Longe de ser uma experiência
solitária, ler é uma vivência coletiva
que começa com a palavra falada
para depois fazer-se escrita
Foto: Alexandre Krug
Desde o século 15, quando o alemão Johannes Gutenberg criou a inovadora prensa com tipos móveis, peça fundamental para a popularização dos livros, a leitura foi aos poucos tornando-se parte do dia a dia na sociedade. No entanto, no início eram poucos os volumes impressos e menor ainda a quantidade de pessoas que sabiam decifrar aqueles códigos que abririam portas para novos cenários e personagens. Por isso, muito antes de os livros chegarem às mãos de leitores, eles chegaram aos seus ouvidos. Ou seja, a leitura começou como uma experiência oral. Característica que até hoje se perpetua em casa, clubes literários, saraus, programas de rádio ou outras plataformas como o YouTube, a exemplo de booktubers (leia o boxe Narrativas múltiplas). Ações que propagam o interesse por clássicos, crônicas, ficções e outros gêneros, principalmente, em iniciantes ávidos por desvendar o mundo das letras.
“Muitas vezes começamos a leitura em casa, com a família. Temos aí o primeiro registro se pensarmos em pais, avós ou tios que leem ou contam histórias para as crianças. Você tem a oralidade indissociável da formação de leitores. Por isso, a leitura é uma atividade social, é algo coletivo e vem do cotidiano, da inter-relação e da interafetividade. A leitura é, antes de qualquer coisa, uma troca”, explica o doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) José Castilho, ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura do Brasil.
Também é este o quadro destacado pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cuja última edição foi divulgada em 2016: 33% dos leitores tiveram alguma influência da mãe, seguida pela do professor (7%), e a leitura foi realizada com maior frequência em casa (81%) do que na sala de aula (25%). Ainda segundo a pesquisa, o índice de leitura no país, mesmo sendo baixo, passou por uma ligeira melhora. Impactos que, de acordo com Castilho, vêm desde o Plano Nacional de Leitura de 2006, de mais eventos literários e de outras atividades acompanhadas por ações coletivas, envolvendo comunidades e cidades inteiras em torno da literatura.
Soma-se a essas mudanças a Política Nacional de Leitura e Escrita, promulgada em julho passado: primeiro marco legal sobre a formação de leitores no Brasil. Entre as diretrizes da nova legislação está o reconhecimento da leitura e da escrita como um direito. “Não vivemos isolados, vivemos em comunidades, nos nossos lugares de trabalho. Do meu ponto de vista, e entendo que também desta lei, a leitura é uma experiência compartilhada e, portanto, socializada”, complementa Castilho.
Palavra e som das ruas
Poeta e slammer (quem participa de slam, batalhas de poesia falada), Emerson Alcade, criador do Slam da Guilhermina, na Zona Leste de São Paulo, teve seu primeiro contato com a literatura na escola, no ensino fundamental. Foi em sala de aula que ele ouviu as primeiras narrativas de temas sociais que nele despertariam a curiosidade por autores como Graciliano Ramos. “Depois, na adolescência, veio o Hip Hop e eu comecei a cantar rap. Senti a necessidade de ler mais. Vi que tinha uma limitação de transpor em palavras o que eu sentia e também o que eu via da realidade. Tinha um repertório pequeno de palavras, então passei a ler muito para poder escrever melhor as minhas letras”, recorda.
A leitura ganhou ainda mais amplitude para Emerson há dez anos, quando ele entrou em contato com a literatura marginal e com os saraus de periferia. Foi também nessa época que ele descobriu o slam: competição em que poetas recitam seu trabalho, criada na década de 1980 em Chicago (Estados Unidos) e que chegou ao Brasil em 2000. Participou da primeira edição de slam no país, o campeonato ZAP (Zona Autônoma da Palavra) Slam, até participar de vários torneios como o slam nacional e o mundial de 2014, na França, no qual ficou em segundo lugar.
Para Emerson, o slam é uma forma de divulgar livros e também de formar novos leitores. “Nele, as pessoas têm a possibilidade de falar o que escrevem e aquelas que escutam vão, depois, buscar livros, textos e fanzines publicados por poetas. Ou seja, é uma porta de entrada para aqueles que não têm acesso a bibliotecas, livros físicos ou que não frequentariam espaços de leitura”, diz. Além disso, acrescenta: “É possível ver que a literatura não é chata e que um texto pode falar da sua realidade”.
Ouvir, contar e ler
A atriz e contadora de histórias Kiara Terra também acredita no potencial da palavra falada para a formação de ouvintes, narradores e leitores. Há 20 anos, ela pesquisa a palavra, a oralidade e a literatura. “Penso que o gosto pela leitura se inicia na leitura do mundo e que a oralidade é um dos instrumentos primeiros, como o corpo, a percepção e a capacidade de fazer perguntas”, analisa.
Seguindo esse preceito, ela viaja pelo país ministrando oficinas, a exemplo de A Paixão pela Palavra: Narrar, Escrever e Ler para Pertencer ao Mundo, que será realizada no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, no dia 16 (leia o boxe Palavra Viva). Na ocasião, apresentará um método que desenvolveu chamado História Aberta. Nesse processo de narração autoral, apoiado em bases filosóficas e artísticas, os participantes são convidados à prática da narrativa. “Acredito que, quando uma criança, jovem ou mesmo adulto encontram a potência da palavra, eles têm a chance de se tornar o narrador da própria história”, pondera.
Dessa forma, segundo Kiara, o acesso às histórias narradas ou escritas pode trazer o entendimento de origem e ancestralidade, bem como habilitar a pessoa a sonhar novas possibilidades para si. “Contar histórias, ouvir histórias, criar histórias, encontrar novas narrativas possíveis é algo tão necessário quanto respirar. E o mais bonito é que quase sempre o fazemos coletivamente quando afirmamos não estarmos sozinhos no mundo”, conclui.