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Censura em Cena

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Censura em cena

Entre 1930 e 1970, foram abertos mais de 6 mil processos de censura a obras teatrais pelo Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo, material hoje reunido no Arquivo Miroel Silveira, acervo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Como esses textos proibidos contribuem para entendermos o impacto da censura na produção artística brasileira? Quais as raízes dessa herança censória e como isso repercute até hoje? Discutem o tema a coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP, Maria Cristina Castilho Costa, e o diretor e ator de teatro Roberto Ascar.


Censura nunca mais

por Maria Cristina Castilho Costa


A defesa da liberdade de expressão é hoje uma das poucas unanimidades em termos de valores, crenças e ideologias. As pesquisas do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (OBCOM-USP) mostram que homens e mulheres, jovens e adultos, católicos e protestantes, brasileiros e estrangeiros, dizem-se favoráveis à liberdade de expressão, garantida, no Brasil, pela Constituição de 1988. Essa constatação, no entanto, começa a mostrar seus limites quando a investigação se estende um pouco além da pergunta: “Você é favorável à liberdade de expressão?” Ao questionarmos a respeito da produção cultural da atualidade, sobre as regras que envolvem o fazer artístico, logo aparecem vacilações: “Eu sou favorável à liberdade de expressão, mas...” E assim começam as justificativas para limitar o acesso a certas obras, a determinados conteúdos, a alguns autores, livros, espetáculos. Isso porque a ideia de que a liberdade de expressão deve ser defendida se contrapõe a uma herança censória bastante expressiva no Brasil.

Desde os primeiros séculos de colonização, o Brasil sofreu com a censura que chegou ao nosso território antes da imprensa, da indústria editorial, da educação, do teatro, das universidades e da ciência. Nossa vida política e social teve início sob o cabresto de um colonialismo férreo, difícil de ser vencido. Temiam-se novas interpretações dos livros sagrados, a ciência e o paganismo. Havia a censura da monarquia portuguesa, que rechaçava tudo que, de alguma forma, ameaçasse o domínio europeu sobre as colônias – ideais republicanos, questionamentos sobre privilégios que eram implantados por meio do governo colonial. O repúdio às ideias não dogmáticas, em relação à religião e ao poder, levava ao monitoramento, à repressão e à condenação dos diferentes e dos divergentes, por processos cuja face mais agressiva foi protagonizada pela Inquisição.

O fim do colonialismo ocorreu no século 19, com a vinda para o Brasil da família real portuguesa e a transformação da colônia em vice-reino. A presença da corte trouxe modificações profundas na sociedade brasileira, com o desenvolvimento da vida urbana e da produção cultural. Finalmente, conheceríamos uma cultura laica, que introduzia no Brasil imprensa, biblioteca, teatro e academias artísticas. A laicização da cultura trouxe novos modelos de representação e um debate profano sobre o destino dos seres humanos e da sociedade. Mas, se tudo levava a um amplo exercício de liberdade, a importação de teorias consideradas perigosas e subversivas, como as republicanas, levou a monarquia a instaurar os primeiros órgãos censórios ligados ao Estado e não à Igreja. Esses órgãos, como o Conservatório Dramático Musical, tinham por finalidade defender a monarquia e a estética clássica rechaçando veleidades libertárias e a expressão popular, em favor da defesa do poder monárquico e da cultura europeia. Nem a Independência modificou esse cenário, tendo a coroa brasileira sido colocada em cabeça da mesma família real portuguesa.

Seria a república a introduzir os ideais de liberdade e autonomia, de independência e tolerância? Não exatamente. Embora se caminhasse para um Estado com maior autonomia e respaldo popular, a política ainda se conservava uma atividade das elites brancas, representadas por seus membros masculinos. Essa visão estreita de uma política republicana, numa época em que, na Europa, já se discutia a igualdade econômica das classes sociais e o direito de participação política, exigia o pleno controle das dissidências, da cultura, da filosofia e das artes. Formas de monitoramento, controle e repressão continuaram atrasando nossa inserção nos debates emancipatórios que se travavam além-mar – a arte, a cultura e a educação continuavam, em pleno século 20, restritas aos grandes centros urbanos e atreladas à subvenção do Estado que sobre elas exercia firme controle.

Foi só no período entre guerras (década de 1920) que começamos a desafiar o estreito molde em que se enfiavam a nossa cultura e a nossa arte, buscando formas próprias de pensarmos por nós mesmos, sobre nós e por nossa forma peculiar de expressão. A arte e a cultura brasileira floresciam à sombra do desgaste que os confrontos mundiais impunham à Europa e aos Estados Unidos. Nesse intervalo, a arte e a cultura brasileira mostraram toda sua força e autenticidade, seu potencial explosivo, formador de identidade e de poder contestatório, de inovação e revolta. Sobre elas, entretanto, recaía, ainda, cotidianamente, a censura, buscando calar seu viés revolucionário e dissidente. Dois períodos ditatoriais – o Estado Novo de Getúlio Vargas e a ditadura Civil-Militar – custaram caro aos artistas e intelectuais, aos jornalistas e aos cientistas – até 1988, quando a Constituição reconheceu, finalmente, o direito dos brasileiros à liberdade de expressão.

O OBCOM-USP, responsável pelo Arquivo Miroel Silveira, com mais de seis mil processos de censura prévia ao teatro que cobrem o período de 1930 a 1970, tem entre suas metas o debate sobre a censura e sobre como ela impede o pleno florescimento das artes e da cultura, como ela emperra o debate sério das propostas e das alternativas políticas, sociais e artísticas do país. Para isso, temos revisitado as obras que foram censuradas ou vetadas, devolvendo-as ao público ao qual se destinavam para que encontrem os olhos e os ouvidos que foram impedidos de vê-las e ouvi-las. Queremos apresentar as obras censuradas ao público e mostrar que é sempre melhor ver, ouvir, ler e julgar do que proibir e ignorar. Queremos mostrar que só o exercício contínuo de observação, percepção e debate, de diálogo com o autor e sua obra, é capaz de bem orientar a produção e a recepção da arte e da cultura. Abertura, acolhimento, diálogo e tolerância serão sempre, resistindo a toda forma de censura, os motores de uma produção artística, cultural, científica e filosófica consciente, criativa e autônoma. Serão eles também formadores de uma plateia séria e exigente que busca na arte uma forma peculiar de identidade.

Maria Cristina Castilho Costa é livre-docente em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP.

 

Um mal desnecessário

por Roberto Ascar


Desde que Cabral e sua caravana invadiram o Brasil, instalou-se aqui a censura. Os brasileiros, índios, foram censurados pelo modo de (não) se vestirem, foram sendo ensinados a como se portar em sociedade à moda europeia, coagidos a mudar seus hábitos e até foram obrigados a assistir à missa. A partir dali, a censura prosseguiu e, de uma forma ou de outra, perdura até hoje, sem data para terminar.

Como produtor e diretor, e ainda quando exercia a presidência de entidade representativa dos operadores em teatro, a Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo (Apetesp), vivenciei a nefanda ação da censura, principalmente em peças de teatro ao longo de cinco décadas. No início, anos 1960, vigoravam a censura estadual, a federal e até a municipal, na medida em que qualquer prefeito, se quisesse, tinha poder para proibir a apresentação de espetáculos e até de cortar textos. A censura oficial era realizada pelo Departamento de Diversões Públicas da Polícia dos Estados, passando depois para a competência federal, submetida ao Ministério da Justiça. A censura de textos ou de espetáculos causou irremediáveis danos aos autores, aos produtores e ao público, uma vez que, censurado, o autor era inibido de escrever novos textos; os produtores, intimidados, não investiam mais; e a população ficava impedida de conhecer as obras que eram proibidas por policiais que não tinham autoridade intelectual ou conhecimento para decidir o que poderia ou não ser mostrado ao público.

As coisas funcionavam da seguinte forma: o produtor ou o grupo teatral que pretendesse montar um espetáculo teria que seguir a odisseia imposta pelos “homens da lei”, na seguinte sequência: entregar cópias do texto à censura e aguardar o parecer dos censores; o texto poderia retornar liberado, proibido ou cortado parcialmente; depois de liberado, com ou sem cortes, o grupo, que já estava ensaiando, teria que amoldar o texto aos eventuais cortes feitos pela censura, que às vezes eram tantos que a peça, mutilada, perdia o sentido. As formas de censura variavam. Ora sob a alegação de pornográfica, ora sob a pecha de subversiva, ora por ofender a moral e os costumes. Montava-se então o espetáculo. Ótimo! Acabou o problema? Não. Antes da estreia éramos obrigados a agendar com os censores uma data para que comparecessem ao teatro para assistir ao ensaio geral, podendo eles, conforme entendessem e sem nenhum critério ou explicação, cortar ainda mais o texto, proibir gestos ou até vedar a encenação. Vencida mais essa barreira, era emitido o certificado autorizando a exibição ou vedando a apresentação.

Essa forma de submissão da arte ao Estado durou até 1988, quando da promulgação da Constituição Federal. Durante a Assembleia Constituinte, reunimos um coletivo de cerca de 20 atores, autores, diretores, produtores e técnicos em teatro e cinema, como Plinio Marcos, Cacá Rosset, Cesar Vieira, Lauro Cesar Muniz, representantes dos produtores, dos artistas e dos autores, respectivamente, Roberto Ascar, Ligia de Paula e Walter Quaglia, liderados por Lélia Abramo, e nos dirigimos a Brasília, a fim de convencer deputados da desnecessidade e da nocividade da censura, já que sua atuação fere a liberdade de expressão, cerceia o artista e impede ao povo o acesso à informação, à cultura e à arte. Conseguimos. A Constituição Federal não contempla mais a censura prévia à obra de arte, teatro, cinema, televisão, música, literatura e aboliu aquela tramitação que relatei, tendo se instalado o que se chamou de “classificação indicativa”.

Melhorou? Instalou-se a liberdade de expressão?  Não. Embora oficialmente não exista mais a censura, continuam vigentes a censura econômica, que dificulta ao povo o acesso às artes; a autocensura, que cerceia o criador da obra; além da censura judicial, que proíbe o comércio de livros, a exibição de peças teatrais ou de filmes a requerimento de supostos ofendidos. O mesmo se dá no caso das biografias, que grande polêmica gerou, pois se pretendeu que elas somente poderiam ser escritas e divulgadas se previamente autorizadas pelo biografado. Onde há liberdade?

Não bastasse isso, e a gana de censurar se apoia até no bom Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que é invocado como pretexto para, em seu nome, juízes e outras autoridades proibirem a exibição de espetáculos tidos como impróprios para menores, como se não tivessem os pais ou responsáveis condições de decidir o que seus filhos podem ou não assistir. A liberdade de expressão, enfim, ainda não existe completamente, na medida em que o Estado se arvora em tutor do povo e proíbe o operador de arte de se manifestar, e o público, carente de informação, tem reduzida sua capacidade de luta, pois, como diz o jargão, “povo culto é povo armado”.

Depois de toda essa experiência com a censura, ingressei, como diretor de teatro, a convite da professora Cristina Costa e da dramaturga Renata Pallottini, no projeto Censura em Cena, que tem como objetivo a pesquisa, apresentação de leituras dramáticas e debates sobre as peças teatrais censuradas em suas épocas, extraídas do Arquivo Miroel Silveira, que reúne na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) um acervo de mais de seis mil peças teatrais censuradas e vetadas pela censura oficial. Sou responsável pelas miniencenações das peças, de renomados autores, como Gianfrancesco Guarnieri, Abdias do Nascimento, Helena Silveira, Nelson Rodrigues, Plinio Marcos e Roberto Freire, Augusto Boal, Alberto D’Aversa, Cesar Vieira, Dias Gomes, Renata Pallottini e Cassandra Rios, encenadas no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

Entendemos que, com as leituras, as pesquisas e os debates, estamos levando ao público informações e entretenimento que não lhes seriam apresentados de outra forma, pois essas peças proibidas dificilmente serão produzidas comercialmente e nem mesmo encenadas no circuito alternativo. Esperemos com fé, embora pareça difícil, que as autoridades responsáveis pela legislação percebam que o ser humano não pode e não deve ser tutelado e que a censura venha a ser, no futuro próximo, erradicada da face da Terra, para que o homem possa viver livre de qualquer tipo de cerceamento. Censura não mais!

Roberto Ascar é ator e diretor de teatro, e coordenador das leituras dramáticas do projeto Censura em Cena, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.


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