criar, construir e compartilhar”. Buscam para isso, constantemente, a inovação tecnológica e, através da lógica “hacker”, desconstruir os códigos privatizados da indústria de massa. A ideia de ambos continua a mesma: você pode muito bem construir ou modificar suas coisas e deixá-las com o “seu jeito”, valendo-se atualmente pra isso do compartilhamento de saberes disponibilizado em redes sociais, como o Pinterest, ou em tutoriais no YouTube. Assim, a criação e a expressão que tradicionalmente residiam apenas no “mundo artístico” hoje se extravasam para todos os lugares da vida.
O que temos, hoje, é um contingente muito grande de pessoas que buscam se reencontrar com o fazer. E, com isso, se deparam com um tipo de conhecimento que a educação tradicional e o trabalho ordinário não puderam proporcionar, que surge justamente no movimento dialético de reflexão a partir da prática, e da prática a partir da reflexão, contribuindo, assim, com um processo de desalienação e “sujeificação” fundamental ao indivíduo, que vive apartado de sua subjetividade, no mundo que explora o trabalho alheio.
Por tudo isso, cada vez mais pessoas buscam aprender a fazer e a experimentar, por meio de cursos livres de arte. O desenvolvimento artístico proporcionado pelos cursos no Sesc, tanto em artes visuais e tecnologias como em outras artes, cresce enormemente, contribuindo com o conhecimento, o compartilhamento de saberes e com a potência criadora dos indivíduos. Muitas outras instituições, privadas e públicas, voltaram os olhos para o universo da educação não formal pós-trabalho, que se inicia geralmente por uma busca pessoal por um lazer interessado, em seu tempo livre, e que resulta, muitas vezes, em reviravoltas na vida das pessoas.
A arte e a cultura só têm a ganhar com esse cenário, pois falamos da transformação exponencial de indivíduos consumidores em indivíduos produtores de cultura. Trata-se, por fim, de enxergar que um simples bordado feito pelas mãos de uma professora ou que as fotografias de uma vendedora podem germinar um novo jeito de viver, ver e conhecer o mundo.
Guilherme Leite Cunha, bacharel em Artes Visuais e mestre em Estética e História da Arte, é assistente técnico da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia.