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Entre sonho e realidade

Foto: Bob Wolfenson
Foto: Bob Wolfenson

Entre sonho e realidade

Em sua primeira passagem por São Paulo, em novembro de 2019, a performer, poeta, punk, desenhista e lenda do rock Patti Smith protagonizou momentos memoráveis para os fãs de longa data e os que acabaram de conhecê-la. Aos 73 anos, esteve na cidade para dois shows e para o lançamento de seus livros mais recentes: Devoção e O Ano do Macaco (Companhia das Letras, 2019). O público também teve a oportunidade de participar de um bate-papo e interagir com a artista em um encontro no Sesc Pompeia, no dia 14/11. Entre as diversas imagens lendárias de sua trajetória, ela ficou registrada como a mulher que encara a câmera vestindo camisa branca e suspensório na capa do disco de estreia, Horses (1975), fotografada por seu amigo Robert Mapplethorpe. Ícone no imaginário da cultura pop, Patti tem muita história para contar, e o público se deliciou com cada episódio compartilhado durante a conversa em que falou sobre suas obras, preferências literárias e motivações de vida.

Entretempos

Por que o título O Ano do Macaco? Porque realmente foi. Percebi que foi um ano muito difícil e o relacionei à teoria do ano do macaco do calendário chinês, disso veio o nome. Não planejava lançá-lo, pois estava trabalhando em outro totalmente diferente, mas meu aniversário é bem na virada do ano [30 de dezembro]. Então somou a data do meu aniversário, mais o ano novo, e eu tinha um grande show com a minha banda no Fillmore [casa de shows em São Francisco, EUA], além de uma viagem marcada com um dos meus melhores amigos, mas ele sofreu um acidente e tive que viajar sozinha. Sem meu amigo, meu caderno de anotações virou meu companheiro de viagem.

Eu escrevi Só Garotos [lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2010] motivada pelo passado, porque Robert Mapplethorpe me pediu. Foi escrito para ele. No livro seguinte, Linha M [a edição brasileira é de 2016, também pela Companhia das Letras], não planejei, mas estava olhando para o passado motivada pelo meu ex-marido [Frederick Dewey Smith, morto em 1994]. Então, foram dois livros sobre amores da minha vida, um sobre Robert e depois sobre meu marido, Fred. O Ano do Macaco é o único que escrevi no presente, algo que lutei para manter. Não queria voltar no tempo, mas sim me manter no presente, neste intervalo da minha vida. Assim, o leitor tem a sensação de se mover comigo.

Realidade, ficção e feijões saltadores

Tudo em Só Garotos aconteceu de verdade. Nesse sentido, é um livro comprometido com os fatos. Mesmo tendo sido escrito de uma forma mais poética, não há fantasia. Aconteceu do jeito que está nas páginas. Já O Ano do Macaco se parece comigo: vivo com um pé no sonho e outro na realidade. Estou fisicamente no presente, e minha mente se move por toda parte. Às vezes, enquanto converso com alguém, meu cérebro segue em uma história autônoma, sobre outro assunto qualquer. Por isso digo que tenho um cérebro jumping bean, como aqueles feijões mexicanos que saltam quando aquecidos. O livro também é uma forma de compartilhar meu universo e me divertir com o leitor: algumas passagens são ficcionais, mas os amigos que cito no texto são reais, meus filhos são reais. Esse esquema de escrita reflete a minha vida.

Processo criativo

Escrevo um pouco todos os dias: letras de música, poemas curtos. E a solidão é uma boa companhia para mim. Trabalho bastante o texto, porque no começo meus textos não foram bem recebidos pela minha editora, pois eram escritos mais abstratos. Os editores me deram boas sugestões, eu pensei a respeito e me comprometi em facilitar o entendimento desses textos. Contudo procurei manter o tom mais abstrato para desafiar os leitores que estivessem dispostos. Meus melhores amigos aparecem em minha escrita e alguns deles já morreram – sem ter acesso aos livros –, então me sinto feliz em homenageá-los.

Muito do que escrevo é particular. Não faz parte do meu processo compartilhar e pedir opiniões sobre o que estou escrevendo. Só peço a opinião do meu amigo Lenny Kaye [guitarrista da banda de Patti Smith, companheiro desde a década de 1970]. Na verdade não gosto de ser editada por outras pessoas, mas aprendi que às vezes o editor tem boas ideias. Mesmo que eu aproveite 20% do que foi comentado, isso é precioso. É maravilhoso.

I can’t get no... Connection

Jamais quis comprar um telefone celular e me neguei a ter o aparelho por muito tempo. Estava com meu amigo [o ator] Johnny Depp enquanto ele rodava um filme em Porto Rico e meu filho queria conversar comigo, sem sucesso, porque eu estava longe e não tinha um celular. O Johnny também não é uma pessoa fácil de achar, mas quando finalmente meu filho conseguiu achá-lo, pediu a Johnny que me desse um celular. Assim meu amigo veio com o telefone nas mãos: Patti, este agora é o seu celular. E, bem, agora tenho um número para o qual as pessoas podem me ligar, mas, na verdade, uso mais o aparelho para fotografar.

Sobre redes sociais, não sou tão ativa no geral, mas por incentivo da minha filha comecei a usar o Instagram. De novo, fui estimulada por outra pessoa próxima a utilizar essas tecnologias. Eu adoro meu perfil na rede social [@thisispattismith] porque é global, recebo mensagens do mundo todo, muitas mensagens de pessoas de São Paulo. Posso compartilhar minhas ideias sobre músicas, convicções políticas, coisas que acho importantes ou divertidas.

De escritora para escritores

Adoro livros desde criança. Não me imagino conversando com os escritores que admiro, a não ser que seja para agradecer-lhes. Na infância, em minhas orações, agradecia Collodi [o italiano Carlo Collodi,1826-1890, autor de As Aventuras de Pinóquio]: “Oh, senhor Collodi, muito obrigada por ter escrito Pinóquio”. Às vezes visito os cemitérios nos quais os meus escritores preferidos estão enterrados, como [a norte-americana] Sylvia Plath [1932-1963] e [o irlandês W.B.] Yeats [1865-1939]. Sou uma escritora visitando outros escritores. Menciono muitos autores e livros em minha própria literatura, pois nem todos os conhecem. É um jeito maravilhoso de compartilhar informações.

No meu próximo livro vou citar Space Invaders [lançado pela chilena Nona Fernández em 2013], meu livro preferido do momento. Um livro curto, sobre o passado político no Chile, sobre infância, amadurecimento, imaginação, sobre escrever. Tudo nesse pequeno livro tem muito mais conteúdo do que alguns best-sellers publicados nos Estados Unidos atualmente.

Rimbaud

Quando tinha 16 anos, achei o livro Iluminations de Rimbaud [o poeta francês Arthur Rimbaud, 1854-1891] com uma imagem dele estampada na contracapa. Ao bater os olhos em Rimbaud, ele se tornou meu namorado secreto. Quando era jovem, li os poemas e não os entendi direito, mas era fascinada por sua poesia. Mais velha, apreciei sua escrita de formas diferentes, e ela se tornou parte da minha vida literária. A casa onde ele morou e escreveu o poema Season in Hell pertencia a uma senhora que a comprou com o objetivo de protegê-la da especulação imobiliária. Ela me ofereceu o imóvel por um valor bem razoável, fiz a compra e a partir daí uns reparos: encanamento, chuveiro, uma cama, uma escrivaninha. A ideia é começar uma fundação para que as pessoas possam ir até lá e permanecer um mês para escrever. Não é para festas ou para casos de amor [risos e aplausos da plateia], é um espaço reservado à escrita. A maior parte da vida dos escritores é solitária, então quero dar aos escritores a bela experiência de estar próximo a Rimbaud e sua atmosfera criativa.