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A revolta dos pés diante do mundo
Oprincipal motivo que me fez andar pela cidade a esmo foi o dinheiro. Ou melhor, a falta dele. Lembro de fixar os olhos no caminho com a esperança de encontrar alguma nota ou moeda. Na época, meu coração vivia apertado de tanto futuro. E meu futuro vivia pendendo num abismo que de hora em hora se aprofundava. Eu era jovem, embora meu ânimo fosse velho, como um velho espírito vagabundo pelas ruas. E eu não flanava. Flanar era para os fortes, não para alguém repleto de palavras de fracasso. E não é que eu não encontrava nada?! Ouvia histórias sobre a sorte de achar uma nota de 50, por exemplo. E comigo ela não vinha. Era uma relação verdadeira de vagabundo, aquele que vaga à toa, aquele cujo lar são os pés. Óbvio ser mais razoável andar para procurar um emprego. A nota de 50 viria com ele e mais notas ainda, dependendo da venda. E olha que não era porque não queria me vender; ninguém queria era me comprar. Vivia sempre em plena liquidação de bota-fora.
Caminhava procurando meios de sobreviver, mas não flanava. Nem pensava em Baudelaire, o poeta francês mais flanador de todos, pelo que contam das flanações possíveis. Pensava na indigência dos corpos, nas pernas distendidas em elefantíases, nos homens-retalhos em forma de cruz solicitando respingos de migalhas, nas opressões das esmolas, nos sonos perdidos, nas crianças que dormiam sob as igrejas, em desempregos e suas caixas de leite, em punguistas sem condições de fiança. Pensava que não podia ter um carro e também que nem sabia direito se queria ter um. Andava e pensava nos outros, na vida vivida naquele instante e naquelas ruas em que eu caminhava à procura.
Não sei muito bem o que eu via, pois caminhar era quase que um ato subversivo, transgressor. Nas madrugadas quentes, as ruas vazias, as árvores escuras, as sombras dos gatos e ratos correndo pelos muros e nos meios-fios; uma ação revoltada e silenciosa diante do universo humano. Eu não queria um emprego. Queria correr na contramão do correto, queria a revolução da contra-força da mola, queria encontrar o dinheiro e dedicar-lhe um pouco de desprezo, ensinar-lhe os desrespeitos das ruas, mostrar-lhe a carne e sair de perto. Queria humanizá-lo, mas esta benfeitoria já lhe haviam feito. E aí, perdido nas horas, fosse à noite ou em pleno dia, mirava por sobre minhas costas voltadas ao caminho e não percebia pegadas; nem sabia se havia feito alguma caminhada. Pela cidade eu caminhava como se dela eu fizesse parte, mas algo bruto como uma pedra ou um sonho dormido com analgésicos alcoólicos perturbadores de ordens. Tinha amigos sub-reptícios e uma missão de encontrar as notas perdidas da humanidade. Tinha fome e fôlego, solas e saliva suficientes para rodar o mundo com minha língua bifurcada de sons alhures. Estava vivo como as lâmpadas de halogênio nos postes, e caminhar pela cidade era deixar o sangue correr pelas veias e me amarrar à liberdade das calçadas sufocadas pelos carroçáveis tempos das máquinas. Falo como se fosse passado, mas é tão fresco quanto mato recém-cortado, cheira à fumaça presente e se espalha como uma cultura de bactérias nos vidros de ágar-ágar.
Hoje, posso dizer que achei o dinheiro, as notas fugazes de 50 reais, as moedas cintilantes
do conforto rígido da miséria, encontrei mais um tanto de companhias passíveis de compreensão e me regozijo de algumas poltronas macias e uns quadros com fungos dispersos.
Só perdi um bom tanto daquele caminho, daquela estrada perscrutada pelos meus sentidos que
hoje se concentram em saudades esparsas de uma revolução precoce...
Iã Paulo Ribeiro é bacharel em Letras e gerente-adjunto
de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo