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História reivindicada
O que realmente se sabe do passado de escravidão no Brasil? Quem eram, de onde vieram, como manifestaram sua cultura e seus saberes os homens e as mulheres capturados no continente africano para serem força de trabalho escravizada no país? Historiadores, sociólogos, antropólogos e pesquisadores de outras áreas de conhecimento vêm publicando nas últimas quatro décadas novas investigações sobre personagens cujas vidas foram omitidas por séculos nos livros de história. “Tanto estudos antropológicos quanto sociológicos sobre desigualdade de classe, racismo e também sobre escravidão resultam de uma reivindicação pela história do negro feita com base nos movimentos e na mobilização militante dos negros a partir de meados da década de 1970”, aponta o historiador João José Reis, considerado uma referência mundial para o estudo da história da escravidão no século 19. No entanto, frisa o especialista, foi apenas em 2003 que a história dos povos negros no Brasil passou a ser incluída nos currículos escolares. Reis acredita que o crescente interesse pelo tema no meio acadêmico se dá pelo acesso a documentos resgatados. Fato que também conduziu a uma profusão de romances e biografias no mercado editorial brasileiro. Autor de diversas obras sobre o assunto, dentre elas Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835 (2003). Nesta Entrevista, o professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fala sobre racismo, movimento abolicionista, desafricanização e sobre uma elite negra intelectual.
O racismo no Brasil é uma construção pós-abolição?
Na verdade, não é uma construção pós-abolição. É algo que está organicamente ligado ao período da escravidão, sobretudo ao século 19, quando se afirma a noção de que o escravo típico deve ser o escravo de pele negra, o preto. É um momento de racialização radical da escravidão. Porque, nos primeiros tempos, havia a escravização de indígenas no Império português, a escravização de asiáticos desde o século 15, e também desde então a escravização dos chamados mouros (muçulmanos). Então a escravidão moderna tinha várias cores. No século 19, a escravidão do mestiço claro começa a incomodar – vide o caso da escrava Isaura [personagem do romance A Escrava Isaura, escrito por Bernardo Guimarães em 1875] – porque já se formara uma camada ampla de mestiços livres na população, aliás uma maioria. Daí saíram figuras importantes do Império, como Antônio Pereira Rebouças e seu filho André Rebouças, entre outros. Isso converge com o adensamento do discurso racialista, da construção da desigualdade social como uma desigualdade herdada da “raça”, geneticamente determinada. Aí vêm as teorias chamadas científicas que se desenvolvem ao longo da segunda metade do século 19. Quando acontece a abolição, o Brasil estava pronto para esse tipo de narrativa. O racismo, sobretudo do ponto de vista ideológico, é uma construção, principalmente, da pós-abolição, mas está embutido no período anterior.
Havia conflito entre negros livres que tinham negros escravizados?
A grande maioria das pessoas escravizadas eram escravizadas por brancos. Mas havia também negros livres ou libertos senhores. Não é algo que você possa simplesmente falar: houve negros donos de escravizados. Havia um número proporcionalmente pequeno, sobretudo na cidade, que conseguia não apenas se alforriar como escravizar. Cerca de 20% dos africanos libertos eram senhores em Salvador, o que é um percentual razoável, mas que não se repetia na área rural, onde estava concentrada a população escravizada. Não esquecer que quem mandava no grande “jogo” do tráfico e da escravidão eram os europeus e, depois, os brancos nascidos no Brasil. E se deve atribuir o aspecto sistêmico da escravidão, com muita ênfase, às nações europeias, praticamente todas elas. Por exemplo, no século 18, a nação que mais traficou foi a Inglaterra, exatamente aquela que capitaneou o movimento abolicionista atlântico. Mas, ao longo dos mais de 300 anos que durou o tráfico transatlântico, coube aos luso-brasileiros a primazia, responsáveis que foram por quase 40% dos cativos vitimados.
Chegou a existir uma espécie de divisão entre os negros africanos e os negros brasileiros em movimentos e revoltas no Brasil?
Essa é uma questão que a gente tem que responder em termos regionais. Na Bahia a resposta é sim. Em outros locais, em geral não. Temos exemplos de revoltas em Minas, no Rio, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, no Maranhão, em Pernambuco, em que africanos e brasileiros escravizados se juntaram em revoltas. Já as famosas revoltas baianas na primeira metade do século 19, que foram mais de 30, entre levantes e conspirações, foram todas levadas a cabo por africanos natos – com exceção de uma, africanos de determinados grupos étnicos: os iorubás, conhecidos como nagôs, e os haussás, ambos povos oriundos da atual Nigéria, trazidos para a Bahia em grande número naquele período, principalmente os nagôs, que chegaram a constituir cerca de 70% dos escravizados em Salvador. Os também numerosos jejes e os angolas não participaram de levantes. Os rebeldes tampouco contaram com o apoio dos negros locais, chamados crioulos. Mas, se os crioulos não se juntaram aos africanos em revolta, eles se juntaram nos candomblés e irmandades católicas. Nunca, porém, nos grupos muçulmanos.
E nas gerações seguintes?
Mesmo quanto às práticas culturais, os africanos e os aqui nascidos nem sempre convergiam ao mesmo lugar. Permanece alguma diversidade, inclusive em como cultuar os deuses. No final do século 19, Nina Rodrigues [médico e etnólogo brasileiro, 1862-1906] ouviu de uma senhora africana, sabedora das coisas, que havia candomblé de africano e candomblé de crioulo numa altura em que a população africana já era bastante reduzida em Salvador. Eu também encontrei um documento escrito por uma autoridade policial de meados do século 19 que falava de samba de brasileiro e samba de africano, mas esse era um momento de grande densidade da presença africana. Agora, nos candomblés, nas irmandades e nos próprios sambas, a convivência, a cooperação e a solidariedade entre os nascidos no Brasil e os nascidos na África era infinitamente maior do que nas revoltas.
Boa parte dessas nações africanas no Brasil tinha um letramento e tecnologias próprias. Qual a contribuição delas na organização da sociedade naquele momento?
Em termos de letramento, eram raros os africanos e mesmo os brasileiros escravizados que sabiam ler e escrever português. Mas havia africanos que liam e escreviam o árabe, por serem muçulmanos letrados. Havia comunidades muçulmanas significativas nas grandes cidades do Império do Brasil – Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e, sobretudo, Salvador. Em todas elas, se sabe que a escrita árabe era ensinada por mestres versados na língua do Alcorão. Quanto às tecnologias trazidas da África, vieram de lá ferreiros, construtores, peritos em ervas medicinais, agricultores e gente que tinha alguma experiência com mineração. Em Minas Gerais, preferiam cativos da Costa da Mina (golfo do Benim) porque, supostamente, teriam experiência com a prospecção de ouro. Da grande Senegâmbia chegaram grupos especialistas no plantio de arroz. Estes foram, principalmente, levados para o norte do Brasil: Pará, Maranhão. Acrescente-se o vasto conhecimento botânico, que incluía plantas medicinais e o modo de usá-las, trazido de várias partes da África. Outra coisa interessante é que muitos africanos aprenderam tão bem a arte da construção que muitos, uma vez libertos, retornaram à África e lá reproduziram o modelo arquitetônico luso-brasileiro. Já deviam ter trazido, provavelmente, algum treinamento básico como construtores quando foram aqui escravizados, algo a ser investigado melhor.
Havia também a habilidade com o comércio?
Sim. Sobretudo entre os africanos vindos da Costa da Mina. Eles se tornaram exímios comerciantes, principalmente nas cidades maiores e menores do Brasil escravista, mas também mascateavam pelas fazendas e vilas do interior. Havia uma tradição de pequeno comércio exercido pela mulher na Costa da Mina e também em Angola, por exemplo, as principais regiões fornecedoras de cativos para o Brasil. Mas os pesquisadores têm destacado sobretudo o sucesso dos negros “minas” no pequeno negócio. Na África, não apenas as mulheres do povo, digamos assim, mas também as da elite, inclusive mulheres dos reis, negociavam. Algumas chegaram a ser grandes comerciantes. No Brasil, os africanos e africanas reproduziram a destreza para o comércio, o comércio miúdo, médio, mas não o grande comércio. O comércio do alimento cru e cozido, o comércio da quinquilharia, de tecidos africanos. O comércio feito em barracas ou de porta em porta eram grandemente controlados pelas mulheres africanas nas grandes cidades. Não foi coisa que aprenderam aqui, já existia uma experiência anterior que no Brasil foi aprimorada e adaptada ao ambiente local.
Também há relatos de artesãos e artesãs?
Sim. Estes que você chama de artesãos na época eram chamados oficiais mecânicos – pedreiros, ferreiros, marceneiros, carpinteiros, sapateiros e assim por diante. Eram preocupações, principalmente, embora não exclusivamente, do negro nascido no Brasil, o crioulo, o pardo, o “cabra”. Nas listas de cativos dos inventários, percebe-se uma tendência nítida para que essas ocupações mais especializadas fossem tocadas pelos nascidos no Brasil. Porque eles eram treinados nisso desde muito cedo na vida. Ao contrário dos africanos, não tinham que aprender a língua do branco para serem ensinados nessas profissões. Além do que, havia um preconceito típico dos escravocratas de que os aqui nascidos eram mais inteligentes que os africanos. Isso não quer dizer que não existissem africanos artesãos. Existiam também, estou falando de uma tendência estatística.
Há uma leitura dos livros de Machado de Assis de que os brancos quase não trabalhavam e quem trabalhava, de fato, eram pessoas escravizadas.
Tem muita gente branca vivendo como funcionário público nos livros de Machado, não é? Porque ele retrata uma camada média para alta da sociedade que vivia desses empregos, em geral, conseguidos na base do apadrinhamento, do clientelismo, que ele, inclusive, retrata com maestria em seus livros. Por outro lado, Sidney Chalhoub [historiador brasileiro e autor de Machado de Assis Historiador – Companhia das Letras, 2003 –, entre outras obras] já mostrou que os livros de Machado de Assis seriam uma grande metáfora para discutir a escravidão e suas contradições. Machado retratou o paternalismo como dominação de classe e a resistência dos subalternos, não pela rebeldia aberta, mas por estratégias sutis de enganação, de manipulação moral e psicológica do senhor, que, nas obras do escritor, é representado na figura do pai, do marido, do irmão – homens brancos que pensavam que o mundo existia para servi-los.
No movimento abolicionista havia uma elite intelectual negra e diversa. Como se formou essa elite naquele momento?
É uma elite pequena, embutida nas camadas médias intelectualizadas, formada por mestiços que, em geral, haviam ascendido com enorme esforço, às vezes por meio de conexões com políticos, funcionários da alta burocracia estatal etc. Mas não é possível generalizar. Apesar de nascido livre, Luiz Gama [leia o Perfil sobre o jornalista e abolicionista] foi ilegalmente escravizado e sua trajetória partiu desse ponto. Já André Rebouças nasceu numa família afluente, filho de um conselheiro do Império, jurista, senhor de escravos. André, que era engenheiro, chegou a ser empresário de algum sucesso. Os abolicionistas negros eram, na sua maioria, profissionais liberais mestiços; escritores, como Maria Firmina Reis (e aí temos uma mulher), Castro Alves e Machado de Assis; editores, como Francisco de Paula Brito; e jornalistas, como José do Patrocínio. Uma elite intelectualizada que se formou ao longo da segunda metade do século 19 na vibração abolicionista. Eram, em geral, produto do ambiente urbano. Não que inexistissem abolicionistas com esse perfil racial nas cidades do interior, mas esse era, principalmente, um fenômeno das cidades grandes e médias, onde havia uma sociabilidade em torno da cena cultural, das faculdades, do teatro, das livrarias e das redações de jornais, que foram os principais ambientes desse grande movimento. Mas não se deve esquecer que, se houve uma elite negra que abraçou o abolicionismo, houve também um setor popular negro muito importante, que militava, sobretudo, nos esquemas para proteger cativos fugidos e nos movimentos de rua, passeatas, plateias de teatros etc. Sem falar no protagonismo dos próprios escravizados fugindo, se rebelando, especialmente nos últimos anos e meses que antecederam a abolição.
Depois desse período no século 19, parece que há um enfraquecimento dessa elite intelectual. O que aconteceu?
Ela não deixou de existir, mas foi invisibilizada com o fim do abolicionismo, quando tinham seu destaque na cena pública. Desde o século 19, já vemos negros nas faculdades de medicina. Maurício Rebouças, tio de André, ensinou na Faculdade de Medicina da Bahia. E o abolicionismo penetrou nas faculdades de medicina, é importante lembrar. A gente vai encontrar muitos intelectuais negros adentrando o século 20, basta procurar – leiam as pesquisas de Wlamyra Albuquerque, Ana Flávia Magalhães e Petrônio Domingues, por exemplo. Portanto, esses intelectuais não desapareceram. Estavam, talvez, em alguns nichos. A exemplo da imprensa negra feita por uma certa classe média que existiu em Santos, São Paulo, Campinas, na Bahia e em Porto Alegre. Enfim, são periodistas bastante estudados. Há o caso de Manoel Querino, na Bahia, intelectual negro de prestígio, pesquisador, professor, sindicalista e carnavalesco. Um pouco mais tarde, brilham nos anais das ciências humanas intelectuais como o etnólogo Edison Carneiro, que também era dessa turma de negros importantes e famosos. O pai dele escrevera sobre cultura popular e foi professor da Escola Politécnica. Seu irmão foi senador da República, autor da lei do divórcio – falo de Nelson Carneiro. Deles foi contemporâneo Abdias do Nascimento, que dispensa apresentação. Entre as mulheres, Virgínia Bicudo, psicanalista, professora e primeira parlamentar negra. Sem falar nas intelectuais orgânicas do candomblé – poços de sabedoria – como Mãe Aninha, Senhora, Estela. Na verdade, intelectuais negros e negras atuaram ao longo de todo o século 20 em áreas importantes da literatura, das artes, das humanidades, enfim, do cultivo do espírito.
Quanto à ideia da desafricanização, ela acontece no pós-abolição? Como ela se dá de fato?
As pessoas às vezes enfatizam demais o pós-abolição para falar sobre isso, mas tudo começou ainda na era escravista. A desafricanização já vinha acontecendo no Brasil desde a independência, que foi também um projeto de transformar o país numa espécie de espelho da civilização europeia (tirante Portugal), porém sem abrir mão da escravidão. No meu mais recente livro [Ganhadores, Companhia das Letras, 2019], discuto em detalhe a campanha de políticos e intelectuais baianos em prol da desafricanização de Salvador. Desafricanização inclusive do contingente trabalhador da cidade. Os africanos, tanto os escravizados quanto os libertos, segundo esses políticos e intelectuais, deviam ser expulsos para o trabalho na lavoura. E havia o aspecto cultural, naturalmente. A imprensa, por exemplo, vivia incentivando a polícia a reprimir o candomblé. Havia um jornal baiano chamado O Alabama, que se posicionava militantemente contra o candomblé. Ao mesmo tempo que criticava os castigos insanos que os escravizados recebiam, mandava espiões bisbilhotar os candomblés, de onde traziam notícias sobre seus rituais, seus deuses, seus feitiços e suas curas, e isso era publicado como prova de “barbárie” da cultura africana. Esse jornal, sem o querer, veio a ser uma das principais fontes sobre o período de formação do candomblé baiano. Essa mesma imprensa se queixava da presença das ganhadeiras nas ruas por perturbarem o sossego com seus pregões, atrapalharem o trânsito, sujarem as vias públicas, virando alvos dos desejos civilizatórios de uma elite branca. Ao mesmo tempo, alguns brancos frequentavam os terreiros, se curavam e alguns até se iniciavam no santo. Mas eram minoria, claro.
De que forma O Alabama serviu aos pesquisadores?
A gente lê as fontes depurando-as de seus preconceitos, qualquer fonte: as informações estão lá, embora imersas num discurso antiafricano. Enfim, o que quero dizer é o seguinte, você vê um crescente, mas vão, esforço de desafricanização em vários níveis ao longo da segunda metade do século 19, uma vez cessado o tráfico transatlântico. Aliás, uma das bandeiras agitadas a fim de parar o tráfico em 1850 era a desafricanização demográfica e suas consequências culturais e políticas. Isso segue num crescendo e depois da abolição se mistura com ideologias racialistas e o quadro se completa. O discurso se concretiza no cotidiano ainda com a ajuda da imprensa, que continua a combater o candomblé e outras manifestações da cultura africana, como os afoxés e cordões carnavalescos, a capoeira etc. O primeiro Código Criminal da República, de 1890, criminalizou a capoeira e a religião africana, esta enquanto exercício ilegal da medicina. O samba foi muito perseguido, isso é sabido. Enfim, há uma onda que adentra o século 20 com apenas alguns momentos de alívio. Até que, na década de 1930, as escolas de samba ganham um lugar no carnaval oficial, a capoeira se transforma num esporte nacional e o candomblé já é representado em congressos de estudos afro-brasileiros. Mas o candomblé na Bahia, por exemplo, só na década de 1970 deixaria de ser uma religião obrigada a pedir licença à Delegacia de Jogos e Costumes para realizar seus rituais.
Nesses últimos 30 anos, há um número grande de estudos sobre os negros no Brasil. Algo especificamente desencadeou esse interesse?
Esse é um interesse que vem se adensando desde a década de 1970, e seguiu crescendo desde então. Tanto os estudos sociológicos sobre desigualdade de classe, racismo, como a investigação historiográfica sobre escravidão foram influenciados pela reivindicação da história por parte dos movimentos negros desde meados da década de 1970. Na Bahia, por exemplo, data desse período a fundação do Ilê Ayê, que é um bloco afro, como outros que depois se formaram, celebrando a história do negro não apenas no Brasil, mas também na África e nas Américas. A questão da memória histórica foi colocada por esses movimentos, tanto os de vibração mais cultural, como os blocos afros, quanto os mais estritamente políticos, como o MNU (Movimento Negro Unificado), fundado em São Paulo, em 1978. Em 1981, durante uma reunião da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] na Bahia, houve uma manifestação que já pedia que a história do negro fosse incluída nos currículos [das escolas]. Tinha lá um cartaz: “Pelo ensino da história e cultura negra” [leia em https://conversadehistoriadoras.com/2020/06/07/], o que só veio a acontecer por força de uma lei em 2003. Então, os movimentos negros tiveram papel fundamental na redescoberta da história do negro e da escravidão em particular.
E como isso alavancou no meio acadêmico?
Do ponto de vista das pesquisas propriamente ditas, foi essencial a criação dos cursos de pós-graduação em História, que começaram a produzir dissertações e teses sobre esse tema. E romperam com uma tradição ensaística, do tipo “intérpretes do Brasil”, predominante até a década de 1970 – caso dos grandes ensaios, das grandes sínteses e de teorias mais gerais sobre escravidão. Uma tradição em que os documentos manuscritos, os arquivos, foram pouquíssimo utilizados. A partir do final da década de 1970, esse quadro muda. E nunca mais essas pesquisas pararam de crescer. Graças a essas dissertações e teses, muitas das quais viraram artigos e livros, temos não apenas uma nova historiografia da escravidão, mas uma historiografia baseada em arquivos, em documentos originais riquíssimos, pois, da mesma forma que a escravidão permeava toda a sociedade brasileira, seus documentos se encontram em cada canto desses arquivos.
Por isso observamos a publicação de biografias de negros escravizados? Ou seja, temos aí uma personalização da história?
Esta é uma pergunta interessante, porque nos Estados Unidos sempre houve essa pegada biográfica, uma vez que os próprios escravizados criaram autobiografias. Eles fugiam para o norte, eram abrigados por abolicionistas que tomavam seus depoimentos e os transformavam nas famosas “narrativas escravas”: um verdadeiro gênero literário que cumpria a missão de alimentar ideologicamente o movimento abolicionista do país. Nós não tivemos essas narrativas, até porque não tivemos uma região com solo livre para onde os escravizados pudessem fugir. Nos Estados Unidos, essas autobiografias funcionaram como uma fonte de primeira mão sobre a experiência escrava, a partir da qual era possível correr atrás de outros documentos para criar, aí, sim, biografias. No Brasil, acho que a primeira biografia, ou tentativa de biografia, de uma pessoa escravizada, salvo engano, é a de Rosa Egipcíaca [Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil, Bertrand Brasil, 1993], por Luiz Mott, publicada na década de 1990. O autor encontrou um processo da Inquisição por heresia contra ela e montou sua biografia a partir desse documento. Nesses processos, os inquisidores induziam as acusadas a narrar sua vida, em muitos casos, pelo menos. Depois desse livro, vieram outras biografias. Para falar da mais recente, acaba de sair uma, escrita por Charlotte Castelnau-L’Estoile, sobre uma angolana escravizada no Brasil no século 17, presa e julgada pela Inquisição pelo crime de bigamia. Chama-se Páscoa [Páscoa Vieira Diante da Inquisição – Uma Escrava entre Angola, Brasil e Portugal no Século XVII, Bazar do Tempo, 2020]. Outros personagens facilitam a escrita de suas biografias porque conseguiram se alforriar e deixaram rastros mais nítidos nos arquivos. Seja porque se tornaram proprietários e se encontram suas transações nos livros de tabeliães, porque escreveram testamentos e quando morreram foram feitos inventários de seus bens, mas também porque batizaram muita gente, casaram-se e morreram na Igreja, e por aí vai. Com isso, conseguimos montar suas redes de sociabilidade, suas vidas familiares, os mecanismos de sua ascensão social, suas vivências nas irmandades etc. Eu mesmo já escrevi três biografias de africanos libertos.