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Precisamos falar sobre gênero e sexualidade
No interior de uma caverna, homens acorrentados acreditam que as sombras que veem surgir nas paredes – reflexos criados pelas chamas de uma fogueira – são seres vivos. A condição de escuridão e de aprisionamento os submete àquelas imagens de forma que passam a ser a única realidade conhecida. Escrito pelo filósofo grego Platão (427 a.C.-347 a.C.), O Mito da Caverna perpetua-se, em uma possível leitura da sociedade, na contemporaneidade, no que se refere a pessoas que têm diferentes identidades de gênero e sexualidade. Entendimentos circunscritos a uma única construção social de realidade fazem com que as pessoas que não correspondem ao padrão, aos papeis sociais impostos a homens e mulheres sejam alvos de julgamentos, discursos de ódio, preconceitos, estereótipos e violências.
Segundo Luis Sobral, do Museu da Diversidade Sexual, esse cenário de violência é “consequência de um ciclo que alimenta a si mesmo e que passa pela invisibilização das pessoas cujas identidades de gênero fogem à norma imposta”. Em uma outra abordagem, a promotora de Justiça Fabíola Sucasas Negrão Covas, do Ministério Público de São Paulo, aponta que “o Estado brasileiro tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e, por objetivos, promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e o de construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
Desta forma, o estado e a sociedade civil devem garantir espaço e visibilidade a pessoas, populações e culturas cujos direitos civis e de manifestação encontram-se ameaçados, assim como possibilitar a convivência e fomentar reflexões que ampliem as perspectivas sobre o outro e reconheçam a diferença como componente legítimo para viver junto. Sobre o tema, Sucasas e Sobral traçam análises e questionamentos.
Afinal, que susto é esse?
Fabíola Sucasas Negrão Covas
Gênero, ideologia de gênero e expressões afins têm mobilizado uma série de iniciativas de leis contrárias à inclusão da temática nas escolas, na crença de que é uma ameaça à família brasileira. Pesquisadores apontam haver uma confusão entre as discussões de gênero com o que intitulam ideologia, o que perpetuado a marginalização dos grupos mais vulneráveis diretamente afetos a tais estudos: mulheres e LGBTI.
As ditas iniciativas de lei surgiram quando da tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE). Seus defensores dizem que há uma deturpação dos conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de família. “Gênero e orientação sexual” foram as palavras suprimidas do texto do PNE, mas esse susto é legítimo?
Nas ações propostas, o Ministério Público Federal está atento para o fato de que a expressão “ideologia de gênero” é equivocada, pois disfarça e tolhe a temática no campo dos direitos e do processo educativo. Muitos argumentam que essa expressão tenta deslegitimar a área dos estudos de gênero, que dizem respeito aos sistemas de dominação e exclusão.
Vamos aos pontos. Primeiro: sexo e gênero não se confundem! Enquanto sexo se refere a um aparato biológico que diferencia homens e mulheres, gênero cuida das construções sociais que advêm dessas diferenças. Segundo: a expressão orientação sexual compreende a atração e o desejo sexuais de um indivíduo por um outro: os heterossexuais se atraem pelo sexo oposto, os homossexuais se atraem pelo mesmo sexo e os bissexuais se atraem por ambos os sexos. Terceiro: orientação sexual – e não opção sexual – não se confunde com identidade de gênero, que diz respeito ao gênero pelo qual a pessoa se identifica.
Uma pessoa é transgênero se possuir identidade de gênero diferente daquela correspondente ao seu sexo biológico; uma pessoa cisgênero possui uma identidade de gênero correspondente ao sexo biológico, independente mente da orientação sexual que tenha, homossexual ou heterossexual. Travestis e mulheres transexuais referem-se à identidade de gênero feminina, sentindo-se e vestindo-se como mulher e fazendo tratamento hormonal feminino, mas não necessariamente tendo desconforto com a genitália; crossdresser, drag queen e drag king referem-se a quem ocasionalmente se veste com roupas de características do outro gênero, mas as duas últimas para performances artísticas: o segundo, para homem que se veste de mulhere e drag king para mulhere que se veste de homem.
A revista National Geographic Brasil reuniu em sua capa da edição de janeiro de 2017 um grupo de 15 indivíduos de variadas expressões de gênero e trouxe um glossário para explicar cada uma delas: LGBTQ é o “acrônimo usado para se referir a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer e outros questionadores” (“queer” é um termo coringa que abarca uma gama de pessoas que não é heterossexual ou cisgênero). Uma pluralidade protegida pelo direito à igualdade, de onde surgem os direitos da diversidade.
O Estado brasileiro tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e por objetivos promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e construir uma sociedade livre, justa e solidária. A escola é espaço de aprendizagem, mas também de exclusão e preconceito.
Não há dúvida de
que a abordagem
de gênero é necessária
São mulheres, além de jovens e adultos LGBT, alvos da tal “pedagogia do insulto”, como ensina Rogério Junqueira, marcada por abordagens humilhantes, brincadeiras jocosas, insinuações inferiorizantes, além de piadas e expressões desqualificantes, na verdade conduzidas pelas normas de gênero da heteronormatividade e pela construção do modelo hegemônico de masculinidade, fontes inesgotáveis de sofrimento.
Se meninos e meninas são socializados a partir do que foi convencionado como comportamentos aceitos e tipificados para o sexo feminino e o masculino e se as escolas fazem parte desse processo, não há dúvida de que a abordagem de gênero é necessária. Como bem ressaltou o ministro Luís Roberto Barroso, em uma decisão liminar, a diversidade é um fato da vida, um dado presente na sociedade e com que os alunos terão de lidar. Afinal, a educação deve voltar-se à promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, bem como do desenvolvimento humanístico do país; além do que normas internacionais ratificadas pelo Brasil reconhecem que a educação deve visar à capacitação para a vida em sociedade e ao irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.
O prejuízo em proibir as referidas discussões e abordagens nas escolas é incalculável e passível de ser reconhecido como uma prática discriminatória; contudo abolir as proibições é uma porta para a transformação. Algumas experiências práticas mostram isso.
Um exemplo é o reconhecimento da identidade de gênero e uso do nome social de discentes travestis e transexuais na rede estadual de ensino de São Paulo. Subiram as matrículas de estudantes trans, em sua maioria na Educação de Jovens e Adultos, mostrando o retorno aos processos de escolarização formal. Outro exemplo é o projeto Vozes pela Igualdade de Gênero, parceria do Ministério Público de São Paulo com a Secretaria de Estado de Educação e com o apoio da Midas Estúdios, visando fomentar a discussão sobre o enfrentamento relacionado às desigualdades de gênero.
A iniciativa propõe aos alunos a participação em um concurso musical, cujos temas como “10 anos da Lei Maria da Penha”, “Respeito às Diferenças” e “Em todos os lugares, em pé de igualdade” são o impulso para a criação das canções. O concurso também promove uma reflexão pública ao instar o voto para a eleição das canções inscritas e a gravação em estúdio de renome: instrumentos estratégicos para a perpetuação do debate.
Cabe aqui um apanhado de algumas das frases das músicas finalistas da 2ª edição do concurso, que bem revela o que os alunos aprenderam e que evidencia que abordar gênero nas escolas não é uma ameaça, mas sim um instrumento para uma sociedade mais humana e igualitária: “Na luta por uma sociedade igualitária, temos muitos que ferem. Que indignação! Nesse mundo tão inverso, julgam a sua forma de andar, mas o que está por dentro não pensam em perguntar. Ah, o respeito! Seja quem for, seja onde for, nós somos mais do que a cor. Vou lutar por um mundo de amor, independente do credo, da cor, do gênero, o que for... Pra acabar com a discriminação, preciso de vocês, irmãos! A sua atitude pode transformar alguém, abra os olhos, saia do escuro. Erguemos nossa bandeira, vamos juntos na militância, em uma luta de importância, com direito de existir.”
Fabíola Sucasas Negrão Covas
é promotora de Justiça, assessora do Núcleode
Inclusão Social do Centro de Apoio Operacional Cível
e de Tutela Coletiva do Ministério Público de São Paulo.
Inclusão para o desenvolvimento
Luis Sobral
Parece impossível falar em identidades de gênero sem falar em pessoas trans. Podemos perceber essa mesma dinâmica em relação às pessoas trans e à transfobia, infelizmente. Ainda mais estando no Brasil, que vergonhosamente lidera o ranking de assassinato de pessoas que se identificam na sigla T. E isso porque os números, que já são alarmantes, ainda esbarram na falta de informação e na negação dessas identidades.
Essa violência extrema aparenta se apresentar como consequência de um ciclo que alimenta a si mesmo e que passa pela invisibilização das pessoas cuja identidade de gênero foge à norma imposta. Pessoas que têm suas existência marginalizadas pela sociedade acabam, em decorrência disso, sendo vítimas de preconceito. E o preconceito, por sua vez, pode levá-las novamente à margem. Para que essa situação mude, é necessário – e urgente – que esse ciclo seja rompido. E não há melhor saída a não ser tornar visível o que por muitas vezes ainda está invisível.
O Museu da Diversidade Sexual é um espaço que propõe levantar debates acerca da comunidade LGBT por meio de diversas ações: exposições, conversas, sessões de cinema, lançamentos de livro e ações educativas, por exemplo. Percebemos, com o passar do tempo, que tão importante quanto debater é também quem está propondo esse debate. E assim começo a falar de Paola Valentina e Klaus Dimitri, respectivamente, produtora de eventos culturais e educador da instituição.
A admissão de ambos no quadro de funcionários do museu legitima e torna mais profundo o debate a respeito da transexualidade, qualificando o posicionamento da instituição perante a sociedade e capacitando-a para receber informações desse universo na via inversa, e também guarda forte relação com o que eu disse há pouco, sobre tornar visível. Antes de virem para o museu, Paola e Klaus tiveram uma trajetória profissional muito comum entre pessoas trans: basicamente empregos informais ou que não pressupõem contato pessoal com o público, como é o caso dos call centers, onde os dois já trabalharam.
Pessoas que rompem com a heteronormatividade se deparam com a recusa frequente na busca por emprego. “Voltar para casa e sentir a dor da rejeição é a pior coisa que podemos sentir na vida. A sociedade nos faz pensar que realmente somos marginais e que não merecemos estar vivos”, recorda Paola. “Dessa forma, restavam-me apenas os telemarketings como trabalho para sobrevivência”, complementa.
A fala de Paola aponta o desafio hercúleo das pessoas trans no acesso ao mercado de trabalho formal. Mas as dificuldades não acabam aí. Ainda não há preparo administrativo para a inserção das pessoas trans, que passam pela falta de respeito e conhecimento por parte dos gestores e áreas jurídicas, trazendo uma carga hostil para um ambiente já estressante, sendo que “as demais pessoas só precisam lidar com o estresse que é proveniente de suas funções”, como observa Klaus.
A falta de tato que a sociedade tem ao se relacionar com pessoas trans obviamente se reflete no ambiente de trabalho. É frequente que colegas façam perguntas de cunho íntimo, como, por exemplo, seu “nome de verdade”, o que causa grave constrangimento. “Todas essas situações, por menores que sejam, ou sem propósito aparente de nos ofender, ainda assim causam um desconforto enorme”, relata Klaus.
E esse incômodo vai bem além. Numa empresa de telemarketing onde trabalhou, Paola foi intimada a não usar o banheiro feminino e por isso ela descia do prédio e usava o banheiro de um bar. “Corri atrás de meus direitos junto à Defensoria Pública e comecei a ser vista como um problema para empresa. Em menos de duas semanas fui dispensada. Não temos direito nem a banheiro”, indigna-se.
As histórias que Paola e Klaus contam já são – ou deveriam ser – suficientemente revoltantes. E isso porque esses relatos dão conta apenas da vida profissional, sem mencionar outras questões, como infância e adolescência, ambiente escolar, família e relacionamentos afetivos. Mas manterei o foco no âmbito do trabalho.
Para que essa situação mude, é necessário
– e urgente – que esse ciclo seja rompido.
E não há melhor saída a não ser tornar
visível o que por muitas vezes ainda está invisível
O fato é que termos os dois trabalhando para o Museu da Diversidade Sexual pode fazer toda a diferença na vida de ambos. É muito provável mesmo que faça. É importante acolhermos e darmos espaço às parcelas da sociedade que ainda estão à margem. É importante tirá-los do subemprego e oferecer oportunidades reais de crescimento profissional.
Mas nunca podemos perder de vista o quão enriquecedor é para o museu e seu público terem Paola e Klaus no time. Eles ajudam a desenvolver e conduzir projetos que contemplam as pessoas T, com abordagem respeitosa e que vem de uma visão empírica sobre a questão. E eles dão as caras, norteando visitantes e mediando discussões no espaço.
A dimensão disso tudo já é percebida por ambos. “Estou descobrindo nessa possibilidade grande compatibilidade com o que gosto de fazer, com o que gostaria de fazer e em como isso pode agregar não só à minha vida particular, mas também às ações que posso desenvolver em prol da nossa comunidade”, analisa Klaus. “Só nós mesmos podemos falar sobre quem somos, o que vivemos e como nos sentimos nessa sociedade preconceituosa. Creio que podemos educar e direcionar melhor as pessoas com nossas próprias experiências”, conta Paola, por sua vez.
O Museu da Diversidade Sexual trata a cultura como um compromisso com o desenvolvimento social, e esse desenvolvimento só se dará por meio da inclusão e do respeito. Embora essas questões encontrem forte ressonância com a missão do museu, deve ser do interesse de todos a busca por uma sociedade com mais justiça e dignidade. Assim sendo, convoco outros espaços, outras empresas, outras iniciativas a fazerem o mesmo.
O museu seguirá com seu objetivo e Paola e Klaus certamente também seguirão. “Meu sonho é encontrar mulheres e homens trans trabalhando em qualquer espaço que quiserem. Luto para que essas pessoas tenham direito a estudo, saúde, moradia e à total dignidade de ser e estar”, diz Paola. “Esses espaços são meus, são nossos, assim como de qualquer outra pessoa. Ainda que a sociedade não tenha se dado conta disso, nós não vamos a lugar nenhum. Se as pessoas se sentem incomodadas conosco em espaços que elas julgam não serem nossos, elas que mudem de planeta”, finaliza Klaus.
Luis Sobral, diretor executivo da Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA),
organização social de cultura que administra o Museu da Diversidade Sexual,
é formado em Administração de Empresas e foi secretário adjunto e
interino de Cultura do Governo do Estado de São Paulo.