Postado em
Sexualidade na velhice
Numa casa simples, no entorno do Distrito Federal, Rosinha – personagem da atriz Maria Alice Vergueiro – vive com o marido, Assis, interpretado por Andrade Júnior. Numa relação de cuidados mútuos, o casal caminha de mãos dadas com a velhice. Até que Assis descobre uma enfermidade terminal e decide arrumar um namorado para a esposa – o amigo e vizinho Brandão, papel de João Antonio – para que ela não fique sozinha. Surpreendentemente, o que acontece nesse enredo escrito e dirigido pelo cineasta brasiliense Gui Campos é que os três experimentam uma redescoberta da sexualidade, além da vivência do amor e da cumplicidade, numa época da vida em que esses temas passam a ser tabus. Vencedor do 44º Festival de Cinema de Gramado de melhor filme, melhor roteiro e prêmio especial do júri para Maria Alice Vergueiro, o curta-metragem Rosinha (2016) conduz com sensibilidade a questão da sexualidade na terceira idade, assunto importante a ser debatido, dado o envelhecimento da população mundial e as intensas mudanças no universo afetivo-sexual pelas quais homens e mulheres acima dos 60 passam. Levantam questões sobre o tema a pesquisadora e pós-doutora em Antropologia Mirela Berger, autora do livro Corpo, Erotismo e Sexualidade em Mulheres da Terceira Idade: O Renascer da Fênix (Novas Edições Acadêmicas, 2016), e o escritor e ativista na área de direitos humanos João Silvério Trevisan, autor de Devassos do Paraíso (Objetiva), obra lançada na década de 1980 e que se tornou referência dos estudos de gênero. Berger e Trevisan também participaram da programação de Libididades, em março, no Sesc Pompeia, atividade que reuniu uma série de conversas, intervenções, vivências e ações artísticas sobre a diversidade e as práticas sexuais na terceira idade.
Imagens: Editora de Arte
Quebrando tabus: vivências sexuais na terceira idade
Mirela Berger
Este artigo é uma sistematização de alguns dados sobre a percepção do erotismo e do sexo em mulheres da terceira idade. Trata-se de uma pesquisa comparativa, pois entrevistei um total de 42 mulheres. No primeiro grupo, frequentadoras de uma academia de ginástica no Morumbi, num programa voltado para a terceira idade. No segundo, participantes de um projeto e de um grupo de convivência na periferia do Campo Limpo.
Realizada entre 2010 e 2012, a pesquisa visava debruçar-se sobre um tema tabu: a sexualidade em mulheres idosas. O estereótipo vigente na época ainda era o de uma velhice assexuada e confesso que levei quatro meses de intensa convivência com as mulheres pesquisadas até que elas rompessem o véu da invisibilidade sobre a sexualidade e começassem a falar abertamente de desejo, erotismo e sexo. De imediato, um dos pontos que chamaram minha atenção é que metade da amostra tinha vida sexual ativa e outra parte, embora não tivesse o intercurso sexual propriamente dito, vivenciava o erotismo em suas vidas.
É importante destacar que um dos aspectos mais significativos dos nossos dias é o prolongamento da vida sexual, principalmente para as mulheres, e que há um forte vínculo entre sexualidade e subjetividade. A sexualidade é vista como um elemento central na construção do “eu”, fazendo parte da própria identidade feminina. Como construção social, a sexualidade humana implica, de maneira inevitável, a coordenação de uma atividade mental com uma atividade corporal, ambas aprendidas por meio da cultura.
O sexo na maturidade é visto por elas como algo natural, mas que ao mesmo tempo precisa ser cultivado. Justamente porque o “fogo” dos primeiros anos de casamento já se apagou e é preciso, constantemente, “soprar as brasas” para que ele reacenda. Não que elas vejam o sexo como obrigação, porém percebem sua importância para manter o parceiro. Há nas falas das entrevistadas a ideia de competência e talento para manter o sexo em atividade. Além de uma sutil referência às habilidades da mulher nesse sentido.
Além das mulheres casadas, o segmento mais propenso à manutenção de uma vida sexual são as separadas que buscam parceiros em viagens, redes de amigos e outros. As viúvas, em geral, tendem a não querer mais um novo parceiro, seja por terem sido muito felizes com o marido, seja pelo contrário.
Descobertas à vista
O segundo aspecto que chamou muito minha atenção foi o fato de que tanto as mulheres da periferia quanto as da elite frequentam sex shops. A redescoberta do corpo (pela saúde ou pela estética) torna a dimensão corpórea do “eu” mais evidente e estimula estratégias para esse corpo ser um corpo que goza, que se vê e se torna mais saudável por receber estímulos sexuais.
Essa redescoberta do corpo, aliada a uma ideia de subversão – das rotinas da casa, da possibilidade de
sair sozinha, de ter projetos de vida e uma curiosidade sobre mundos não conhecidos –, estimula a mulher mais velha a iniciar-se nos sex shops em busca da satisfação do self.
Segundo minha pesquisa de campo realizada em dois sex shops, as vendedoras estimam que 15% do público é de mulheres idosas. Além das hot balls (bolinhas de óleo perfumado que são introduzidas na vagina e que se rompem com a penetração), brinquedos sexuais que funcionam como estimuladores clitorianos são muito procurados. Mas, curiosamente, o item mais desejado são as próteses penianas, que quanto mais realísticas melhor. Mesmo aquelas que já não têm mais o intercurso sexual gostam de produtos de sex shop, como uma das entrevistadas de 72 anos que espera o marido chegar da rua vestida com uma fantasia, enquanto faz o jantar.
Vale dizer também que o uso de estimuladores clitorianos e de próteses penianas aumentou, segundo as entrevistadas, por medo das doenças sexualmente transmissíveis. Eles se constituem como uma possibilidade de prazer sem os riscos que um parceiro real possa acarretar. As entrevistadas comentam que os homens, mesmo mais velhos, não querem usar preservativos e isso, obviamente, se constitui como um risco para todos os envolvidos.
Baila comigo?
Outro aspecto bastante citado pelas entrevistadas é que os bailes de terceira idade são um excelente momento para exercer livremente a sexualidade, seja por estarem em evidência ao dançarem e se produzirem para os bailes, seja pela possibilidade de encontrarem um parceiro sexual. Algumas fazem até um kit composto de lenços umedecidos, lingerie, preservativo e outros itens. Segundo relatos das entrevistadas, os hotéis e motéis próximos aos bailes costumam ficar cheios ao término dos bailes. A busca do sexo sem compromisso por mulheres acima dos 60 anos foi uma das descobertas da pesquisa.
A título de finalização, vamos a algumas considerações: Uma delas é que depois de cruzarem a barreira para falar sobre sexo, quase todas se mostraram muito informadas sobre assuntos como reposição hormonal, erotismo, prevenção de gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis. Percebi que havia uma necessidade de falar sobre tais assuntos e a maioria foi enfática em afirmar que o desejo sexual e o erotismo não devem se acabar com a terceira idade, e sim se manterem vivos. Comentam que atualmente, há menos tabu sobre assuntos relacionados à sexualidade e que a busca pelo prazer deve ser uma constante até o final da vida.
São elas que estão
procurando viver uma
sexualidade ativa, muitas vezes
descoberta na terceira idade
Cabe aqui uma consideração fundamental: a perspectiva teórica que norteou esse trabalho vê a sexualidade e o erotismo como um conjunto de fatores, tais como o cuidado de si (que envolve a adesão à ginástica, a vaidade etc.), a arte de seduzir, o controle do corpo, o manejo das situações de flerte, a desenvoltura na dança etc., e não apenas o ato sexual propriamente dito. Dessa maneira, uma das conclusões da pesquisa é que as mulheres por mim entrevistadas estão vivendo suas próprias revoluções sexuais e que, mais do que os homens, estão na vanguarda no que se refere à sexualidade.
Elas não aceitam mais nenhum tipo de tutela, seja dos maridos, namorados, filhos ou filhas. Elas saem na hora que querem e voltam quando querem, embora sempre salientem que cuidam muito bem de suas casas. Não aceitam mais os tabus sexuais, relacionando-se com homens, em geral, mais jovens, buscando sexo sem compromisso, mas com segurança, permitindo-se ir a sex shops. Algumas das entrevistadas relatam experiências homoeróticas vividas após os 60 anos.
São elas que estão procurando viver uma sexualidade ativa, muitas vezes descoberta na terceira idade. Minhas mulheres são passarinhas que não viveram a revolução sexual dos anos 1960, mas que a estão vivendo agora. Estão voando para longe dos ninhos seguras de si, e nas palavras de Afrodite (nome fictício para uma das entrevistadas): “Olha, Mirela, eu tô vivendo, muito”. Acho que todas estão. E a elas dedico este artigo.
Mirela Berger é formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutora em Antropologia Social pela mesma instituição. Pós-doutora em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente há mais de 23 anos, possui amplo acervo de produções didáticas no site mirelaberger.com.br. Também é autora do livro Corpo, Erotismo e Sexualidade em Mulheres da Terceira Idade: O Renascer da Fênix (Novas Edições Acadêmicas, 2016).
Imagens: Editora de Arte
A população LGBT na terceira idade
João Silvério Trevisan
Se o fantasma da morte atemoriza os seres humanos com a possibilidade do fim da vida, um dos nossos maiores medos durante a vida é perder a juventude. Ser jovem significa não só ter esperança e entusiasmo aparentemente inesgotáveis, mas também uma promessa de pleno gozo da sexualidade. Para os padrões sociais que consagram a imperiosidade da beleza jovem, não ser mais jovem implica a diminuição da capacidade de seduzir.
Isso acarretaria a solidão e, na sequência, a perda do apetite sexual. Se os filhos podem criar nos pais uma ilusão de acolhimento nem sempre cumprido, viver a integridade da solidão tem potencial para acrescentar uma plenitude enriquecedora na velhice. Num tempo em que a expectativa de vida aumenta velozmente, a chegada à terceira idade pode ser também um tempo de libertação. A experiência de vida mostra que a sexualidade não é o único motor da felicidade.
O sonho da “juventude eterna” traz consigo o desprezo pela imensa diversidade do impulso desejante, que abre múltiplas alternativas de satisfação, para além da mera libido. Em ambos os sexos, o apetite voraz da juventude vai desaparecendo, mas não necessariamente pela diminuição da potência sexual. Por um lado, muitos idosos encontram caminhos para uma prática sexual que se mantém na contramão da ilusão de “juventude eterna”. Por outro, as vivências da maturidade até a velhice vão encontrando novos elementos que compõem o espectro da felicidade humana, mesmo no campo dos afetos e amores.
Preconceito social
Todo esse quadro se exacerba quando nos defrontamos com o envelhecimento na população LGBT – e não apenas na abordagem da sexualidade. Por desconhecimento ou desconsideração, pouco se fala desse segmento da sociedade brasileira que envelhece. Graças a um preconceito social secular, tal população tende a ser particularmente marginalizada. O preconceito já começa na infância LGBT, quando as crianças “diferentes” são hostilizadas sem sequer saber os motivos, e acabam sendo rejeitadas de modo até brutal. Minha história pessoal ilustra essa situação.
Quando criança, eu sofria violência ou rejeição no meu entorno e tomava surras do meu genitor, por não corresponder às suas fantasias de macho (ainda mais sendo eu o primogênito). Narrei essa história e muitas mais no meu livro recentemente publicado: Pai, Pai (Alfaguara). Mas não fui, nem sou, o único. Antes mesmo da adolescência, inúmeras crianças LGBTs chegam a ser expulsas de casa ao se descobrir sua orientação sexual ou identidade de gênero. A segregação pode acontecer com qualquer das letrinhas LGBT, mas tudo piora no caso de transexuais e transgêneros(as).
Nessas condições de abandono, um grande contingente de LGBTs se vê obrigado a organizar a vida longe de suas famílias. É verdade que se podem criar novos arranjos familiares, seja por meio de casamentos e famílias homoafetivas, seja graças aos grupos de amigos(as) fiéis. Mas tudo se torna mais premente quando vem chegando a velhice, com as dificuldades inerentes à idade: problemas de saúde, mobilidade, isolamento e, no limite, depressão provocada por solidão e abandono.
É comum que esses (as) idosos(as) não tenham quem os(as) acolha ou cuide. Mesmo quando envelhece em relações estáveis, um casal homoafetivo pode sofrer de redobrado desamparo na velhice. Se no Brasil os problemas da velhice não se restringem a LGBTs, o fato de não ter filhos ou estar distante da família incorre em maior risco de abandono. Mesmo porque não existem políticas públicas voltadas para LGBTs de terceira idade. Até mesmo os parcos centros de acolhimento de idosos incapacitados são ineficazes. Há histórico de idosos LGBTs que precisam voltar para o armário quando admitidos em casas de repouso onde a norma é a heterossexualidade. Caso assumam sua sexualidade, sofrem preconceito e humilhação do próprio grupo de idosos, tornando seu entorno insuportável.
Outros modelos
Mesmo dentro da comunidade LGBT existe forte rechaço à sua população de terceira idade. O motivo mais imediato é o acirramento do medo de envelhecer, graças ao baixo nível de autoestima, mais presente nesse segmento com histórico de opressão. Pode-se afirmar que um dos grandes problemas ante a perspectiva da velhice, nas pessoas LGBTs, é o temor ante o espelho que seus idosos apresentam quanto à diminuição da libido. Por experiência própria, posso dizer que se está menosprezando uma situação de certo modo privilegiada.
As vivências da maturidade até a velhice vão encontrando novos elementos que compõem o espectro da felicidade humana, mesmo no campo dos afetos e amores
Curiosamente, mais do que em qualquer outro segmento social, LGBTs apresentam uma peculiaridade amorosa. Trata-se da multidão de homens e mulheres jovens que se relacionam com “coroas” de ambos os sexos, numa troca de experiências bastante enriquecedora. Esse amor intergeracional vem recompor o quadro familiar, consagrando novos moldes amorosos, tanto quanto as famílias homoafetivas.
A morbidez implícita no pânico de envelhecer leva ao preconceito contra os membros idosos da comunidade. E resulta, por tabela, no abandono da sua própria perspectiva de envelhecer com mais propriedade, sem negar a morte. Pela experiência acumulada em relação à finitude, nós, idosos, deveríamos passar às gerações mais novas o aprendizado de que vida e morte compõem um mesmo processo.
Os seres humanos vivem tentando ludibriar a morte a qualquer custo. Para tanto, fazemos de conta que somos eternos, e buscamos adiar a finitude do viver. A sensação de imortalidade toma ênfase à medida que aumenta a expectativa de vida na contemporaneidade, sobretudo graças a grandes avanços da medicina. A chamada terceira idade tem ampliado seus limites, até o ponto de já se mencioná-la só a partir dos 80 anos. Mais do que nunca, parece que o ser humano quer viver para sempre. Trata-se, obviamente, de uma fuga da realidade.
A morte faz parte da vida. Ela é não só inevitável para quem vive como tê-la em nosso horizonte
nos ensina que a consciência da sua efemeridade torna a vida muito mais preciosa. Viver e amar sabendo-se mortal é inigualavelmente mais saboroso. Em outras palavras, para saber viver melhor é preciso saber morrer. O próprio Amor se magnifica quando sabemos da sua fragilidade. Isso se aplica a LGBTs ou não.
João Silvério Trevisan é romancista, contista, ensaísta, roteirista, diretor e dramaturgo. Autor de mais de dez livros, entre eles Devassos no Paraíso (Objetiva) e Pai, Pai (Alfaguara), já ganhou três prêmios Jabuti, entre outros. Ativista na área de direitos humanos, ele fundou em 1978 o Somos, primeiro Grupo de Liberação Homossexual do Brasil, e ainda na década de 1970 foi um dos editores-fundadores do mensário Lampião da Esquina, o primeiro jornal voltado para a comunidade homossexual brasileira.