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Liberdade de expressão
por Samantha Ribeiro Meyer-Pflug
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug é advogada, mestre e doutora em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutoramento pela Universidade Católica Portuguesa.
Professora universitária, integra o Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio) e o corpo editorial da publicação virtual “Revista Jurídica da Presidência”.
É autora da obra “Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio”, cujo texto é resultado de sua tese de doutorado. Foi esse também o tema desta palestra de Samantha Meyer-Pflug, proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 14 de abril de 2011.
Existem atualmente três temas polêmicos que envolvem a liberdade de expressão. O primeiro deles é o discurso do ódio, que seria a incitação ao racismo. O segundo, a incitação à pornografia. E o terceiro, o financiamento privado de campanhas eleitorais e questões relativas aos meios de imprensa. Isso ainda é muito pouco estudado no Brasil, mas em alguns setores já se verifica essa preocupação, por exemplo, em relação à imprensa, quando se observa que algumas televisões têm conotação religiosa. Lembro-me de que a ministra Ellen Gracie, quando na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), tinha essa preocupação porque fez um levantamento e constatou que todas as empresas terceirizadas que prestavam serviços no STF tinham uma vinculação evangélica e só contratavam funcionários dessa fé. Se temos um Estado laico, como é que podemos empregar funcionários só de determinada religião, ainda que seja um serviço terceirizado?
Para entender esses três aspectos polêmicos da liberdade de expressão é importante primeiro verificar qual o tratamento que a Constituição dá ao tema e à proibição da prática do racismo. Nossa Carta assegura a liberdade de expressão, mas não como um direito absoluto, ela impõe limites, que constam do texto constitucional. Quando ela assegura a liberdade de pensamento, diz expressamente que é vedado o anonimato. É o primeiro limite que impõe à liberdade de expressão. O pensamento é livre por sua própria natureza, é o campo mais íntimo do homem, o direito de emitir suas opiniões e de não ser penalizado pelo Estado por emiti-las. Ao vedar o anonimato, proíbe essa maneira torpe de emissão de pensamento, um ato covarde daquele que emite uma opinião sem ser responsável por ela. Isso não quer dizer que esteja proibido o pseudônimo, mas há um responsável pela emissão daquele pensamento. Nos editoriais de jornais, embora ninguém assine o texto, o editor-chefe do jornal é responsável por seu conteúdo.
O que é interessante na liberdade de expressão é que todo aquele que tem uma opinião não se contenta apenas com isso. Quer convencer os demais, fazer proselitismo. É próprio do ser humano exercer essa atividade de convencimento. E é quando há opiniões diversas que a função do Estado e a da sociedade ganham relevância. Mas a Constituição também coloca alguns limites, pois assegura o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem das pessoas. Garante igualmente o direito de resposta, na mesma proporção do agravo, com a mesma ênfase que foi dada à notícia ou opinião veiculada. E o importante é que o direito de resposta não pode, ele próprio, servir como afronta ao direito de intimidade e honra de outra pessoa, porque muitas vezes (isso acontece muito no direito eleitoral) há um abuso no direito de resposta.
Hoje no Brasil o direito de resposta tem gerado uma grande polêmica, em razão de o STF ter declarado a não recepção da lei de imprensa pela nova ordem constitucional. Então não temos uma lei que regulamente a atividade de imprensa e – pior – o direito de resposta, que está previsto na Constituição e era regulamentado na lei de imprensa. Os juízes têm decidido aplicando por analogia a essa regulamentação que havia. Essa é uma questão que precisa urgentemente de regulação, porque na ausência de uma normatização a decisão fica a critério exclusivamente dos magistrados, o que gera uma insegurança jurídica muito grande.
Censura e licença
Além da questão da liberdade de expressão e do direito de resposta, uma das causas de o Supremo ter declarado a incompatibilidade da lei de imprensa do regime constitucional anterior com o atual é a proibição da censura ou da licença. A licença é a censura prévia, feita antes da publicação de um livro, da exibição de uma peça teatral. E a censura é a retirada de um livro de circulação ou de uma peça de cartaz, tendo em vista um controle a respeito do conteúdo veiculado. Nossa Constituição veda expressamente tanto a censura como a licença, que são características de governos ditatoriais. É claro que não se pode confundir a censura e a licença com disposições que a Constituição traz no que respeita à comunicação social, quando diz que os programas de televisão devem atender aos valores da família e da educação. É possível ao Estado fazer uma classificação dos programas de acordo com a faixa etária, pois ela é indicativa. É claro que isso vai passar pelo controle dos pais. Se você deixa seu filho assistir tarde da noite uma programação não indicada, é responsabilidade sua, mas cabe ao Estado exercer o controle da questão da faixa etária.
O que é importante no que diz respeito à censura ou à licença é que entendemos que não se trata apenas de uma proibição para o Estado, mas também para determinados setores da sociedade, como partidos políticos, igrejas, organizações profissionais, que acontece de muitas vezes censurarem sua própria categoria. Por ser um comando constitucional e um direito fundamental, isso deve ser aplicado de maneira geral.
Outra limitação que a Constituição impõe à liberdade de expressão é a indenização por danos materiais e morais decorrentes do abuso no exercício da liberdade de expressão. Essa é uma questão bastante polêmica. Tivemos um caso emblemático, que foi o escândalo da Escola Base, em São Paulo. Alegou-se que a dona da escola e seu marido, que fazia transporte escolar, tinham abusado sexualmente das crianças, e quem veiculou essa notícia foi um delegado de polícia, baseado num exame preliminar. É muito complicado verificar se a criança sofreu ou não abuso, principalmente em se tratando de crianças de dois a três anos. Depois foi verificado que não houve abuso nenhum e deveria haver um pedido de indenização para essa família, que teve sua escola depredada e foi achincalhada por toda a sociedade.
Nesse debate entre o direito e a imprensa, o que diziam os grandes editores de jornais? Diziam que há a liberdade de imprensa, mas também o dever de informação, porque a Constituição assegura igualmente o direito à informação. O que é o direito à informação? O indivíduo tem o direito de receber uma informação neutra, independentemente do conteúdo, para saber o que está acontecendo no mundo. Disseram que a imprensa simplesmente repassou o que foi relatado pelo delegado, sem fazer um juízo de valor, e assim não devia ser responsabilizada por uma informação dada pelo policial. Acontece que a informação, quando veiculada pela imprensa, ganha uma proporção muito maior. E há outro agravante: muitas das notícias de jornais grandes como “O Estado de S. Paulo” e a “Folha de S. Paulo” são repassadas para jornais pequenos de cidades do interior. Serão eles também corresponsáveis pela indenização? Esse foi um caso em que os jornais tiveram de pagar indenização e o delegado de polícia, por sua vez, foi obrigado a sofrer desconto em folha de pagamento. Ele jamais poderia ter afirmado que houve abuso sexual às crianças sem que a investigação tivesse sido completada.
É um caso que demonstra a relevância da indenização por danos materiais e morais, bem como o cuidado que tanto a imprensa como os órgãos públicos devem ter com a intimidade, a honra e a imagem das pessoas. A democracia precisa da liberdade de expressão para sobreviver, porque ela é necessária para podermos criticar o governo, para que todas as ideias sejam colocadas em discussão e, a partir disso, a melhor delas ou a que conte com o apoio da maioria possa sobreviver. Nesse caso, o Estado muitas vezes tem de manter uma posição de neutralidade, deixando que as ideias sejam colocadas em jogo e que aquelas eleitas pela própria sociedade possam prevalecer, porque vai haver uma alteração delas de acordo com o contexto histórico. Uma ideia que é de uma minoria hoje pode se tornar da maioria amanhã.
Nunca podemos esquecer o poder opressor do Estado. Se deixarmos a cargo dele escolher qual a ideia que deve prevalecer, nunca vamos ter uma alternância no regime democrático. Em todos os princípios de direito internacional sempre se dá uma ênfase especial à liberdade de expressão, de manifestação do pensamento, que é uma das primeiras a ser coibidas em regimes ditatoriais.
Confronto de ideias
Como o Estado deve se colocar no que respeita a essas liberdades asseguradas pela Constituição – por exemplo, em relação a determinados discursos que põem em xeque a própria democracia ou outros valores albergados, como a proibição de discriminação, a vedação ao racismo, à incitação ao ódio, à perseguição a determinados grupos políticos, religiosos e culturais? É importante que se tenha em mente que estamos falando em confrontação de ideias e é muito perigoso confrontá-las através da força. Ideias são confrontadas com ideias. É perigoso separar a liberdade de expressão da democracia. Quando há essa separação, ambas são colocadas em risco. Assim, é importante deixar claro que todas as ideias, por piores que sejam, devem ser colocadas em jogo dentro de um debate, porque, se tirarmos uma delas, talvez a verdade não consiga nascer da discussão.
Mas o que seria então esse discurso do ódio, que gera tanta polêmica? Ele seria a liberdade de expressão voltada para a incitação à discriminação racial ou contra um determinado grupo religioso, étnico, social ou cultural. Ele é sempre dirigido contra uma minoria. Podemos assim falar no discurso do ódio que existe na Espanha contra os ciganos ou no Brasil contra os nordestinos. Ou em muitos países contra o povo judeu, os negros ou até mesmo as mulheres. Por que ele gera tanta polêmica? Porque o discurso do ódio faz uma incitação em relação a um grupo e o desqualifica como detentor de direitos. Ao desqualificá-lo, faz uma apologia do ódio, mas em nenhum momento se está gerando uma ação concreta de racismo, um ato de violência. Ainda estamos no mundo das ideias, por mais abomináveis que sejam. E o que é interessante é que não se está gerando uma violação à dignidade ou à honra individual, mas à dignidade de um povo, a uma honra coletiva, se é que a honra pode ser coletiva.
Por que esse discurso do ódio causa tanto terror? Porque o indivíduo que se vê atingido por ele não consegue se livrar das características que o provocam. Se alguém é cigano, não deixa de ser cigano e será sempre atingido pelo discurso do ódio. Mas embora o discurso do ódio gere sentimentos ruins, ele ainda está no plano das ideias e não no das ações.
O mundo não tem uma solução pacífica para a questão, se o Estado deve ficar em posição de total neutralidade ou se tem de interferir e adotar um controle, que não é considerado censura nem licença. Podemos dizer que o mundo se divide em dois grandes sistemas, o americano e o europeu. O americano defende a neutralidade total do Estado em relação ao conteúdo. O europeu, devido a questões históricas geradas pela própria Segunda Guerra Mundial, tem uma posição mais drástica. Ele pune penalmente o discurso do ódio, tem um controle a respeito de sua expressão.
O que proponho para discussão é a posição do Brasil em relação ao discurso do ódio, tendo em vista eventos como o protagonizado recentemente pelo deputado Jair Bolsonaro e outras questões que sempre vêm a lume no que diz respeito aos regimes de cotas. Como o sistema brasileiro se coloca em relação ao discurso do ódio?
No sistema americano, a emenda da liberdade de expressão, a Primeira Emenda, diz que o Congresso Nacional não legislará com o objetivo de estabelecer uma religião ou proibir o livre exercício dos cultos, ou cercear a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente e dirigir ao governo petições para reparação de seus agravos. O que é interessante é que essa emenda não é voltada para o particular, mas para o Congresso, ou seja, ela proíbe aquela instituição de elaborar leis que violem a liberdade de expressão. Essa liberdade é um princípio tão protegido no direito americano que todos voluntariamente o cumprem. Desse modo ela atinge o particular também, e podemos dizer que gera uma obediência voluntária, embora o comando não seja voltado para o particular, mas para o Congresso. Da preservação da autodeterminação individual, ela gera uma autodeterminação coletiva.
O entendimento da jurisprudência americana é de neutralidade do Estado, que não pode controlar nenhuma expressão e nenhum conteúdo de um discurso proferido, por pior, mais racista e violento que seja, se ele estiver no plano das ideias. Essa proteção à liberdade de expressão atinge, por exemplo, o que eles denominam de fighting words, palavras que podem gerar um ato concreto, mas que, se não o gerarem, estão protegidas pela liberdade de expressão. Ela abarca também o direito de não falar, de não jurar à bandeira, pois são atos de liberdade de expressão. E atinge também expressões simbólicas, como queimar a bandeira. Mas não permite, por exemplo, que dentro de um estádio lotado alguém grite “Fogo!”, se não estiver ocorrendo um incêndio. Nesse caso o discurso será penalizado, bem como o grito incitando à guerra, porque está gerando uma ação concreta.
De outra parte, eles entendem que o ato de escrever livros e toda a distribuição de obras estão protegidos pela liberdade de expressão, porque a literatura é algo que está relacionado às ideias, um livro não poderia gerar uma ação concreta. O ato de ler é acima de tudo um ato de vontade, não tem a função de atingir todas as camadas, como aconteceria com um programa de televisão ou a internet.
Os americanos utilizam a expressão clear and present danger, ou seja, o discurso do ódio tem de gerar um perigo claro e iminente. Se não gerou esse perigo, está protegido pela liberdade de expressão. A Suprema Corte dos EUA tem sempre de se posicionar em favor da liberdade de expressão, porque normalmente quem a solicita ao Poder Judiciário é uma minoria, ainda que seja nazista ou racista. Mesmo assim é uma minoria e num regime democrático ela tem de ser ouvida. É claro que aquele que se sentir lesado pelo discurso pode se socorrer do Judiciário e pode vir a ser indenizado pelos prejuízos sofridos.
Papel da sociedade
Há alguns casos bem interessantes que ajudam a entender até que ponto a Suprema Corte americana protege a liberdade de expressão. Em um deles, Brandenburg versus Ohio, um cidadão num comício da Ku Klux Klan, numa fazenda distante de Ohio, manifesta-se discriminando os negros e é acusado de realizar o discurso do ódio. A Suprema Corte americana o absolve, dizendo: ele estava simplesmente manifestando ideias e dessas ideias não se gerou nenhum ato concreto de agressão. A Suprema Corte em nenhum momento está a favor da incitação do racismo ou da violação dos direitos de minorias. Os americanos dão muito valor à capacidade que a sociedade tem de banir e retirar ideias que não são condizentes com os valores de igualdade, de liberdade, de dignidade humana. Eles entendem que a sociedade está mais preparada para fazer essa seleção do que o próprio Estado.
Em outro caso, que ocorreu num subúrbio de Chicago, neonazistas queriam fazer uma passeata vestidos com o uniforme das SS, num bairro que era reduto de sobreviventes do Holocausto, ou seja, com o firme propósito de agredir sobreviventes de Auschwitz. Isso gerou uma polêmica, porque aqueles que sobreviveram à barbárie que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial logicamente se sentiriam altamente ofendidos com uma passeata neonazista. A Suprema Corte americana decidiu que eles estavam manifestando ideias, sem gerar um ato concreto de violação ao direito de judeus. Assegurou o direito de manifestação da passeata, só que ela não ocorreu, porque a sociedade se colocou contra ela. A Suprema Corte americana afirma que a sociedade tem condições, ela própria, de selecionar o que quer e o que não quer, sem a interferência do Estado. Ou seja, não houve limitação à liberdade de expressão, ainda que a finalidade fosse agredir os sobreviventes judeus.
Outro caso bem interessante é o de uma lei que agravava a pena em até cinco anos quando as vítimas dos delitos fossem selecionadas por raça, constituição física, psíquica ou sexual, origem ou ascendência. Nesse caso, um jovem branco de 14 anos foi espancado por negros, por ser branco, numa apologia ao filme Mississipi em Chamas. O tribunal declarou inconstitucional essa lei, pois ela não poderia punir a intenção, algo que estaria na mente do indivíduo que escolheu sua vítima em razão da raça ou cor. A Suprema Corte americana anulou a decisão para manter a constitucionalidade da lei, dizendo que a liberdade de expressão não pode proteger a violência, porque nesse caso a escolha da vítima, ou seja, esse discurso, gerou uma ação concreta, que foi uma agressão ao menino. Não era mais um discurso, mas um ato concreto e, portanto, não estava mais protegido pela liberdade de expressão, e manteve-se a condenação do grupo.
Outro caso é o de R. A. V. versus St. Paul, em Minnesota. Uma lei proibia a exposição em público de qualquer símbolo capaz de gerar raiva ou medo nas pessoas, principalmente símbolos ligados a raça ou religião, como a suástica nazista. A pena era de 90 dias de detenção. A Suprema Corte decidiu que essa lei era inconstitucional, porque, se o Estado tem de se colocar em relação à liberdade de expressão numa posição de neutralidade, não pode gerar uma ação positiva para proteger determinados símbolos religiosos ou culturais em detrimento de outros. Ou seja, se admitimos símbolos, admitimos todos eles, inclusive os que geram horror e repulsa. Ao proteger alguns deles em detrimento de outros, o Estado sai da posição de neutralidade, está fazendo opções, e assim quebra sua neutralidade.
Muitos criticam essa posição, dizendo que dar mais liberdade de expressão a um grupo que historicamente já é perseguido pouco adianta, porque ele já está tão intimidado que não tem condições de ir a público se defender e na verdade esse discurso do ódio teria um efeito silenciador. A Suprema Corte americana entende que não, porque o efeito silenciador é muito mais intimidador, mas em nenhum momento é retirado o direito desse grupo de fazer sua manifestação. Então a preocupação jurídica deve ser de não retirar o direito de ele expor e refutar o discurso. Agora, se ele vai se sentir intimidado ou não, não é algo que o direito possa regular, é outra questão que foge à normatização do Estado.
Teoria do revisionismo
Em contraposição a toda essa esfera de liberdade americana, a Europa tem uma posição completamente diferente. Os europeus impõem expressamente limites à liberdade de expressão, muitas vezes constantes do texto constitucional, e o Estado não é regido pelo princípio da neutralidade, ele faz escolhas claras. Temos a punição expressa do discurso do ódio na Bélgica, na Alemanha, na França, na Espanha, na Polônia e na Suíça (o Canadá também pune o discurso do ódio, entendendo como ilegal o racismo, o antissemitismo, qualquer ato de xenofobia e de discriminação). Pune-se também o que é chamado de teoria do revisionismo. Ou seja, é crime contestar a existência do Holocausto. Parte-se do pressuposto de que esse é um fato histórico incontroverso. Isso gera polêmicas, porque a história sempre é contada pelos vencedores e todo fato histórico pode ser analisado e sofrer nova interpretação.
É claro que aquele que disser que o Holocausto não aconteceu será facilmente refutado, porque existem provas e mais provas de que ele ocorreu, vai ser um discurso vazio. Mas o medo na Europa de que surja um novo regime nazista é tão grande que eles proíbem expressamente a teoria do revisionismo. Vários professores já foram condenados e afastados do exercício do magistério por questionar ou procurar dar nova interpretação ao Holocausto em sala de aula. E a pena é alta: na Alemanha são cinco anos de reclusão mais multa.
A França pune o revisionismo com a Lei Gayssot, que faz uma interpretação mais ampla: é proibido contestar a existência de qualquer crime contra a humanidade. O professor de literatura Robert Faurisson, numa entrevista à TV, negou a existência do Holocausto, dizendo que a Alemanha não tinha tecnologia para fazer câmaras de gás. Em razão disso, foi condenado a três meses de prisão, teve de pagar € 7,5 mil e foi afastado do cargo por ter manifestado essa opinião.
Outro caso foi o de François Lehideux e Jacques Isorni, que foram acusados de apologia ao crime de guerra ou delitos porque divulgaram no Le Monde, em 1984, um encarte publicitário que elogiava a política de colaboração com o nazismo do marechal Philippe Pétain. Isso foi entendido como incitação ao racismo e ambos foram condenados, só que recorreram ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que os absolveu, entendendo que aquilo não tinha cunho de discurso do ódio, já que ainda estava no campo da manifestação das ideias.
Outro caso foi o de Roger Garaudy, que publicou em 1995 uma obra chamada Les Mythes Fondateurs de la Politique Israélienne, em que questionava a forma pela qual os judeus se utilizaram do mito do Holocausto e da morte de 6 milhões de judeus para construir o Estado de Israel, justificando os crimes cometidos contra o povo palestino. Ou seja, ele questiona a possível indústria do Holocausto. E teve o apoio do abade Pierre, oito vezes indicado ao Prêmio Nobel, que o defendeu dizendo que ele estava ainda no plano das ideias, que era uma corrente possível e que admitia ser questionada, mas foi condenado.
Temos uma grande filósofa, Hannah Arendt, que é judia e tem obras clássicas contra o nazismo, como Origens do Totalitarismo. Um trecho de um livro clássico dessa autora sobre o julgamento de Eichmann questiona como Hitler conseguiu dentro do Estado nazista fazer todas aquelas atrocidades com os judeus, pergunta se não havia conivência em algum momento com o povo judeu. Ela mesma, judia, questiona isso, e hoje poderia ser acusada de discurso do ódio, mas é claro que o faz do ponto de vista exclusivamente filosófico, em nenhum momento ela é a favor do nazismo ou faz apologia dele.
E agora na França há a lei do véu, que proíbe as mulheres de usar tanto a burca como aquela peça que deixa só os olhos de fora. Essa lei condena as mulheres a uma multa de € 150, e são obrigadas a ter aulas especiais de cidadania, com registro de antecedentes penais. Mas a pena maior não é para as mulheres, mas para os maridos, que as obrigam a usar os véus. Eles estão sujeitos a punições mais duras, multa de € 30 mil e até um ano de prisão.
A justificativa para a lei do véu é assegurar a liberdade religiosa. Um autor americano, Michael Rosenfeld, diz que essa lei é na verdade um discurso do ódio material, porque o resultado dela é justamente a discriminação daquele grupo de mulheres que têm determinada crença. Elas nunca vão poder deixar de usar o véu, que faz parte de sua identidade. Elas não podem deixar de ser muçulmanas, então esse é um discurso do ódio que gera um ato concreto. Ele não usa palavras agressivas como o discurso formal, mas é materialmente um discurso do ódio, porque tem como finalidade excluir aquelas mulheres do convívio em sociedade, impedi-las de frequentar escolas, não deixar que saiam à rua. Ele não está no âmbito das ideias, pois gera uma consequência.
Com relação à Alemanha, posso falar com mais propriedade. Esse país, durante um grande período, incentivou a imigração turca, porque precisava de mão de obra barata. Quando caiu o muro de Berlim, vieram os alemães orientais. Aí a política era dar emprego para os orientais. Foi quando começaram o discurso do ódio e as ações contra os turcos. Eles se tornam na verdade apátridas porque, se voltam para sua terra de origem, não conseguem se reintegrar, já que se ocidentalizaram e não seguem mais os mesmos preceitos.
Na Espanha também se pune a negação do genocídio. Nesse país houve um caso muito interessante, o Violeta Friedman. Um professor espanhol foi à televisão e colocou em dúvida a existência das famosas câmaras de gás. E criticou os judeus, dizendo que na verdade eles é que perseguiam Hitler. Violeta Friedman, que perdeu toda a família num campo de concentração, se sentiu atingida por aquelas alegações. Foi à Justiça, e o Judiciário espanhol negou-lhe o pedido na primeira instância, porque ela disse que sua honra tinha sido violada. Segundo o juiz espanhol, a honra é um direito individual, não existe coletivamente. Ela era uma vítima indireta da alegação dele, que estava falando contra o povo judeu, não contra Violeta Friedman. Ela recorreu, e o tribunal de segunda instância confirmou a decisão. O Tribunal Constitucional espanhol, que recebeu novo recurso, deu-lhe ganho de causa, dizendo que ela era uma vítima indireta e a dignidade pode ser individual e de um grupo. E existe, sim, honra coletiva.
Outro caso interessante na Espanha foi o Hitler SS. Dois franceses publicaram um álbum de conteúdo neonazista, editado por um espanhol. A proibição da teoria do revisionismo e da apologia ao racismo na Espanha pune também os editores. Embora o editor não fosse responsável pelo conteúdo do livro, foi responsabilizado pela prática do discurso do ódio, porque se considera que o editor do livro tem a obrigação de analisar o conteúdo do livro antes de publicá-lo. Portanto, se ele não fez essa análise prévia, é responsável pelo discurso do ódio.
A Alemanha também tem um ordenamento contra a teoria do revisionismo. O Holocausto virou um tabu entre os alemães. Os jovens se sentem intimidados quando se fala em Holocausto, dizem que não foram responsáveis por ele e não querem ser condenados por algo que não fizeram. Isso está gerando certo desconforto na nova geração alemã. Houve um caso conhecido no Brasil, porque diz respeito à eficácia horizontal dos direitos fundamentais: é o caso Lüth, relacionado à exibição de um filme de caráter antissemita. A sociedade quis fazer um boicote à exibição e isso foi até o Tribunal Constitucional. O tribunal entendeu que poderia se fazer o boicote, porque era liberdade de expressão. Portugal também pune o revisionismo, assim como a Itália e o Reino Unido.
O que é raça?
E no Brasil? Nunca tínhamos enfrentado um caso de discurso do ódio até o de Siegfried Ellwanger. Ele era dono de uma editora no sul e autor de livros em que questionava a existência do Holocausto, desclassificando os judeus, considerando-os uma sub-raça. Um dos livros dele era Holocausto: Judeu ou Alemão?, e todos os que publicava tinham caráter antissemita. Foi então acusado de crime de racismo. Seu advogado entrou com um habeas corpus alegando que o cliente não cometera tal crime.
Vejam o argumento do defensor: com a descoberta do genoma humano, ficou cientificamente comprovado que não há raças, mas só uma, que é a raça humana. Assim, nossas diferenças são apenas genotípicas. Ora, se não existe raça, não existe crime de racismo. E outra coisa: judeu não é raça, é religião.
Isso chegou até o Supremo Tribunal Federal, com relatoria do ministro Moreira Alves. Havia duas questões principais. Primeira: judeu é raça ou é religião? O crime de racismo sempre foi baseado num critério científico, considerando que existem raças, negra, branca, amarela. Agora não podíamos mais nos basear no critério científico. Então, para que o crime de racismo não ficasse vazio, o Poder Judiciário teve de lhe dar um conteúdo. Segunda: um livro é um instrumento hábil para a prática de racismo? A Constituição fala em prática de racismo, é um ato concreto, não divulgação de ideias. O ministro Moreira Alves teve uma posição bastante formal, não entrou na discussão de liberdade de expressão e racismo, mas na de raça ou religião. Ele entendeu que judeu não era raça e definiu o habeas corpus. Logo depois ele se aposentou e não participou do restante do debate.
Foi a primeira vez que enfrentamos um caso de discurso do ódio. O Brasil aderiu a todos os tratados de vedação ao racismo e à discriminação, favorável aos direitos humanos. O caso Siegfried Ellwanger teve um parecer do professor Celso Lafer, outro de Miguel Reale e a comunidade acadêmica participou ativamente desse julgamento. Uma questão que foi enfrentada era se o livro pode ser um instrumento hábil para o exercício do racismo. O livro, dizia o ministro Marco Aurélio, atinge a sociedade da mesma maneira que um panfleto, um outdoor, um programa de televisão. Ou é um ato de escolha? Se olharmos a realidade brasileira, o livro é praticamente para uma elite, porque a maioria da população não lê. O livro está relacionado à vida pensada, não à vida vivida. Ele diz respeito a um discurso de intolerância, mas não é um discurso prático, ainda está no mundo das ideias, não tem o condão de transformar uma sociedade.
Nessa discussão também foi colocado o seguinte: será que o Estado vai ter de fazer uma lista dos livros que têm cunho racista? Vamos voltar à época da Inquisição, com a lista de obras que podem ser lidas ou não? São vários os direitos envolvidos, de um lado os do povo judeu, a proibição da discriminação, a violação à dignidade humana, a violação à isonomia, a incitação à prática do racismo. Por outro lado, levanta o ministro Carlos Ayres Britto, que direitos são assegurados a Ellwanger? Ele teria a liberdade de expressão, de iniciativa, porque tinha uma editora e ter uma editora não é crime. Nesse conflito, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, voto vencido dos ministros Marco Aurélio, Ayres Britto e Moreira Alves, entendeu que o editor cometeu prática de racismo, que o livro pode ser um instrumento de incitação ao ódio e que judeu é raça. Nesse julgamento, o Supremo deu um novo conceito de raça, entendendo que racismo é a perseguição a qualquer grupo étnico, religioso, social ou cultural. O Supremo Tribunal Federal se valeu muito da jurisprudência dos tribunais europeus, em detrimento dos tribunais americanos.
É interessante lembrar que o Supremo, quando decidiu esse caso, não tinha declarado ainda a não recepção da lei de imprensa. Aí vem uma crítica: quando o tribunal constitucional tem a chance de enfrentar um hard case, um caso grave como esse, em que pode explorar todos os direitos que estão em jogo e firmar uma jurisprudência consolidada, não pode perder a oportunidade de fazer isso. Quando uma corte constitucional perde essa oportunidade, o caso volta. Isso não fica pacificado. Já há consequências, como um projeto de lei do deputado Marcelo Itagiba, do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], regulamentando o discurso do ódio como crime e proibindo a teoria do revisionismo nos moldes do direito europeu.
Em 2008, tivemos o caso da Escola de Samba Viradouro, cujo enredo era “É de Arrepiar”. Uma das alas fazia alusão ao Holocausto. Haveria um carro alegórico com corpos, pares de sapatos e Adolf Hitler, porque o intuito era trazer situações que arrepiam e causam repulsa, coisas que a gente não quer que se repitam ao longo da história. Mas a Federação Israelita do Rio de Janeiro se sentiu extremamente ofendida, dizendo que estavam banalizando o Holocausto, e entrou na Justiça. A juíza de primeira instância concedeu a liminar, fixando uma multa no valor de R$ 200 mil na hipótese de a Viradouro levar o carro para a avenida e uma multa adicional de R$ 50 mil se aparecesse alguém fantasiado de Hitler. A escola não levou o carro e todos os integrantes desfilaram com uma mordaça, mostrando que a censura também causa arrepio.
Monteiro Lobato
No Superior Tribunal de Justiça [STJ] tivemos um caso interessante, no acórdão da ministra Nancy Andrighi, de um francês chamado Salomão Simon, que foi perseguido na Alemanha. Sua família morreu na guerra, ele era judeu e se naturalizou brasileiro. Ele entrou com uma ação no Brasil contra a Alemanha pedindo indenização, por todos os maus-tratos que sofreu. O juiz de primeira instância entendeu que não é possível entrar com uma ação contra Estado estrangeiro. Isso foi, por meio de recurso ordinário, para o STJ, que por unanimidade entendeu, ao contrário, que é possível processar a Alemanha, porque o Brasil tem de proteger os brasileiros contra qualquer violência de Estado estrangeiro, baseando-se numa decisão anterior de um pedido de indenização de brasileiros contra Portugal. E assim existe um processo desse brasileiro contra a Alemanha, pedindo indenização por prejuízos sofridos, ainda que na época não fosse brasileiro, mas francês.
Recentemente, houve o caso das obras de Monteiro Lobato. O Conselho Nacional de Educação entendeu que elas têm cunho racista e não podem ser lidas nas escolas. Um dos textos descreve a situação em que a Tia Nastácia, uma personagem negra do Sítio do Pica-Pau Amarelo, sobe numa árvore: “Ela está numa árvore que nem uma macaca de carvão”. E outro é quando a boneca Emília, ao advertir sobre a gravidade de uma guerra das onças contra os moradores do sítio, diz: “Não vai escapar ninguém, nem tia Nastácia, que tem carne preta”. Em razão desses trechos a obra dele foi considerada de cunho racista. O que é interessante é que Monteiro Lobato sempre afirmava que um país se faz de homens e livros. Dedicou sua vida a escrever livros e formar homens, e hoje é acusado de racista.
Chamo a atenção também para a possibilidade de a sociedade criar meios de sanar e de buscar soluções. Por exemplo, no que diz respeito à imprensa e à propaganda, temos o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar), uma ONG que exerce esse controle de modo privado e tem decisões em mais de 7 mil processos movidos por consumidores e empresas. A decisão é respeitada de comum acordo pelas grandes emissoras, voluntariamente, sem que isso tenha de chegar ao Judiciário. Ou seja, é uma ética que parte da sociedade, que tem a capacidade de eleger o que é ético e o que não é, sem que seja necessário o controle por parte do Estado.
Há sempre maior probabilidade de que a verdade nasça de um debate aberto, em que todas as hipóteses são consideradas e nada é censurado. Há uma frase do juiz Holmes, da Suprema Corte americana, que define bem o que é assegurar a liberdade de expressão. Ele diz assim: “Temos de aceitar a liberdade de expressão em relação àquilo que mais odiamos, para que consigamos um reconhecimento amplo desse direito”.
Debate
Nota do Editor: As colocações dirigidas à palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.
JOSUÉ MUSSALÉM – Vou começar com conceitos religiosos. Por exemplo, a religião cristã não define o ódio, mas o amor. Se observarmos a parábola de Jesus Cristo sobre o bom samaritano, veremos que ele ali ensina que não há raças. É o samaritano que socorre o estrangeiro. Na religião budista e na judaica também não existe isso. Quando se lê Alan Kardec – o espiritismo não é uma religião, mas uma interpretação doutrinária do cristianismo –, vê-se que não há o menor espaço para o ódio. Mas o homem é capaz de transformar religião em ódio.
A professora Anita Novinsky, da USP [Universidade de São Paulo], que é judia e especialista em Inquisição, explica que no caso da religião católica o grande mote do ódio foram inicialmente as Cruzadas, em que os reis, unidos à igreja católica, chegaram à conclusão de que deveriam retomar os lugares santos.
A jihad, guerra santa, na interpretação do Alcorão, não existe para matar o infiel, mas para que cada homem e cada mulher combatam o mal que têm dentro de si. Você falou em Monteiro Lobato e me lembrei de Gilberto Freyre, com quem convivi na Fundação Joaquim Nabuco. Gilberto era censurado pela esquerda do Brasil, quando vivo, e continuou a ser depois de morto. A Fundação Gilberto Freyre fez uma versão de Casa-Grande & Senzala em quadrinhos, para distribuir nas escolas públicas. Quatro gravuras dessa edição – uma era uma índia de busto nu na capa, outra uma imagem interna de um senhor de engenho mantendo relações com uma mucama (isso aconteceu inúmeras vezes, do contrário não haveria tantos mulatos no Brasil), outra mostrava um garoto branco brincando de montar a cavalo em um pretinho e a última era de um garoto branco dando um tapa numa cozinheira no engenho de açúcar – geraram tantos problemas que a publicação foi parar em Brasília, mas finalmente a Justiça determinou que fosse distribuída.
A Comissão da Verdade é um discurso do ódio no Brasil. Ela quer ver só um lado da questão, o lado dos torturados. Houve realmente tortura, ninguém pode negar. Mas as pessoas torturadas pertenciam a diversas organizações terroristas, assassinas. Conheço o caso de um dos rapazes que mataram o gerente da Souza Cruz em Recife. Chama-se Bruno Maranhão. Hoje é do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra], está solto. Há também o caso de um juiz que matou um superintendente da Aeronáutica, foi condenado à morte – existia então a pena de morte –, está solto e já se aposentou. E temos a impunidade do atentado ao Aeroporto Internacional dos Guararapes, em que a ordem para colocar a bomba foi dada por Sérgio Motta, que depois foi ministro de Fernando Henrique Cardoso. Tudo isso mostra que não existe interesse realmente na divulgação da verdade.
Outra coisa interessante é que artigos e palestras estão sendo censurados. Por exemplo, o general Augusto Heleno ia falar sobre a contrarrevolução no dia 31 de março, mas foi proibido. Há também a questão da União Nacional dos Estudantes [UNE]. No ano passado, o presidente Lula, na véspera da eleição, destinou R$ 36 milhões a ela, sob a justificativa de que precisava reconstruir sua sede, que havia queimado em 1964. Na exposição de motivos há a alegação mentirosa de que a sede da UNE foi incendiada pelo exército. Foi queimada pela turba de Carlos Lacerda, no dia 1º de abril. O edifício era um clube alemão da época da Segunda Guerra Mundial, chamado Germânia. Como o Brasil declarou guerra à Alemanha, foi desapropriado, e a UNE tomou posse dele, o que depois foi confirmado por um decreto de Getúlio Vargas. Pagamos R$ 36 milhões para a campanha de Dilma Rousseff.
NEY FIGUEIREDO – Walter Cronkite, um símbolo do jornalismo americano, diz que o compromisso da imprensa não é com a verdade, mas com a notícia. A senhora mostrou uma série de exemplos, que conhecemos também. Aliás, penso que a única unanimidade no Brasil, entre empresários, políticos e juristas, é que todos acham que a imprensa exagera. A senhora acredita que estamos precisando de uma nova lei de imprensa ou devemos partir para a criação de outro Conar? Fui o relator do primeiro processo do Conar e tirei do ar, na época, o comercial do bronzeador Eversun. O anúncio dizia que só ele tinha determinadas características e o concorrente se sentiu ofendido. Acredito que a imprensa tem de ter algum tipo de controle, porque não há ninguém aqui, inclusive eu, que não tenha sido vítima dela, mas esse controle tem de ser dela mesma. Gostaria de saber sua opinião.
Outro ponto: não sou jurista, mas leio muito e não sabia que existe um tribunal europeu com jurisdição sobre os diversos componentes da Comunidade Europeia. Onde funciona e qual é a jurisdição dele?
SAMANTHA – É o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Mas antes de falar dele, vamos à primeira pergunta. Penso que deveria haver apenas uma regulamentação, em forma de lei, no que diz respeito ao direito de resposta. Prazos têm de ser estabelecidos para a pessoa entrar com o direito de resposta, e isso não pode ser deixado no âmbito privado da própria imprensa. A regulamentação do direito de resposta teria de ocorrer por lei. Deve haver prazo também para entrar com ação de indenização por danos morais e materiais, e isso deveria ter tratamento legal.
Quanto à regulação da imprensa, não acho que deva ser feita por lei, mas num sistema como o Conar, dentro da própria imprensa, sem que o Estado interfira nisso. De outra parte, o Judiciário cumpre seu papel em eventuais abusos, e toda vez que tem sido preciso recorrer a ele, tem correspondido. O exemplo do Conar significa que é um bom caminho, ainda que não seja um órgão estatal nem jurídico.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos foi criado logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando apareceram sistemas de proteção dos direitos humanos, na Europa e na América. Ele surgiu para proteger o cidadão contra eventuais violações. É claro que isso sofreu certo abrandamento, porque havia um conflito com a soberania de cada Estado, o que de certa forma foi relativizado com a criação da União Europeia e com uma predisposição da magistratura nacional de cada país a adequar as grandes declarações de direitos humanos à legislação interna, o que denominamos margem de apreciação da magistratura. Então esse tribunal tem suas decisões cumpridas, mas para acessá-lo é preciso que se esgotem antes as vias internas ou se demonstre que o processo está muito lento e sem resposta efetiva dentro do país. Fica em Estrasburgo, na França.
Quanto à questão da Comissão da Verdade, tivemos uma ADPF [ação de descumprimento de preceito fundamental], proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, contra a Lei da Anistia do regime militar, alegando que os crimes de tortura são imprescritíveis e não passíveis de anistia. O Supremo apreciou a questão, dizendo que a Constituição de 1988 recepcionou essa legislação, porque faz parte do instituto da anistia ser geral e irrestrita. O recurso foi à Corte Interamericana de Direitos Humanos e essa foi a quarta condenação do Brasil nessa corte, que concluiu que o crime de tortura não pode ser passível de anistia nem de prescrição.
MUSSALÉM – O crime de terrorismo é imprescritível?
SAMANTHA – Creio que sim. Temos aí um problema de violação, porque há uma decisão do Supremo pedindo que não se mexa numa questão de soberania interna e uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos dizendo que a questão tem de ser reaberta.
ROBERTO MAGALHÃES – O tema é interessantíssimo e oportuníssimo, porque o governo Lula foi revanchista, a começar pelo sistema de cotas, que, longe de amenizar as possíveis dificuldades de relações entre negros e nem digo brancos, mas não negros, está criando um conflito, já que todo aquele que é prejudicado pela cota fica incomodado. Sou adversário sob qualquer aspecto dessa política, que considero absurda e antidemocrática.
Quando estava me iniciando como advogado e professor da Faculdade de Direito do Recife, tinha curiosidade a respeito das constituições de outros países e consegui um exemplar da primeira Constituição soviética após a revolução de 1917. Entre as coisas que encontrei há um artigo que diz o seguinte: é assegurada a liberdade religiosa; é também assegurada a propaganda antirreligiosa. Não me esqueci disso pois sempre me pareceu uma coisa muito curiosa. A Constituição é panfletária, mais do que ela só a portuguesa após a Revolução dos Cravos. Depois de sua palestra vejo que não dá para julgá-la assim tão facilmente, mas é um dado histórico para essa matéria.
Outra observação: foi afirmado aqui que os livros não podem gerar ações concretas, por isso não podem ser considerados discurso do ódio. Pergunto: como ficam os enciclopedistas franceses em face da Revolução Francesa e como ficam Engels e Marx em relação à doutrina comunista e à revolução de 1917 na Rússia?
Outra observação: estamos a 60 e poucos anos da Segunda Guerra Mundial, e se os jovens alemães, com razão, se sentem incomodados, o que não sofreram os judeus acusados por 2 mil anos de ser responsáveis pela crucificação de Cristo? Por isso digo que houve três episódios na história – o primeiro a Inquisição, que durou 300 anos, o segundo a escravidão negra e terceiro o Holocausto – de cuja culpa a humanidade nunca conseguirá livrar-se, porque foram crimes contra a dignidade e a liberdade do ser humano e houve tanto ódio e tanta crueldade que as cicatrizes se conservarão até o fim dos tempos.
Para terminar, como militante político, sofri uma terrível discriminação por parte da imprensa, eu e meu partido. Os donos de jornais às vezes até simpatizavam conosco, mas as redações eram terríveis e usavam de todos os meios para desqualificar o candidato que fosse contrário a eles. Pergunto: não caberia também levar em conta esse problema da imprensa, já que quando se trata de política há casos em que ela usa e abusa de seus privilégios, atacando doutrinas, ideias, candidatos e assim por diante?
SAMANTHA – Quanto à questão dos grandes filósofos, como Montesquieu, Rousseau e Marx, entendo que suas obras estão ainda no campo teórico. O livro pode influenciar, mas não gera ação concreta, tem de existir alguém que, influenciado por essas ideias, as ponha em prática.
NEY PRADO – Na Escola Superior de Guerra, durante o regime militar, falava-se sobre marxismo, mas não em Lênin. O marxismo estava no campo abstrato das ideias e Lênin era o homem da ação. É a diferença entre comunismo e comunista, e o grande erro é combater o comunista esquecendo o comunismo. As ideias sempre têm significado, mas para que haja uma revolução é necessário que haja dois pressupostos, o das ideias e o dos aspectos materiais.
SAMANTHA – Cheguei a ler a obra Mein Kampf, de Hitler, meu pai era alemão. Entendo que o livro ainda está no campo das ideias e me lembro de que minha avó falava da figura de Hitler do ponto de vista dos alemães. O povo sempre foi uma massa de manobra, e os alemães efetivamente não sabiam o que acontecia com os judeus. Minha avó dizia que Hitler era um sedutor, tinha muito carisma, como Getúlio Vargas, poder de persuasão. As mulheres doavam suas joias para o exército alemão. Ele dizia que a Alemanha ia se reerguer; o país estava na miséria e Hitler era a única esperança. Era uma elite que dominava e controlava os veículos de comunicação. A obra em si é doutrinária, mas o que gerou a ação concreta foi o carisma que ele tinha, os discursos para as massas que fazia. Esses, sim, levaram a ações concretas, não o livro.
No que diz respeito à imprensa, penso que a legislação eleitoral tem de ser mais rigorosa, não só em relação às campanhas, mas quando de certa forma silencia um setor ou determinado partido. O direito de resposta precisa ser assegurado ao político que se sentiu excluído. A legislação eleitoral teria de ser mais eficaz.
ROBERTO MAGALHÃES – Sinto-me no dever de fazer justiça à Justiça Eleitoral. Realmente nesse campo, sobretudo na televisão, ela tem sido muito eficaz. Mas não pode interferir na imprensa escrita.
ISABEL MACEDO ALEXANDRE – Com relação ao direito de imagem, pergunto se há maior liberdade do uso de imagem na mídia impressa e televisiva do que nos livros. Outra pergunta, ligada a essa: qual a diferença entre publicar a imagem de uma pessoa anônima, que deu autorização, e de uma pessoa pública? Isso porque às vezes alguém quer publicar a imagem de um político ou artista num livro, dentro de determinado contexto em que essa imagem é essencial, e essas pessoas não permitem a publicação. A cada vez que isso é julgado, as decisões são díspares. Isso também vale para as biografias. No Brasil temos um problema muito sério para publicá-las, porque é preciso esperar 70 anos após a morte do biografado. Nem é direito autoral, é cível, os parentes é que não permitem o uso da imagem.
No caso de Roberto Carlos, que impediu a publicação de sua biografia, não se tratava de uma questão racista; ele disse que queriam denegrir sua imagem porque tem um defeito físico, algo que é uma coisa pública, sabida. A biografia era apologética, mas a editora não quis ir aos tribunais, porque ganharia. Segundo me informei com outros advogados da área editorial, nada havia na biografia que pudesse denegrir a imagem de Roberto Carlos. A sociedade brasileira, diferentemente da americana, muitas vezes prefere não recorrer aos tribunais, nesse caso porque se trata de Roberto Carlos, de quem o povo gosta. Ou talvez a editora não quisesse ficar mal no mercado nacional afrontando o biografado, já que é uma empresa estrangeira, a Planeta.
Outra questão diz respeito à lei americana, que faz distinção entre fato e ideia. A partir do momento em que a ideia se concretiza é que pode ser passível de punição. Mas e o lado psicológico? Uma ideia pode ser uma agressão psíquica violenta, pode causar danos. Como isso é considerado na justiça americana?
SAMANTHA – No direito americano, se algo gerou danos, é indenizável financeiramente, mas isso não impede a liberdade de expressão. Não que a pessoa que se sentiu psicologicamente afetada não possa recorrer aos tribunais para pedir uma indenização ou um tratamento; ela não pode é impedir a manifestação das ideias.
ISABEL – Mesmo se as ideias forem agressivas?
SAMANTHA – Mesmo com ideias agressivas, mesmo com fighting words, palavras de baixo calão, fortes, eles mantêm a liberdade de expressão. No que diz respeito ao direito de imagem, o artigo 5º de nossa Constituição, que trata de direitos individuais, assegura o direito de imagem, a honra, a privacidade e a intimidade. Na verdade, são direitos humanos tratados na Constituição, portanto direitos fundamentais. Eles são inalienáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e pertencem ao indivíduo pelo simples fato de que é um ser humano. É claro que todos têm esses direitos. Em algum momento posso cedê-los, quando por exemplo vou participar de um programa de televisão e cedo meu direito de imagem. Mas se sou uma pessoa pública, o direito de imagem fica relativizado. Por exemplo, o presidente da República não vai poder autorizar cada foto sua em um discurso, porque ali é a pessoa jurídica do presidente, não a física.
Os direitos fundamentais, todos eles, estão numa verdadeira rota de colisão. Como ter liberdade plena de expressão e direito à intimidade, honra e imagem? Como ter função social da propriedade e desapropriação? Esses conflitos não se dão no plano normativo, em que são plenamente conciliáveis, mas no caso concreto, e não é possível, nem para a lei nem para a Constituição, estabelecer que, no caso do conflito do direito de publicação do editor e do direito de imagem, sempre vai prevalecer este ou aquele. O que o Supremo pode fazer é colocar determinados parâmetros.
O Supremo não tem esses parâmetros muito bem estabelecidos. Então, como não temos jurisprudência consolidada no STF, em cada caso o juiz, analisando as situações concretas, decide qual direito vai prevalecer, em nome daquilo que na doutrina se conhece como o princípio da proporcionalidade e o da razoabilidade. Só que isso gera, por exemplo, para os editores de livros, uma total incerteza. Quando se pode publicar ou não? Depende da cabeça do juiz.
Quando se trata da televisão isso não é tão rigoroso. Como tudo se passa muito rapidamente, numa sucessão de informações, as pessoas não têm nem tempo para entrar no Judiciário, além de ser caro fazer isso no Brasil. Quem mais demanda o Judiciário não é o particular, é o próprio Estado, que tem um instrumento para isso, o Ministério Público, a Procuradoria.
O Supremo tem algumas decisões sobre direito de imagem. Por exemplo, quem vai ao carnaval está exposto, e se tiver sua imagem veiculada num jornal não vai poder alegar direito de imagem. Dependendo da situação, se foi algo que não diz respeito à intimidade de um político, a imagem pode ser veiculada.
Antonio Carlos Mendes, em sua tese de doutorado, questionava muito essa questão do direito de imagem quando a imprensa descreve todas as características de um político, mas não cita seu nome. Ela o agride de todas as maneiras, o leitor sabe exatamente de quem estão falando, talvez com uma caricatura, mas sem foto. Ele teria o direito de imagem? Isso vai depender da jurisprudência dos tribunais, não há uma regulamentação, até porque qualquer regulamentação com esse objetivo vai chegar ao Supremo Tribunal Federal como inconstitucionalidade, porque uma lei ordinária não pode limitar um direito fundamental.
NEY PRADO – Tínhamos uma Constituição positivada, não principiológica, e só existia do ponto de vista jurídico aquilo que estava modulado por lei. Agora estamos vivendo uma época de contradição que não há como superar, porque estamos querendo compatibilizar uma Constituição principiológica com uma casuística e positivada. Então as cláusulas abertas, que são as principiológicas, batem no subjetivismo, que está na cabeça de cada juiz, e podem também conflitar no Supremo Tribunal Federal, que é chamado em última instância a dirimir a controvérsia. O drama é saber como agir se a solução final se dá através de uma decisão jurisprudencial. Na Inglaterra se resolve esse problema, porque lá o direito é consuetudinário, o que vale não é a norma escrita, mas a dos tribunais. Aqui estamos nessa confusão e isso é um terrível óbice para quem quer segurança jurídica.
LENINA POMERANZ – A “Folha de S. Paulo” publicou uma notícia muito interessante: já existem empresas especializadas em resguardar as imagens na internet. Uma delas se chama reputation.com.
EDUARDO SILVA – A violência no Brasil está aumentando, entre outras causas, devido à própria divulgação das notícias. Penso que o rádio, a televisão e os jornais e revistas, para ter originalidade, exageram na comunicação. Então, em matéria de combate à violência, ao racismo ou a qualquer outro mal, precisamos viver num mundo um pouco mais moderno, segurar um pouco a imprensa.
MOACYR VAZ GUIMARÃES – Sempre achei curioso ver como a democracia está sendo estuprada em termos conceituais. Desde a República Democrática da Alemanha, a parte comunista, que não tinha nada de democrática, até depois, com a preocupação de colocar sempre algum adjetivo à palavra “democracia”, cujo conceito é tão grande que se contém em si próprio. Por que dizer “democracia responsável” ou “popular”? Se for democracia, será popular. Se for democracia, é responsável. Sempre se quer dar um qualificativo, o que, se não for redundância, pelo menos prejudica a conceituação real de democracia.
Voltando ao tema, à exceção dos Estados Unidos, que há mais de século conceituou liberdade de expressão de uma maneira e é fiel a ela, em nenhum país encontramos isso. A liberdade de expressão fica ao sabor de correntes políticas e sociais, da Europa principalmente, ainda oriundas dos traumas que sofreram os países. Então, a preocupação que levo de sua palestra e das outras intervenções é a seguinte: há uma dificuldade muito grande de conceituar a liberdade de expressão. O que é a livre manifestação de um pensamento pode ser entendido como incitação à imediata prática de uma ação. Você acredita, Samantha, que chegaremos um dia a ter uma conceituação que dure algum tempo?
VICENTE MAROTTA RANGEL – Atualmente moro mais tempo na Alemanha do que aqui, por necessidades profissionais. Por essa razão, concordo com sua avó e invoco um fato que ocorreu há muitos anos. Pouco depois da Segunda Guerra Mundial, eu estava na Holanda, na Academia de Direito Internacional. Essa instituição costumava oferecer um circuito de ônibus para os membros conhecerem a cidade e a meu lado um amigo francês, num dado instante, começou a chorar convulsivamente. Perguntei o que estava acontecendo e ele respondeu: “É a primeira vez que vejo um alemão depois da guerra”. Essa resposta não fazia nenhuma referência a campos de concentração, era apenas o sentimento de um francês em relação a um alemão e seria talvez a reação também fisiológica de um alemão em relação a um francês. O fato é que a guerra não foi apenas um conflito entre estados, porque houve, infelizmente, campos de concentração. O problema foi muito mais profundo, marcou tanto a França como a Alemanha e não vejo condições de explicar o que aconteceu. Há uma repulsa geral, a repulsa que sentimos como seres humanos.
LUIZ GORNSTEIN – O jornal “O Estado de S. Paulo” foi impedido de publicar uma matéria supostamente ofensiva à família Sarney. Nessa decisão judicial, você acha correto usar o termo “censura”?
JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Fernando Henrique sancionou uma lei, que foi apresentada por Pedro Simon, que cria o número único de identificação. Graças a Deus, como o processo é muito lento, isso ainda não foi regulamentado. Essa lei me lembra 1984, escrito por Eric Arthur Blair, que não queria ser anônimo, mas usava o pseudônimo de George Orwell. Em 1977 apresentei um projeto de emenda constitucional – naquele tempo não existia a PEC – para assegurar aos brasileiros o direito à intimidade. Como intimidade é um conceito muito fluido, tive de modificar o texto para assegurar o direito à informação. Posteriormente foi agregado, por Ney Prado e por iniciativa de Franco Montoro, o habeas data. Agora temos uma dimensão muito maior, que é a internet. Infeliz ou felizmente, com a informática temos a memória virtual, ela não esquece. Gostaria de sua opinião sobre esse número único. A intimidade é irmã gêmea da liberdade. Como se diz que a intimidade está acabando, posso presumir que a liberdade também?
MARISA AMATO – Foi dito que a mídia tem compromisso com a informação e não com a verdade, mas, na área médica, se a informação não é verdadeira traz danos e consequências que podem ser sérias para as pessoas, criam expectativas. Você não acha que deveria existir uma regulamentação para que se exigisse um compromisso também com a verdade e não só com a informação?
JOSEF BARAT – Que nota você daria à democracia brasileira, de zero a cinco, em termos de liberdade de expressão, direitos humanos, Estado de direito, funcionamento dos poderes, especialmente o Judiciário? Outra questão: o sistema de cotas não seria um anacronismo, uma vez que não se pode admitir mais o conceito de raça? Se as cotas são baseadas em critérios raciais e autodeclaratórios, quando na verdade nós todos descendemos daquele africano original do Quênia, então esse critério não é absurdo do ponto de vista técnico? A lógica não seria mais de natureza socioeconômica? Levando o raciocínio ao extremo, um negro rico pode se beneficiar do sistema e um branco pobre não!
ZEVI GHIVELDER – Há um vício de linguagem no Brasil, que é o de vincular racismo a raça. Refiro-me àquele editor de Porto Alegre que fez sua defesa afirmando que judeus não são raça e por isso não podia ser acusado de racismo. Acho uma tolice muito grande, porque uma coisa não tem a ver com a outra. Outro ponto: no que diz respeito às obras revisionistas sobre o Holocausto, apesar de ser judeu, acho que isso não deve ser condenado ou punido judicialmente, como se faz na Europa, mas rebatido com outras obras, mesmo porque o revisionismo esbarra num acontecimento histórico que não pode ser mais mudado. Finalmente, eu queria entender melhor a história do francês que foi ao STJ pedir indenização à Alemanha. Isso não me entra na cabeça, porque os alemães fizeram um programa voluntário de reparação dos bens saqueados dos judeus. Tenho um testemunho particular disso, pois minha avó teve a casa destruída e recebeu como reparação uma pensão vitalícia.
SAMANTHA – O conceito jurídico de racismo que o Supremo deu engloba, por exemplo, os nordestinos. Qualquer discurso do ódio contra eles é considerado racismo, como qualquer perseguição a determinado grupo étnico, religioso, social ou cultural, qualquer minoria. A crítica que faço é que o Supremo ampliou demais esse conceito, numa preocupação não tão necessária. Mas é essa a jurisprudência predominante até os dias atuais, porque não houve alteração.
Quanto à questão da teoria revisionista, também acho que não faz sentido proibir determinados livros. Inclusive tivemos isso em relação à igreja católica com O Código Da Vinci, considerado uma afronta aos valores dessa religião, a tal ponto que foi rebatido com a publicação de uma série de outras obras.
ZEVI – Mas O Código Da Vinci não é um livro histórico, é de ficção.
SAMANTHA – Mas causou grande polêmica e foi rebatido não com censura, mas com outros livros. Houve um debate aberto e aquilo não causou estrago nenhum, porque a própria sociedade viu que não havia fundamentação. Entendo que a posição do Estado é de deixar a própria sociedade verificar o que tem fundamentação ou não, pois temos poder de autodeterminação e de crítica. No que diz respeito à decisão do STJ contra a Alemanha, foi um recurso ordinário. Na verdade, o francês pediu indenização por danos morais, prejuízos psicológicos que sofreu em razão da perseguição, não pelos bens que perdeu. O STJ entendeu que o autor tinha legitimidade para acionar o Estado estrangeiro.
No que respeita à questão das cotas, as ações afirmativas que o Brasil está utilizando nasceram do sistema americano. Receberam esse nome porque afirmam o princípio da isonomia, partem do pressuposto de que a Constituição assegura uma isonomia formal, mas não material, ou seja, não assegura uma igualdade diante dos bens da vida. Assim seria necessária a criação de políticas públicas que possibilitassem a essas minorias acesso a educação, saúde e integração na sociedade.
Existe um livro de Ronald Dworkin, Uma Questão de Princípio, em que se analisa esse tema, principalmente o regime de cotas nos Estados Unidos, porque no direito americano havia o princípio de igualdade entre brancos e negros. Aí o regime de cotas faz sentido, porque estabelece uma porcentagem de negros em escolas públicas e vagas para latinos também em universidades. No entanto, recentemente o Poder Judiciário americano vem revendo isso, alegando que hoje já existe uma igualdade de fato e não se sustenta a manutenção das cotas, um regime que tem de ser temporário. Se for definitivo, acaba sendo uma violação ao princípio da isonomia e não uma integração. Anos depois, a onda chegou ao Brasil, copiamos o regime e utilizamos o critério raça. E com base na autodeclaração, ou seja, a pessoa se declara negra. Só que somos um povo miscigenado.
NEY PRADO – Um dado importante nessa discussão é o princípio da isonomia. Existem dois tipos de isonomia, no ingresso do sujeito na sociedade e na saída. Para a partida temos de igualar, para que haja isonomia de oportunidades. O grande problema é quando se sai da igualdade de oportunidades e se passa para a igualdade de resultados, porque esta só pode ser atingida através de políticas públicas, e aí surge o intervencionismo com todos os seus malefícios.
SAMANTHA – Em nossa sociedade miscigenada, talvez o critério mais legítimo seja o socioeconômico, envolvendo alunos de baixa renda independentemente de cor.
BARAT – Como o Supremo se manifesta?
SAMANTHA – O Supremo julgou isso constitucional. Inclusive houve uma ação direta de inconstitucionalidade que fizemos pelo antigo PFL [Partido da Frente Liberal] contra o ProUni e outra que o professor Ives Gandra Martins fez pela Associação das Universidades Particulares contra a regra para alunos negros nessas instituições. O Supremo entendeu que era constitucional, então hoje está pacificado assim. Mas não se pode esquecer que é temporário, porque a partir do momento em que haja a igualdade de fato não se justifica a manutenção das cotas. Mas há um perigo: se tudo for minoria, daqui a pouco tudo terá cota e o regime se inviabiliza.
No livro de Dworkin, o autor analisa o regime de cotas para alunos negros em uma universidade de medicina. Ele verifica que no primeiro ano há uma diferença entre os alunos que entraram pelo regime de cotas e os que entraram pelo sistema normal, mas no terceiro ano acontece um equilíbrio, porque esses alunos se sentem tão gratificados com a oportunidade que se esforçam mais. Concluiu-se então que o sistema de cotas era viável. E a pesquisa foi feita numa faculdade de medicina, que seria aquela de maior complexidade, tendo em vista a dificuldade das matérias ali lecionadas.
Quanto à questão que envolve a família Sarney, entendo que é uma censura. A decisão fixou um período de tempo em que o jornal está impedido de veicular qualquer notícia referente à família. Se acontecer um fato relevante relativo àquele grupo familiar, o jornal não terá o direito de informação assegurado na Constituição? Vejam que todos os outros jornais noticiam e aquele não. É uma violação à liberdade de imprensa e ao direito de informação. Fazendo uma relação com a verdade, entendo que o direito à informação assegurado na Constituição nada tem de compromisso com a verdade, é um direito que o cidadão tem de obter o relato de um fato exatamente como aconteceu. Se o fato não existiu, cabe uma ação judicial contra o jornal, por noticiar fatos inexistentes e mentirosos. Mas a relação com a verdade é extremamente complicada. Quem está com a verdade no âmbito da interpretação da notícia?
Talvez um órgão como o Conar seja uma alternativa para regulamentar. É muito complicado conceituar a liberdade de imprensa a partir dos órgãos estatais, porque todas as tentativas de conceituação doutrinária não se sustentaram em nossa sociedade. O conceito tem de vir espontaneamente da sociedade, através de nossa vivência. Não sei se é uma visão muito romântica, mas algumas vezes é necessária.
Quanto ao número único, acredito que viola a liberdade individual e o direito à intimidade. Está relacionado à liberdade porque vai destruindo as características individuais, a autonomia ou o poder de autodenominação. E é uma forma muito fácil de controle.