Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Beatriz Mamigonian

O Brasil foi o primeiro país a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA) – por tolerar a escravidão em suas formas modernas. A condenação aconteceu em 2016, quando o país foi responsabilizado internacionalmente por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas. O Brasil também se mostrou líder na América Latina em número absoluto de pessoas em situação análoga à escravidão. Segundo o relatório Índice Global de Escravidão 2018, publicado pela Fundação Walk Free, em julho, eram 369 mil pessoas nessa condição. Sabendo que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão de africanos, os paralelos entre o presente e o século 19 são inevitáveis. Doutora em História pela Universidade de Waterloo, no Canadá, e professora associada do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, a historiadora Beatriz Mamigonian acaba de lançar Africanos Livres (Companhia das Letras). Baseada numa pesquisa inédita, a obra leva ao público dados pouco conhecidos sobre o processo de abolição do tráfico de escravos e a escravização ilegal de pessoas no Brasil do século 19. Da década de 1820, o livro avança até a campanha abolicionista na década de 1880, quando os militantes mais radicais questionavam o direito à propriedade sobre os africanos trazidos depois da proibição do tráfico e desafiavam o curso político do abolicionismo parlamentar.
 


Foto: Leila Fugii.

 
Quem eram os “africanos livres”?

“Africanos livres” foi o nome dado, como uma categoria, a pessoas resgatadas do tráfico de africanos, mantidas num tipo de situação legal que não era propriamente escravidão, mas também não era liberdade como a gente imaginaria. Explico. A Inglaterra foi a primeira a proibir o comércio de escravos, em 1807, e, a partir daquele momento, criou toda uma estrutura para apreender os navios negreiros que estivessem fazendo contrabando. Os africanos encontrados a bordo dos navios negreiros eram emancipados e obrigados a trabalhar como “aprendizes” por um certo número de anos. Essa categoria depois aparece nos tratados que a Inglaterra assinou com Portugal, Espanha, Holanda e, depois, Brasil, quando começou a campanha internacional pela abolição do tráfico. Não interessava à Inglaterra que as outras potências coloniais tivessem acesso à mão de obra escravizada. O primeiro tratado foi assinado com Portugal em 1810, e nele a coroa portuguesa se comprometia a restringir as áreas na África em que comercializava escravos e a colaborar para a abolição gradual desse comércio. Outro tratado assinado em 1815 foi mais detalhado, teve uma convenção adicional em 1817, que estabeleceu direito de busca dos navios e o funcionamento de comissões mistas dos dois lados do Atlântico para julgar aqueles que fossem apreendidos. Quando o navio era condenado, os homens, mulheres e crianças – havia muitas crianças – que estavam a bordo eram emancipados e viravam “africanos livres”. Se o julgamento fosse do lado africano, eles ficariam em Serra Leoa e, se fosse do lado das Américas, eles ficariam no lugar onde a comissão era sediada: Rio de Janeiro, Havana ou Paramaribo, no Suriname. Serra Leoa recebeu mais de 90 mil africanos de todas as partes do continente. Em Cuba, foram emancipados cerca de 26 mil africanos, no Brasil foram 11 mil, e houve grupos menores em colônias britânicas no Caribe, na África e ainda em Angola. Então essa categoria particular de pessoas resgatadas no tráfico, que existiu em vários territórios no Atlântico e no Índico no século 19, no Brasil foi chamada de “africanos livres”.

Podemos afirmar que esses africanos viveram em liberdade?

A situação deles variou muito. Dependia do lugar onde eram emancipados ou para onde foram realocados, se lá ainda havia escravidão ou não. O raciocínio dos abolicionistas britânicos, quando criaram esse estatuto, era de que os africanos resgatados do tráfico não estavam prontos para a liberdade. No final do século 18 e começo do século 19, os abolicionistas brancos tratavam esses africanos como “crianças”. Por isso precisariam de 14 anos de “proteção”, e durante esse período eles prestariam serviços a particulares, supostamente para aprender ofícios.
 

A abolição se deu nas ruas e nas fazendas e depois ela acabou chegando ao Parlamento, já resolvida. Foi um movimento social impressionante
 

Descrever esse período pouco conhecido da história do Brasil foi o objetivo dessa pesquisa que resultou no livro Africanos Livres?

O meu objeto de tese era o modo como funcionava esse “aprendizado” no Brasil. Demorei para entender que os portugueses nunca aplicaram esse conceito. O alvará português de 1818 estabeleceu que os africanos e as africanas deveriam ser tratados como criados ou trabalhadores livres, ou então distribuídos para serviços públicos emancipados só depois de 14 anos de trabalho. Nesse alvará, os africanos receberam um tratamento muito próximo ao que os índios receberam: tutela com trabalho. Então, o sistema de “aprendizado” não se aplicou aos africanos livres no Brasil – o trabalho deles não funcionou como preparação para que ganhassem autonomia. Só entendi por que quando me dei conta de que esse tempo de serviço obrigatório durou, em geral, entre 20 e 30 anos em vez de 14.


Foto: Leila Fugii.


Eles foram tutelados pelo Estado e seus serviços foram arrematados em leilões. Ainda assim, chegavam a receber salário?

Uma vez emancipado, o africano ou a africana ia para a Casa de Correção (no Rio) e, dali, o juiz de órfãos era o responsável por atribuir-lhes trabalho. Dentre os que chegaram ao Brasil na década de 1830, um em cada cinco foi trabalhar em instituições públicas, como a própria Casa de Correção, que era uma prisão moderna, estava sendo construída; ou o Arsenal de Guerra; o Arsenal de Marinha; a Fábrica de Pólvora, que ficava no fundo da Baía de Guanabara, no distrito da Estrela. Os demais (80% do total) acabaram trabalhando para particulares. No primeiro momento, houve uma arrematação dos serviços dos africanos: quem pagava mais, levava; mais tarde, reconhecendo abusos do sistema, adotou-se o sistema de concessão dos serviços dos africanos a pessoas reconhecidas como honestas. O temor era que eles fossem revendidos como escravos, então o Estado imperial manteve certo controle sobre eles. Entre os concessionários de africanos livres estavam ministros, conselheiros de Estado, senadores, altos funcionários dos ministérios, e também gente simples, com relações no governo. Era um bom negócio ter um africano livre. Os arrematantes/concessionários eram obrigados a recolher aos cofres públicos anualmente um salário; o valor desse salário correspondia ao que o africano ou africana conseguia arrecadar em um mês de trabalho. Esse salário nunca foi pago aos africanos.
 

Tratavam os escravos da mesma maneira como os fazendeiros tratam hoje da propriedade fundiária
 

Isso se relaciona ao que aconteceu nos anos seguintes a 1831?

Em abril de 1831, Dom Pedro I foi expulso e abdicou. O governo da regência tentou se distanciar dos portugueses. Houve todo um esforço na estruturação do Estado Nacional. A lei de abolição do tráfico, de 7 de novembro de 1831, veio nesse contexto, em que se buscavam mecanismos brasileiros para reprimir o tráfico, para tentar conter a ingerência dos ingleses. Mas em poucos anos ficou politicamente difícil aplicar a lei. As plantações de café se expandiam, era um produto muito lucrativo, os fazendeiros insistiam muito em poder comprar africanos novos. Eles forçaram o governo a ceder e deixar de reprimir o tráfico. Dessa forma, o governo brasileiro, que até 1834 estava com a Marinha no mar, apreendendo navios; que estava com juízes, apreendendo e emancipando africanos; com projetos na Câmara, como aquele que estabelecia uma matrícula para os escravos africanos, sofre uma guinada. Houve uma articulação política liderada pelos representantes dos cafeicultores que travou as políticas de repressão ao contrabando. O tráfico voltou a crescer: a estimativa é de que 800 mil pessoas tenham sido importadas ilegalmente entre 1831 e 1856, e sabemos que foram mantidas como escravas, mesmo que a lei de 1831 declarasse que todos os que entrassem a partir daquela data deveriam ser livres. Os 11 mil africanos livres tiveram a liberdade cerceada pela existência desse imenso contrabando, que detinha o estatuto que devia ser estendido a todos os outros.

Quando a situação de trabalho forçado deles acabou?

O governo imperial emitiu um primeiro decreto, em 1853, que só beneficiou os africanos livres que trabalhavam para particulares. Eles teriam que fazer um trâmite complicado: escrever uma petição e comprovar que estavam no livro de registro dos africanos recém-chegados. Além disso, várias autoridades tinham que atestar as boas condutas. Ou seja, havia uma burocracia complexa e difícil de acompanhar, que favorecia apenas quem estava na cidade, sabia como funcionava ou tinha companheiros para ajudar. Muitos africanos estavam nos arsenais e fábricas desde o início da década de 1830 e também tinham cumprido 14 anos, mas não obtiveram emancipação por esse decreto. Somente em 1864, o governo emitiu um segundo decreto e liberou os “africanos livres” definitivamente. Na minha interpretação, foi para tentar encerrar a crise da Questão Christie com a Inglaterra e ainda para conter uma estratégia abolicionista de ampliar a definição de “africano livre” para incluir todos aqueles importados desde 1831 e mantidos em cativeiro ilegal. O governo começou uma varredura para saber quem eram os africanos livres, onde estavam, e emancipá-los, todos, para fechar essa questão.
 

Muito desse abolicionismo britânico serviu de discurso para rebaixar o Brasil à situação de pária das nações
 

Os ingleses estão longe de ser super-heróis na abolição da escravidão no Brasil?

Eu não queria deixar a imagem de que os ingleses eram super-heróis porque, nesse mesmo capítulo em que discuti as ações dos ingleses, mostrei que desde 1840, assim que a escravidão foi abolida nas colônias britânicas, os ingleses precisavam muito de mão de obra. E eles acabaram se favorecendo, utilizando esse sistema de repressão do tráfico para canalizar os africanos dos navios negreiros apreendidos e direcionando-os para suas próprias colônias. Para plantações de açúcar, como em Trinidad e Jamaica. Consegui levantar um número talvez conservador, de 2.500 pessoas que teriam sido escravizadas no Brasil, mas que foram levadas para as colônias britânicas num regime que não era escravidão, mas era de contrato. Na prática, as condições de trabalho eram próximas da escravidão, mas os trabalhadores eram nominalmente livres, o que livrava a barra dos ingleses. O fato é que os ingleses se achavam moralmente superiores porque acabaram com a escravidão e condenavam muito o Brasil.


Foto: Leila Fugii.

O que lhe chamou mais a atenção como historiadora ao se dar conta desses dados?

A questão que me coloquei foi a seguinte: como foi possível no debate político silenciar sobre o direito à liberdade dos africanos trazidos depois de 1831, sabendo da exploração dessas pessoas, e tratar como se isso fosse a coisa mais normal do mundo? Como foi possível, para os contemporâneos, naturalizar essa escravidão? Esses africanos foram tidos como propriedade, só que era adquirida ilegalmente. Na época da discussão da Lei do Ventre Livre, um grupo muito grande no Parlamento se recusava a aceitar a libertação dos recém-nascidos sem que os senhores, donos das mães, fossem indenizados. Mais adiante, nas discussões sobre emancipação, os senhores de escravos falavam da propriedade sobre os escravos como se ela fosse absolutamente legal.

A sociedade sabia, os políticos sabiam. Isso passa a ser determinante no caráter no início de uma nação como o Brasil?

Sim. Não que a ilegalidade ou o contrabando fossem novos, porque a corrupção e o contrabando são práticas que já eram recorrentes no período colonial. Mas, se a gente pensar pelo ponto de vista do Estado nacional, é impactante pensar que ele, ao se estruturar, acabou em pouco tempo sendo dominado por senhores vinculados a traficantes, que impuseram ao governo uma agenda de exploração do trabalho de pessoas. E ainda cabe observar que essa agenda sobreviveu até a abolição.
 

A desumanização que a sociedade impõe às pessoas mais pobres, majoritariamente negras, é um legado da escravidão
 

Como acontece a abolição de fato?

A abolição, quando foi assinada no dia 13 de maio de 1888, estava ratificando um fato já consumado. Uma grande massa dos escravos engajados na cafeicultura estava fugindo das fazendas. E os senhores já não tinham mais como controlar essa situação. O movimento abolicionista foi crescendo ao longo da década de 1880, criando uma opinião pública favorável à abolição da escravidão. Então, a abolição se deu nas ruas e nas fazendas e depois ela acabou chegando ao Parlamento, já resolvida. Foi um movimento social impressionante, muito poderoso. 

De que forma esta e outras pesquisas a respeito da escravidão e sua abolição no Brasil podem nos auxiliar a entender o momento atual da nossa história?

É evidente que mesmo com uma economia e uma sociedade muito mais complexas do que no século 19, 130 anos depois da abolição, o Brasil mantém em funcionamento mecanismos poderosos de concentração de renda. Mas isso se deve ao lugar do país no mundo, é geopolítica. Precisaria haver um entendimento e um esforço coletivos para mudar essa realidade. Internamente, temos vários entraves. Assim como no século 19, há uma mobilidade social ascendente, mas ela é pontual, muito seletiva, e não desafia essa concentração de renda brutal. No século 19, os libertos queriam autonomia, isto é, trabalhar para si e sua família, na cidade ou na roça. Esse era o significado da liberdade. Lutavam também por cidadania plena, sem discriminação de cor. Essas eram as mesmas demandas da população de origem africana em outras partes das Américas. A história do século 20 foi, para os afrodescendentes, a da continuação dessa luta, com muitos reveses (expulsão das terras, assassinato de lideranças) e algumas conquistas (direitos civis, titulação dos quilombos, ações afirmativas). Mas a violência persiste, é uma constante. A desumanização que a sociedade impõe às pessoas mais pobres, majoritariamente negras, é um legado da escravidão. Enquanto as demandas coletivas por acesso à terra e à moradia, remuneração justa e condições humanas de trabalho e inclusão social não forem consideradas prioritárias, não teremos confrontado nossa dívida coletiva com os milhões de índios que foram expulsos de suas terras e africanos que para cá foram trazidos involuntariamente.

@sescrevistae | @instagram