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Da mídia ao prato

Você sabe de onde vem o arroz ou a carne do popular “prato feito” dos brasileiros? Se a resposta for não, está na hora de pensar a respeito. Quem faz o alerta é a jornalista Helena Jacob, doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora de ambientes midiáticos da gastronomia, Jacob aponta para o papel da mídia quando o assunto é alimentação. “Fazer as crianças entenderem que o leite não nasceu na geladeira, que ele vem da vaca, é muito mais importante, social e politicamente, do que falar o que comer para ter o corpo sarado”, exemplifica. Por isso, a coordenadora e professora do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero reflete sobre o papel dos meios de comunicação e das redes sociais na transmissão de hábitos alimentares e a necessidade de um olhar crítico sobre o assunto.

 

 


Conversa maluca

Como jornalista, escrevi sobre a área de alimentação e me dediquei a pesquisar o tema a partir do mestrado, em 2004, após trabalhar em várias redações. Depois, no doutorado, investiguei a relação entre alimentação e comunicação com foco na mídia. Para o grande público, esse vínculo entre o que as pessoas comem e os discursos midiáticos não fica nítido. Vira uma conversa maluca. Como no meme que retrata o diálogo de um ovo com a lactose. Ele fala: “Fica tranquila, essa fase vai passar. Já aconteceu comigo”. Esses discursos deixam as pessoas enlouquecidas, sem saber o que comer. Por que se fala tanto de obesidade? Porque ela é um fato e os números aumentaram. Mas por quê? Porque a facilidade de consumir comida ruim é muito grande. Com dez reais você enche a bolsa de doces. Eu adoro, sou formiga. Mas um docinho. O problema é que se estimula a compulsão, a abundância, a disponibilidade. Quando eu era criança, o refrigerante era apenas no final de semana. Hoje não. É o tempo inteiro: de manhã, à tarde, no recreio. Então, essa abundância vem de um discurso publicitário: tal refrigerante significa estar com a família ou dividir bons momentos. E a gente, na comunicação, sabe o poder que isso tem.

 

Capa de revista

Trabalho com um grupo de pesquisa na PUC que discute sobre alimentação e comunicação. Quero fazer um pós-doutorado em saúde porque essa área tem sido muito afetada pelos discursos da mídia. Os nutricionistas recebem um paciente que já vem com uma dieta pronta: “Olha, a fulana de tal famosa faz isso e tem um corpão sarado. Também vou fazer”. Eu vim do mundo das revistas dos anos 1990, com matérias do tipo: “Emagreça cinco quilos antes do Natal para você comer a ceia”. Olha o distúrbio alimentar implantado aí. Vim desse universo que produziu gerações de mulheres e, em menor número, de homens com transtornos alimentares. Só que hoje isso foi potencializado de maneira absurda pelas redes sociais. Além de blogueiras que fazem muito sucesso com milhões de seguidores, a gente tem um contingente de pessoas, algumas até anônimas, que viram famosas mostrando o que comem. O principal impacto vem da internet. Aí o discurso vai repercutindo e afeta muitas pessoas.

 

Origem, moda e transgênicos

Não há uma preocupação com a origem dos alimentos. Isso é fundamental e a mídia fala pouco a respeito. Fazer as crianças entenderem que o leite não nasceu na geladeira, que ele vem da vaca, é muito mais importante, social e politicamente, do que falar o que comer para ter o corpo sarado. Nada contra a quinoa ou a goji berry, mas elas vêm de longe. A quinoa, por exemplo, é cultivada no Peru e em outros países da América Latina, e virou um alimento muito conhecido no mundo fitness. Só que os produtores tradicionais estão sendo engolidos pelas grandes indústrias e tirados de cena, como sempre acontece quando um alimento vira sucesso. Será que não dá para substituir a quinoa por um grão brasileiro? Vejo muito isso na prateleira do supermercado. O que acontece no varejo indica o que a indústria está fazendo. E a indústria segue tendências que, geralmente, vêm da exposição da mídia. O transgênico é outra pauta extremamente mal trabalhada porque a maioria das pessoas não sabe o que é e já ouvi algumas falando: sempre teve transgênico porque sempre hibridizamos as espécies. Sem dúvida. Mas transgênico não é isso. Transgênico é uma espécie criada para produzir de determinada maneira – usando o exemplo do milho – uma única espécie que vai produzir mais, ter um sabor padronizado e, principalmente, será patenteada. Daí, essa semente transgênica mata todas as outras e o produtor rural, a ponta mais frágil do agronegócio, tem que plantar e pagar royalties. Será que o transgênico é essa maravilha, e vai nos salvar da fome mundial? Já haveria menos fome no mundo se não desperdiçássemos tantos alimentos.

 

Cultura em jogo

Outra questão que defendo é a seguinte: esquecemos que somos seres culturais. Não basta só satisfazer a necessidade biológica de comer, mas na cultura é muito difícil dissociar o prazer da alimentação. E aquele doce que sua avó fazia, que é típico da sua cidade? Não é apenas a questão das “madeleines do Proust” [referência ao livro Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, em que descreve o prazer ao recordar da infância ao comer esse doce francês]. A partir do momento em que desconsidero tudo isso e falo que o prato da vez é “frango com batata doce” – vale lembrar que que a gente mora no Brasil e que nosso arroz com feijão é elogiado pelo equilíbrio nutricional –, nessa hora desconsidero todo um fator cultural. Tenta-se padronizar a alimentação, e as particularidades da alimentação brasileira acabam sumindo. Sendo que o guia alimentar do Ministério da Saúde fala: vamos comer uma tapioca, um cuscuz...

 

Nutrir novas pautas

A mídia dá o que as pessoas querem ou a mídia faz as pessoas quererem aquele assunto? Eu acredito na segunda hipótese. E aí, conto muito com os jovens, o lado bom das redes sociais, porque eles discutem essas questões e não compram mais o discurso da minha geração. A gente vê os jovens na universidade discutindo e isso é maravilhoso. Eles querem saber de onde veio aquela comida, querem saber sobre os transgênicos. O ganho com o digital é a discussão. Pelo menos a gente embaralha um pouco o jogo que estava favorável para as grandes empresas alimentícias e grandes produtores. É papel do jornalista destrinchar essas pautas. A mídia tem, sim, responsabilidade.

Foto: Leila Fugii

 


 

 

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