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Até no lixão nasce flor
Entre a ficção e a realidade, a história, tanto da vida imaginada quanto da real, nos conduz a reflexões importantes sobre o mundo como ele é e o mundo como gostaríamos que fosse.
Certa vez, assistindo a uma palestra da psicanalista Maria Rita Kehl, cujo tema era literatura e psicanálise, a autora destacou a própria vida de cada um de nós como literatura, no sentido de que a experiência de leitura (leitura de mundo, leitura de romance) é também uma experiência de invenção de uma narrativa pessoal, ambas constituintes de aspectos fundamentais da nossa subjetividade.
Outro dia, em uma conversa com o poeta e educador Rodrigo Ciríaco, que apresentava o histórico dos saraus e slams na cidade de São Paulo, tomando como referência o ano de 2001, o seu discurso deixava muito clara a relação dessas movimentações artísticas com as identidades sociais, a superação de barreiras, as relações de pertencimentos e lugares de fala para além do reconhecimento social e cultural dessas atividades, compreendidas sob a ótica dos signos das periferias.
A sorte de poder vivenciar mais de dez anos de experiências culturais com uma proximidade privilegiada do campo literário, mais uma trajetória pessoal que parte de um lugar de fala também constituído nas bordas da cidade e ressignificado na ocupação de espaços de luta e poder que nos definem como sociedade, permite materializar de modo bastante simbólico essas transformações e percepções do mundo por meio da arte, sem evidentemente escapar de suas contradições.
Imaginarmos, há quase 20 anos, o surgimento de uma produção literária e de narrativas, fundamentalmente marcadas por uma estética forjada nos trens, nos botecos, nos escadões, nas esquinas, nos metrôs, bem como um potente discurso carregado de protagonismos, de contestação, de afeto, de denúncia, de alegrias, de vontade de mudança, de reconhecimento e respeito, mas, sobretudo, essencialmente de arte, é um significativo exercício sobre a vida imaginada e a vida real.
Essa mistura entre realidade e ficção e o modo como percebemos o mundo revelam como aquilo que projetamos é necessariamente permeado pelas nossas subjetividades e que a imponderabilidade do real pode socialmente, culturalmente e artisticamente transformar, parafraseando o pensador Michel Maffesoli, o imaginário em realidade.
Em outras palavras, e a meu ver, certamente mais apropriado para o desfecho dessa reflexão, os Racionais MC’s, no hit Vida Loka, sintetizam a complexa dimensão dessa questão, quando dizem poeticamente “... porque até no lixão nasce flor”.
André Augusto Dias é assistente da área de Literatura e Bibliotecas da Gerência de Ação Cultural do Sesc.