Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Pedras e brechas em campo

por Carlos Juliano Barros

“Desde os tempos do Império Romano os responsáveis pela execução de obras públicas mantêm relações especiais com os donos do poder.” Samuel Wainer, um dos expoentes do jornalismo brasileiro, morreu no já distante ano de 1980. Repórter dos Diários Associados, a pujante cadeia de mídia impressa criada pelo magnata das comunicações Assis Chateaubriand, e amigo íntimo de alguns dos mais notáveis presidentes da República, como Getúlio Vargas e João Goulart, o fundador de “A Última Hora” narra em suas memórias como os empreiteiros, meio século atrás, já ditavam as regras nos bastidores do jogo político. “O esquema era simples. Quando se anunciava alguma obra pública, o que valia não era a concorrência, que já vinha com cartas marcadas, funcionava como mera fachada. Valiam, isso, sim, os entendimentos prévios entre governo e empreiteiros, dos quais saía o nome da empresa que deveria ser contemplada”, conta o jornalista em Minha Razão de Viver.

De lá para cá, o Brasil superou a ditadura militar, ganhou uma nova Constituição em 1988 e estabilizou sua economia com o Plano Real. Porém, ao longo dessa turbulenta caminhada, as práticas de superfaturamento e de desvio de verbas em obras públicas, como as relatadas por Samuel Wainer, jamais deixaram de pautar o noticiário da imprensa nacional. Recentemente, o problema se tornou ainda mais preocupante com a escolha do Brasil para sediar os dois principais eventos esportivos do planeta: a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Para tentar fechar a torneira da corrupção, órgãos públicos e entidades da sociedade civil vêm se mobilizando para fiscalizar bem de perto a aplicação das verbas destinadas a verdadeiras obras faraônicas, como a construção de estádios, a reforma de aeroportos e a melhoria do transporte público. A preocupação não é sem motivo: só para o campeonato mundial de futebol, a previsão é de que seja investida a quantia nada desprezível de R$ 23,7 bilhões. Desse montante, cerca de 98% sairão dos cofres públicos, segundo dados da Controladoria-Geral da União (CGU), órgão subordinado à presidência da República e responsável por tornar acessível a qualquer cidadão a planilha de gastos do governo federal. Além disso, ainda paira no ar o fantasma dos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, que custaram “apenas” oito vezes mais que o inicialmente previsto, fato que despertou mais do que justificadas desconfianças sobre a capacidade de o Brasil organizar os dois megaeventos esportivos.

Orçamentos estourados

Infelizmente, nos últimos meses, a marcação cerrada dos órgãos de fiscalização e dos meios de comunicação vem trazendo à tona a crônica de uma tragédia anunciada: os orçamentos estão estourados. Exemplo cabal é o da reforma do Maracanã, palco da grande final da Copa, que simplesmente dobrou de preço e já ultrapassou a casa de R$ 1 bilhão. O motivo para essa astronômica diferença beira o inacreditável: não constava do projeto básico que passou pela licitação a reconstrução da cobertura de concreto do estádio. Só após o início das obras é que se verificou a “necessidade” de refazer por inteiro a estrutura. “Esses valores que estão acima do inicialmente previsto demonstram a total falta de planejamento dos gestores públicos”, afirma Athayde Ribeiro Costa, procurador do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM). “E mais: demonstram também que os projetos das obras são propositalmente falhos, na grande maioria das vezes. Estamos de olho nisso e vamos atrás de projetistas e de gestores públicos que atuarem com desídia”, complementa.

Logo após a escolha dos municípios que receberão as partidas da Copa, o MPF criou em agosto de 2009 um grupo de trabalho composto por 12 procuradores, um para cada cidade-sede, com o intuito de monitorar a execução das obras. “Essa ação preventiva nos auxilia demais numa posterior atuação repressiva. Se não conseguirmos evitar [os problemas], pelo menos vamos ter ao longo do processo toda a caracterização de um ato de improbidade, porque as pessoas já são notificadas, cientificadas, recebem recomendações. Solicitamos as correções e, às vezes, as pessoas não as fazem, o que já nos dá mostras do elevado elemento doloso de superfaturar e desviar verbas”, explica o procurador. Em outras palavras, o acompanhamento do MPF pode até não impedir que os projetos tenham seu valor aumentado, mas garante ao menos que os aditivos contratuais não sejam inflacionados sem boa justificativa. Além disso, possibilita que se identifiquem de antemão os corruptos, facilitando posteriormente o acionamento na Justiça daqueles que não zelarem pela correta aplicação dos recursos.

A atuação do MPF também depende do diálogo íntimo com outros órgãos públicos. A CGU criou um portal específico na internet em que pode ser acessada a chamada “Matriz de Responsabilidades”. “Esse documento, elaborado pelo Ministério do Esporte (ME), foi criado para dimensionar e consolidar as previsões de gastos nas três esferas de governo (União, estados e municípios) e possibilita uma visão geral das fontes de financiamento utilizadas na execução de todos os projetos para o mundial”, explica Valmir Campelo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), outro órgão público empenhado no monitoramento das obras.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, abriu uma linha de crédito de até R$ 400 milhões para cada projeto de construção ou reforma dos 12 estádios da Copa. Já a Caixa Econômica Federal (CEF) tem a missão de bancar principalmente as obras de mobilidade urbana, que englobam investimentos em vias e em meios de transporte coletivo. O Tesouro, por sua vez, vai assumir diretamente os custos das ampliações de portos e aeroportos. “Nos Jogos Pan-Americanos, não existia um portal desse tipo. Era possível colher dados no Portal da Transparência, porque nele há todas as transferências [de recursos da União] para estados e municípios, mas sem esse conteúdo específico que estamos dando”, complementa Luiz Navarro, secretário executivo da CGU.

“A própria coordenação desses esforços de fiscalização já é um desafio”, afirma Valmir Campelo. “Por isso, firmamos, em 11 de maio de 2010, quatro anos e um mês antes da Copa de 2014, um protocolo de intenções que criou a Rede de Fiscalização da Copa, com a participação de todos os tribunais de contas dos estados e dos municípios que sediarão o evento”, completa. Ao assinar o documento, esses órgãos se comprometeram a designar responsáveis internos para compilar dados sobre as ações de fiscalização e a trocar informações da forma mais rápida possível.

“Por exemplo: o projeto básico da Arena Amazônia foi feito de forma defeituosa. A CGU nos brindou com um trabalho muito bom, o TCU também teve um desempenho de qualidade, e apontamos o problema ao estado do Amazonas e ao BNDES, de forma que a obra não está sendo financiada enquanto não se corrigirem as irregularidades”, afirma Athayde Costa. “A obra, que consumiria R$ 600 milhões, vai demandar R$ 800 milhões, porque o projeto inicial era deficitário. Agora, com a correção, sabemos exatamente o que vai ser financiado. Isso impede que o estádio custe ainda mais, evita superfaturamento, pagamento de serviços não prestados ou cobrados em duplicidade”, acrescenta o procurador.

Pressa

Em abril deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), outro órgão diretamente subordinado ao gabinete da presidência da República, divulgou um estudo que causou mal-estar no Palácio do Planalto e irritou a própria mandatária da nação, Dilma Rousseff. Segundo o instituto, caso sejam seguidos à risca todos os trâmites legais de licitação e licenciamento, nenhum aeroporto brasileiro estará pronto até 2014, já que a conclusão de obras desse porte leva em média 80 meses. Além disso, mesmo que as reformas e ampliações fossem concluídas a tempo, os aeroportos já estariam obsoletos e não dariam conta da demanda, que cresce em ritmo acelerado.

Na avaliação de João Alberto Viol, presidente do Sindicato da Arquitetura e da Engenharia (Sinaenco) – entidade que reúne as empresas brasileiras especializadas na prestação de consultoria para a construção civil –, a infraestrutura de transporte aéreo é, sem dúvida, o principal gargalo. “Independentemente da Copa do Mundo, os aeroportos brasileiros estão numa situação muito difícil. A demanda aumenta 10% ao ano e não há no curto prazo investimentos que possam acompanhar esse crescimento. Com isso, em 2014 vamos precisar de qualquer maneira de módulos provisórios para poder suprir minimamente as necessidades”, afirma.

Para tentar calar as críticas cada vez mais frequentes sobre a lentidão dos preparativos para a Copa, que vêm sendo disparadas inclusive pela linha de frente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), entidade máxima do futebol que também participa da organização do mundial, a presidente Dilma anunciou no final de abril a privatização dos aeroportos de Brasília, de Guarulhos e de Viracopos. Assim, tanto a administração como a ampliação dos terminais ficarão a cargo de sociedades de propósito específico (SPEs), comandadas por empresas privadas que, teoricamente, serão imunes à burocracia estatal que emperra o andamento das obras. Contudo, essas SPEs ainda contarão com participação acionária minoritária da Infraero, a estatal que atualmente gerencia os aeroportos brasileiros.

A menos de três anos do pontapé inicial da Copa do Mundo, a privatização dos três aeroportos foi a primeira ação contundente tomada pelo governo federal para acelerar o ritmo da organização dos dois megaeventos esportivos. Indiscutivelmente, porém, a medida mais controversa foi a aprovação pelo Congresso Nacional do chamado Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), que altera as regras da atual Lei de Licitações (8.666/93) somente para as obras da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.

A proposta é defendida com unhas e dentes pelo governo federal. Em artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, o titular da Secretaria Nacional de Esporte de Alto Rendimento, do ME, Ricardo Leyser Gonçalves, justificou a criação do RDC ao dizer que é preciso reformar algumas “normas jurídicas que não atendem mais às suas finalidades, como a lei 8.666/93, que trata de licitações e contratos. Com excessivo foco em procedimentos formais, ela instituiu um processo licitatório muito suscetível a chicanas administrativas e jurídicas, que costumam resultar em enorme quantidade de obras inconclusas, atrasadas e de baixa qualidade”.

Ainda de acordo com Leyser, o texto que institui o regime diferenciado traz inovações que darão maior agilidade às contratações, sem comprometer a fiscalização dos recursos aplicados. Uma das principais estratégias introduzidas pelo RDC para baratear custos é o sigilo do orçamento preliminar do projeto a ser licitado, até o final da concorrência. Assim, ao não informar previamente de quanto dispõe para realizar determinada obra, o governo deseja impedir que as empreiteiras combinem entre si o valor dos lances, formando uma espécie de cartel. Durante a licitação, só os órgãos de controle – como a CGU e os tribunais de contas – terão acesso aos orçamentos. E, ao final do processo, o valor da obra contratada será divulgado publicamente. Em nota oficial publicada em seu site, o TCU também se manifestou sobre o assunto. “Houve consenso de que o novo regime contém avanços que poderão, inclusive, servir de subsídio para eventual alteração definitiva da atual Lei de Licitações e Contratos.”

Porém, para os críticos da proposta do governo, o problema nem de longe está na Lei de Licitações e sim na incompetência, para usar um eufemismo, de gestores públicos que se valem dos atrasos nas obras para criar intencionalmente essa “situação de emergência”, beneficiando interesses particulares. “Não vejo nenhuma produtividade em medidas de flexibilização [da lei 8.666/93] neste momento. A Lei de Licitações está aí. Ela precisa ser remodelada? Sim. Mas não dá tempo para a Copa do Mundo. O que temos de fazer é terminar os projetos que porventura não estejam concluídos e realizar as obras com o máximo de acompanhamento dos projetos que estão sendo realizados”, afirma Viol, do Sinaenco.

O Ministério Público Federal entende que o RDC é claramente inconstitucional e que ele escancara brechas para superfaturamento. Por essa razão, vai questioná-lo no Supremo Tribunal Federal (STF). Motivos para queixas não faltam. Em primeiro lugar, caberá aos gestores públicos determinar se uma obra interessa aos megaeventos esportivos e, portanto, se ela se enquadra ou não nesse regime diferenciado. Não há, porém, nenhum critério objetivo para balizar essa decisão. E é aí que os problemas começam. De acordo com esse novo regime, um governador estadual poderá abrir uma concorrência para a construção de um anel rodoviário, por exemplo, mas não precisará fornecer detalhes a respeito da obra. “A licitação vai ser feita sem projeto básico, apenas com um anteprojeto, sem definição clara das características do objeto. Sem saber minuciosamente o que vai ser licitado, é como se você tivesse uma verba para reformar sua casa, mas não dissesse o que você quer que seja feito”, compara o procurador Athayde Costa, do MPF-AM.

Além disso, o regime diferenciado também cria o sistema de “contratação integrada”, pelo qual a empreiteira que vai executar a obra também assumiria o encargo de elaborar o projeto básico – que, pela lei atual, é o ponto de partida de qualquer processo licitatório. “Então, licita-se uma obra de R$ 200 milhões, mas não se sabe ao certo o que está em jogo. No entanto, na hora em que fizer o projeto, a empreiteira dirá que precisa de R$ 300 milhões para a obra. Ou seja, isso facilita os aditivos contratuais, o superfaturamento, porque o administrador público fica refém da construtora, que terá a palavra final. Isso vai custar demais ao país”, complementa o procurador, que define a proposta do governo como um “cheque em branco” para as empreiteiras.

Apesar de formulados pelo próprio governo federal, alguns itens da proposta do regime diferenciado desagradaram até mesmo à CGU, que responde diretamente à presidência da República. Na avaliação de Luiz Navarro, secretário executivo da CGU, o sistema de contratação integrada não corrige justamente a principal causa dos superfaturamentos: a falta de projetos básicos benfeitos. Ele também endossa algumas das críticas feitas pelo MPF: “Há um problema grave no Brasil que diz respeito principalmente à qualidade dos projetos básicos. Eles são deficientes e acabam possibilitando a majoração do custo das obras. É preciso que o projeto esteja bem especificado, para que se saiba exatamente o que está sendo licitado”, sustenta Navarro.

Controle social

Não são, porém, apenas o MPF, a CGU e o TCU que vêm se movimentando para evitar os desperdícios nos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016. O Instituto Ethos, ONG que reúne as maiores empresas do país para discutir práticas de responsabilidade social, criou um projeto batizado de Jogos Limpos Dentro e Fora dos Estádios para garantir que esse monitoramento não seja feito apenas pelos órgãos públicos, mas por toda a sociedade brasileira. “Basicamente, é um projeto de mobilização e coordenação de iniciativas em prol da transparência, da integridade e do controle social. Tentamos envolver o poder público, o setor privado, trabalhadores e organizações da sociedade civil”, explica Felipe Saboya, coordenador nacional de mobilização do projeto.

O Jogos Limpos atua em diversas frentes. No site do projeto, por exemplo, o internauta poderá visualizar um mapa de todas as iniciativas de controle relacionadas aos eventos esportivos. Assim, qualquer pessoa conhecerá os órgãos de fiscalização que atuam especificamente em sua cidade e saberá de que forma pode contribuir através de denúncias. Além disso, serão elaboradas cartilhas em parceria com a CGU com o objetivo de traduzir para o cidadão comum a complicada linguagem técnica dos contratos de licitação pública. Também está na lista de ações do projeto a cobrança para que prefeituras e governos estaduais atualizem seus portais com dados claros e de fácil acesso sobre os gastos com a Copa e as Olimpíadas – o que, em tese, todos os órgãos públicos deveriam fazer.

Outra frente importante é o estabelecimento de pactos empresariais pelos quais as corporações signatárias se comprometem publicamente a seguir uma espécie de código de conduta, de modo a reduzir a possibilidade de fraudes nas licitações. A ideia é firmar acordos para quatro setores estratégicos: saúde, construção civil, energia e transporte. Para cada um desses segmentos, serão mapeadas as brechas legais mais comuns que dão margem à corrupção. Saboya cita como modelo a experiência de uma ONG chamada Transparência Colômbia, que, ao identificar problemas no setor de construção civil, conseguiu que as fabricantes de tubos e conexões daquele país assinassem um pacto que, no longo prazo, reduziu em quase 30% os gastos das obras de saneamento básico.

Contudo, não é apenas o setor privado que será convidado a assumir publicamente compromissos contra a corrupção. Aproveitando o calendário de eleições do ano que vem, os candidatos a prefeito das cidades-sede da Copa de 2014 também vão ser instados a assinar uma carta com a promessa de garantir transparência total no que respeita à realização das obras sob a responsabilidade dos governos municipais.

Ainda no âmbito dos Jogos Limpos, em cada um dos municípios que receberão as partidas da Copa de 2014 foram montados comitês formados por entidades do movimento sindical (como a Central Única dos Trabalhadores) e de classe (como os Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia), além de outras organizações da sociedade civil. Esses comitês vão atuar como uma espécie de cão de guarda, encaminhando denúncias sobre irregularidades aos órgãos competentes, para garantir que as legislações locais não sejam atropeladas em nome da organização dos dois eventos esportivos.

Exemplo disso é a discussão que o comitê montado em Curitiba vem travando sobre a comercialização de bebidas alcoólicas no estádio da cidade, uma das sedes da Copa. “A Budweiser, como uma das patrocinadoras oficiais, exige que seja liberada a venda de cerveja dentro das arenas. E, em alguns estados do Brasil, como o Paraná, isso é contra a lei”, afirma Saboya. Aliás, a megafabricante de cervejas InBev, dona da marca Budweiser, há tempos vem pressionando os organizadores da Copa para que permitam a comercialização de seus produtos durante os jogos, como aconteceu nas últimas edições do campeonato. Esse imbróglio causou até uma saia justa para Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Em abril de 2008, ele assinou um protocolo de intenções, em nome da entidade que comanda desde 1989, pelo qual apoiava a proibição da venda de bebidas alcoólicas em todos os estádios brasileiros. Ao que tudo indica, porém, Teixeira parece ter cedido aos apelos da empresa, abrindo exceção para o comércio de cerveja nas arenas durante os jogos em 2014. Como essa decisão não depende apenas da vontade do todo-poderoso da CBF, o assunto certamente ainda vai dar o que falar.

Impactos sociais

Apesar dos bilhões investidos na construção de estádios e aeroportos com tecnologia de última geração, há um pesado custo social que não vem merecendo a atenção necessária nas planilhas orçamentárias dos governos. Em dezembro do ano passado, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direito a moradia adequada, Raquel Rolnik, enviou ao governo federal um documento com graves denúncias de que milhares de famílias já foram ou ainda serão literalmente removidas de suas casas para a realização das obras. “O que dificulta esse tipo de análise é justamente o que venho apontando como um dos mais graves problemas na preparação do Brasil para a Copa e as Olimpíadas: a falta não só de informações claras e públicas a respeito dos projetos como de espaços de diálogo com a população atingida por eles”, explica Raquel.

A falha no planejamento dos gestores públicos é tão gritante que nem mesmo existe uma estatística precisa sobre o número de famílias em todo o Brasil que terão a vida completamente transformada por causa dos dois megaeventos esportivos. Alguns casos, porém, dão a dimensão dos problemas que estão por vir. De acordo com um dossiê elaborado pela relatora da ONU, só em Fortaleza, aproximadamente 3,5 mil famílias precisarão deixar a moradia atual para a construção de um ramal do veículo leve sobre trilhos (VLT). Já em Belo Horizonte, as obras para facilitar o acesso ao estádio do Mineirão, incluindo a construção de um anel viário, poderão desalojar outras 3 mil famílias. Na capital mineira, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) até reservou uma rubrica para bancar indenizações. No entanto, de norte a sul do Brasil, as famílias atingidas reclamam da falta de diálogo com o poder público e lamentam a ausência de informações sobre seu próprio destino.

“A realidade hoje é que ignoramos quantas pessoas serão atingidas, em que locais, e se há orçamento reservado para desapropriações e indenizações. Sabemos, por outro lado, que os valores pagos como indenização são totalmente insuficientes para que as famílias providenciem nova moradia”, analisa Raquel. A Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do governo federal afirma ter criado um grupo de trabalho para monitorar essa questão. Porém, a maior parte das informações que chegam à relatoria da ONU ainda são fornecidas por ONGs e movimentos populares.

Não há dúvida de que a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos constitui uma oportunidade ímpar para que o país comece a resolver gargalos históricos e deixe um importante legado para seus habitantes. Foi o que aconteceu com os moradores de Barcelona, na Espanha, que tiveram sua qualidade de vida sensivelmente melhorada após as Olimpíadas de 1992. Até agora, porém, a verdade é que a esmagadora maioria das obras ainda nem saiu do papel – principalmente as de mobilidade urbana, sabidamente as que trarão os maiores benefícios à população brasileira. Tardiamente, o governo federal parece ter decidido acelerar o passo, a fim de evitar um vexame perante a comunidade internacional. Esse processo, no entanto, não pode ser feito ao arrepio da lei e da moralidade pública – até porque, nesse caso, a pressa é amiga da corrupção.