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Meus amigos são baratos
Ilustração: Ki. Mello
Eles estão à minha volta. Todos os dias falamos. Nas festas como Círio e Natal, pedem um dinheirinho. Às vezes confessam que precisam para comprar uma bebida. Vem um e diz que precisa de dois reais para comer um churrasquinho de gato. Imaginem a qualidade. Mas quando o carrinho do Waldenor passa, com aquela fumaça, aquele cheiro, fica irresistível. Quando saio para o trabalho, ela já está no batente. Maria de Fátima, que todos conhecem como Cara de Cavalo. Chamo pelo nome. Acho ofensivo chamar pelo apelido. Meia-idade, baixinha, morena, cabelos bem negros, mantém corpitcho e chega pontualmente às 8 da manhã. Sai bem tarde. Seus clientes são tiozinhos que recebem a aposentadoria e querem alguns momentos de felicidade. No Círio passado, me pediu para comprar uma camisa de Nossa Senhora de Nazaré. Com Irene, não falo mais. Contei uma vez que a levamos ao dentista, onde ganhou dentadura. Dois dias depois, chorando, pediu para trocar. Queria a velha, de volta. É que eu já sou foló e agora só no oral, doutor. Ficou chateada. Não me autorizou. Deixa disso, Irene. Nem me olha! O Blake tem problema nas pernas. Acho que foi poliomielite. Anda de muletas. Blake é por causa daquela dança, “break”. Mas ninguém consegue dizer direito e virou Blake. O mundo é sua casa. Canta como se tivesse dó no peito. Junta palavras bonitas e dá pinta de ter educação. Também tem a Raimundona. Morena, rosto severo, bem gorda. Agora ela vende bombons, cigarros e drogas na parada de ônibus. Fica lá, sentada, vigiando a cena. A Sônia tem marido, filhos e até empregada em casa. É quase um vício. Aos finais de semana, surge a Travestriste. Eu o chamo assim. Me disse que, durante a semana, é cozinheiro. Magro, alto, rosto sofrido, ela se monta e quando chega o domingo, está alcoolizada, sem amor, destroçada, caída pelas calçadas ou mexendo com quem passa. Seu aplique está torto. Camisas e calças, salto alto, pedindo um pega pro garoto que acende, vocês sabem o quê. Ah, essa minha rua já foi a principal da cidade. Era 12 de Agosto, para homenagear a adesão do Pará à independência do Brasil. Mas aí veio Getúlio e trocaram o nome. Nela, estão prédios públicos abandonados, camelôs vendendo de um tudo, a Praça da República e dois teatros, “Waldemar Henrique” e “Teatro da Paz”.
Ao meio-dia, desço para almoçar ali perto. Os ônibus, carregados, se amontoam. Em uma esquina, a Universal convida para cultos de descarrego. Duas ou três bicicletas com pequenos mas potentes amplificadores duelam tocando o melhor (ou o pior) do brega e sucessos dos anos 60, Jovem Guarda, por exemplo. Outros vendem DVDs piratas. Caminho por um longo corredor polonês, formado por carros que vendem comidas típicas. As pessoas sentam ali, na rua, em cadeiras de plástico e comem maniçoba, caruru, pato e outras iguarias. Como não há espaço nas calçadas, todos vão para as ruas, aguardar os ônibus. E passam vendedores de chips, óculos, cigarros, todos falsos que nem uma peruca. Entre eles, um homem corpulento, suado, rosto vermelho.
Tem nas mãos uma bíblia desgastada, sebenta. Brada aos céus e a quem passa por um lugar no céu e a renúncia a todos os bens terrenos. Ninguém parece dar ouvidos. Mas eu estava saindo de casa, não é? Preciso falar do Baldo. Maneiroso, gentil, escolhendo palavras bonitas, ele trabalha apenas de tarde, tomando conta de carros, na Praça da República. Está sempre com uma camisa do Flamengo, antiga e surrada, ou do Paysandu, time local, sua paixão. Como ele sabe que torço pelo Remo, não tocamos nesse assunto, preferindo dividir vitórias ou derrotas do nosso Flamengo. Os rapazes que trabalham na banca de revistas, próxima, provocam, mas ele faz que não ouve. Uma vez me pediu para falar com algum policial que conhecesse. Um cara, o “Navalha”, tinha prometido bater nele. O cara é somente um perdido, foi preso uma vez por estar com uma faca, ameaçando pessoas. Rosto fechado. Eu lhe falo pausadamente para não incomodar o Baldo. Resmunga qualquer coisa, tipo está bem, mas não fala mais que nem precisa. Na confluência, fica a Travessa Riachuelo, onde houve uma zona de meretrício. Algumas, mais velhas, ainda estão, olhos cansados mas ansiosos, desejando antever, em cada um que passa, a possibilidade de um encontro. Duas senhoras, uma mistura de índio e negro, pele escura, cabelos lisos, grossos, pretos, compridos. Passo e sempre dizem “amorzinho, vamos fazer um amor gostoso?” Não, obrigado, meninas.
Outra vez, passei e elas “olha, ele cortou o cabelinho. Amor, vem cá, vem”. Aí tem Dona Zilda. Ela chega umas 5 da manhã na esquina, senta e oferece café preto ou com leite, para quem chega para trabalhar. Ou quem chega da festa. Vai embora umas 10 da manhã. São todos amigos, quer dizer, se um pavio acende, não sei. Os taxistas estão sempre ali, na esquina. Seu Juracy, a quem chamam de “Tatu”, acho que em homenagem a um ator de uma série antiga de TV. Jucivaldo, todos já de cabelo branco. O mais velho é Seu Wilson, quase sempre de mau humor. Dizem que é parecido com um personagem daquele desenho Meu Malvado Favorito. Um deles está sempre, de noite, domingo. Fazendo um extra? Não, doutor, é que se fico em casa a mulher enche o saco. E vêm os engraxates. Eles estão em meu último livro. Seu Carlos é aposentado. Está ali para não ficar em casa, jogado no sofá. Trabalha até depois do almoço. Também não força a barra. O outro é Benedito, alcoólatra. Tudo o que ganha, bebe. Mas quando está bom é pessoa doce, tem dificuldades para falar, embola as palavras. Se entende com Roni, outro que toma conta de carros. Olhos ladinos, espertinhos, está sempre com uma lata com água para lavar carros. Às vezes bebe e desanda. Forma com Benedito uma dupla incrível. Cantam músicas que nunca ouviram e batucam na lata. Doutor, dá pra ver, exagerei. Arranja algum só pra voltar pra casa? Sério, mesmo, é o Helio, baixinho, cheio de marra, que toma conta em outra parte da calçada. Sua paixão é um fusca, mantido brilhando, como que em exposição permanente. E quase sempre passa outro personagem do livro. Pele branca, bonita, ainda, mas maltratada, ela passa ou pedindo dinheiro ou vendendo algum vestido que roubou da mãe. É usuária de drogas. Uma pena. Quando escrevo, sinto que todos eles, meus amigos, estão atrás da minha cadeira, cutucando, argumentando, reclamando, querendo mais espaço nos livros. E eu os ouço, gosto da melodia, do vocabulário, da cadência do falar. Um escritor é um vampiro que pula no pescoço de suas vítimas atrás de boas histórias. E meus amigos, sinceramente, meus amigos são baratos.
Edyr Augusto é escritor e jornalista
paraense, autor de Pssica, Casa de Caba e Moscow,
entre outros títulos editados pela Boitempo. Com o
livro Os Éguas foi consagrado com o prêmio
francês de literatura Caméléon em 2015,
de melhor romance estrangeiro.