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Menina a caminho do tempo de maduração
Menina a caminho do tempo de maduração
por Mariana Meirelles Ruocco
“O tempo é o maior tesouro que o homem pode dispor,
embora inconsumível, o tempo é o nosso maior alimento.”
RADUAN NASSAR
No alto da sabedoria dos seus seis anos de idade, o sol ainda se espreguiçava e ela surpreendia seus pais ao acordar às seis da manhã, vestir suas botas sete léguas, tomar o leite ainda morno daquele latão de bordas amassadas, recém-chegado do curral, para seguir sua missão: caminhar dois quilômetros até a sede da fazenda com seu destemido vira-lata, Pingo. Escolher a sela, arrear o cavalo, ajustar o estribo na altura miúda de suas pernas, era só mais um cuidado do vaqueiro, Tonho, para a menina se esbaldar no seu regozijo a galope. Brinco, o mestiço cavalo troteiro, conduzia a garota até o escurecer entre cachoeiras, estradas de chão batido, matas nativas e plantações, tocando o gado de um pasto para o outro e todas as peripécias que a memória ecoa. Contemplar o plantio, o florescer e a colheita do café e se espalhar entre os grãos no seu processo de limpeza no lavador, de secagem no terreirão e de armazenamento na tulha era o meu céu.
Morar no campo me permitiu um contato quase simbiótico com a natureza e me trouxe uma percepção de como o alimentar-se nos conecta com o mundo todo. Lá, o tempo tinha uma contagem peculiar, na sua intrínseca sintonia respeitosa da necessidade de se cumprirem os ciclos para colher frutos sadios.
Eu compreendia que ter o milho à mesa a cada janeiro nas refeições familiares – cozido, refogado, na brasa, na pamonha ou no cural – representava que o pólen da flor alcançou, com a ajuda do vento ou das abelhas, os cabelos da ainda pequena espiga e, que, somente a partir daí, cada fio daria fruto a um único e delicioso grão. Uma certa consciência planetária despontava com a noção da importância do tempo aliado à chuva, ao sol, ao solo, à labuta, e isso se tornou uma grande oportunidade para contemplar a alimentação na sua beleza esplendorosa.
Mesmo após o mergulho na selva de pedra, meu interesse pelo alimento sobreviveu na juventude, mas tomou um outro rumo. Assuntos sobre os alimentos em si e a influência da ingestão de seus nutrientes no corpo humano me abarcaram, porque ali eu antevia uma oportunidade para trabalhar na promoção do bem-estar das pessoas.
Na última década, o Brasil estabeleceu diretrizes e documentos normativos a respeito da nutrição, incluindo a segunda edição do Guia Alimentar, que disseminam a ideia de que uma comida saudável deriva de um sistema alimentar sustentável e de que, para além das nossas necessidades nutricionais, há também relevantes demandas culturais, psicossociais, e as relativas ao meio ambiente.
Uma parcela da sociedade vem mudando sua compreensão sobre a comida. Nota-se um aumento no interesse pelos alimentos orgânicos e de bases agroecológicas adquiridos em feiras, diretamente dos produtores, e pelo cultivo de hortas domésticas, escolares, comunitárias e urbanas. Essa tendência sugere que os cidadãos anseiam não só por produtos saudáveis, mas sobretudo, por uma reconexão com a natureza.
A ação educativa do Sesc voltada para a alimentação é pautada no conhecimento emancipatório por meio da valorização das culturas culinárias regionais e do estímulo às escolhas alimentares saudáveis, com incentivo ao consumo de alimentos in natura ou minimamente processados e provenientes de modelos ambiental e socialmente sustentáveis.
Trabalhar no Sesc me oferece a oportunidade de integrar conhecimentos técnicos de nutrição ao cerne da minha essência, que resistiu ao tempo e se mostrou indestrutível. A minha alma está ligada à origem da alimentação, que é a minha raiz.
O tempo… Ah, o tempo foi fundamental para fechar mais esse ciclo e evidenciar quanto as experiências na infância me ajudaram a enxergar a alimentação com toda a sua complexidade, da semente à refeição, e suas tantas implicações. O meu amadurecimento revigora a missão daquela menina que fui outrora: caminhar na direção do fomento à comida de verdade, que, além de promotora de saúde, protege as culturas alimentares e é parte de todo um sistema que ajuda a promover justiça social e harmonia entre os indivíduos e o meio do qual fazemos parte.
Mariana Meirelles Ruocco, nutricionista e especialista em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), é assistente técnica da Gerência de Saúde e Alimentação do Sesc São Paulo.
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