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Invenção sonora
Os gêneros musicais acompanham ou antecipam os passos da sociedade. Nas civilizações antigas, através da música era possível transmitir ordens divinas e prestar agradecimento por elas. Na Poética, Aristóteles destaca a música como um dos componentes fundamentais da tragédia grega; na República, de Platão, a formação musical era vista como parte fundamental da educação, isso “porque o ritmo e a harmonia têm no mais alto grau, a tendência de insinuar na alma, dominando-a”.
Essas referências da Grécia antiga sinalizam o triunfo da música como manifestação artística que dialoga com as transformações sociais desde tempos imemoriais. Exemplo bem mais recente de peça alçada ao panteão sonoro, Pierrot Lunaire, do compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951), há 100 anos é considerado o marco inaugural da música moderna. Segundo Yara Caznok, professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, (Unesp) em São Paulo, o que há de mais impactante na obra é o idioma harmônico tonal, que influencia muitos músicos até hoje. “O Pierrot explora a radicalidade da experiência proporcionada pelo atonalismo – o descentramento, a perda de referências tradicionais, a sensação de não identificação de qualquer elemento, ou seja, a perda do confronto e da fruição artística”, explica.
Prescindir de um centro tonal e de uma hierarquia explícita entre os sons acaba com a direcionalidade tradicional da escuta musical, hábito que se constituiu e foi altamente explorado entre os séculos 17 e 19. Com Pierrot Lunaire, Schoenberg consegue sintetizar as pesquisas com tonalidade que estava fazendo, usando intervalos anárquicos que negam uma tonalidade. Mas considerar a composição importante na história da música reverbera outras características, além do atonalismo. “O emprego da técnica do canto falado, o Sprechegesang, que não é entoado como no canto erudito, mas sim uma vocalização que se desenvolve entre o canto falado, também merece destaque”, aponta o diretor artístico do Camerata Aberta, Sérgio Kafejan. O grupo esteve, no mês de setembro, no Sesc Belenzinho para um concerto comemorativo da peça.
Origem teatral
A história que cerca o nascer da composição é conhecida. Originada de textos escritos pelo poeta belga Albert Giraud, em tradução alemã de Otto Erich Hartleben, veio à luz como resultado de uma encomenda feita pela atriz Albertine Zehme, que se apresentava em performances nos cabarés de Berlim. Desse modo, a composição não se direcionava nem à sala de concerto nem aos grandes teatros, não tendo como destinatária a voz de uma cantora, mas uma atriz, que se apresentou caracterizada na noite da estreia, em 16 de outubro de 1912, na pequena sala Choralion, em Berlim.
Diferentemente das casas de concerto, o cabaré exalava a intimidade e a proximidade entre o palco e o público. “Albertine já havia interpretado uma versão bastante simples desse ciclo de canções e fora aconselhada a procurar Schoenberg, um compositor ‘esquisito’, mas que parecia ser muito competente”, diz Yara. “Naquele ano, Schoenberg estava em Berlim, ensinando composição e estética no Conservatório Stern, e passava por um período difícil de angústia. Tudo indica que a criação do Pierrot teria sido um alento para seu estado depressivo.”
Cada peça foi escrita para uma determinada formação, que dificilmente se repete. Ora só com a flauta, ora só com o piano e violoncelo e outras que usam o conjunto inteiro, formado por flauta, clarinete, violino, violoncelo, piano e voz. Tal formação instrumental tornou-se uma referência do século 20, aparecendo como um conjunto de câmara inédito até então.
Estreia no Brasil
Na década de 1970, um grupo de professores da Universidade de São Paulo (USP) realizou a primeira apresentação da peça com músicos brasileiros no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Entre esses professores estava Amilcar Zani, docente do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade. Todo esse envolvimento com a obra de Schoenberg tornou-se um projeto, o projeto Vida e Arte na Coleção de Clara e Edward Steuermann, dedicado a estudar e disponibilizar a coleção do casal, que reuniu por décadas um acervo com cartas e demais objetos sobre figuras como Anton Webern (1883-1945) e Schoenberg.
Atualmente, os documentos reunidos encontram-se na Divisão de Música na Biblioteca do Congresso de Washington DC, nos Estados Unidos. A ideia é digitalizar o conteúdo e disponibilizá-lo gradualmente no site do projeto (www.projetosteuermann.usp.br), para que pesquisadores e estudantes conheçam as minúcias do trabalho do criador do atonalismo.
Edward Steuermann era pianista e compositor e conviveu com Schoenberg, que estava mais voltado para suas habilidades como pianista do que como compositor. O gosto e o entusiasmo de Steuermann em relação à música contemporânea, o entendimento da nova linguagem musical propiciada pela própria atividade, bem como a facilidade ao piano e o encantamento em relação à figura de Schoenberg, faziam dele o intérprete ideal da música de seu mestre. “Steuermann começou a apresentar as obras de Schoenberg em público. Ensinou a Albertine a parte do Sprechegesang do Pierrot Lunaire e tocou a parte do piano que a acompanhou na estreia da peça, provocando reações de surpresa e grande escândalo”, revela Zani, que tem contato direto com o acervo e, por consequência, com as memórias que envolvem esse episódio. “Ele também se empenhou na revisão da obra integral de Schoenberg, que foi publicada quatro anos após a sua morte.”
Relação com a Lua
Alçada à condição de clássico, Pierrot Lunaire é alvo de análises e impressões diversas, uma delas focada no personagem principal. O pierrô advém da Commedia dell’Arte, simbolizando o sujeito deslocado da sociedade, sonhador e lunático, devido à sua relação com a Lua. Kafejian arrisca uma interpretação: “Muitas pessoas enxergam nisso um retrato do artista daquele período e do próprio Schoenberg, como se ele quisesse encontrar o seu lugar no mundo”.
Schoenberg também era pintor e teórico musical, autor de harmonias e exercícios preliminares em contraponto. Estudiosos do período afirmam que depois de Pierrot Lunaire o compositor nunca repetiu a excelência em outra obra, marcando seu esgotamento criativo e tendo sua vida musical interrompida pela guerra (1914-1918). “A liberdade criativa do atonalismo tinha chegado a um beco, a ausência do sistema passou a ser um limitador para Schoenberg”, completa Kafejian.
Os ecos artísticos de Pierrot Lunaire, que chegou aos ouvidos e assombrou a mentalidade dos conservadores em sua audição, solidificaram as estruturas da música moderna, abrindo caminho para outras posturas e atitudes inovadoras, como as realizadas por seu aluno mais célebre, John Cage (1912-1992).
As implicações trazidas por Pierrot Lunaire e Schoenberg no contexto das artes ainda estão sendo desvendadas, mas algumas manifestações artísticas recentes podem ser relacionadas. “Poéticas narrativas multidirecionais, a exemplo do teatro catalão La Fura Dels Bals, que inovaram unindo música, dança, pirotecnia e interagindo com a plateia, ou as instalações da Arte Bruta – que reunia autores que produziam sem interferência de estilos oficiais e do mercado de arte – reverberam as propostas de fruição já colocadas em 1912”, completa Yara Caznok.
Em grande estilo
Camerata Aberta homenageia o compositor com apresentação da peça durante Festival de Música Nova
Para comemorar os 100 anos da peça Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg (1874-1951), o Sesc promoveu uma homenagem ao compositor austríaco no 46º Festival Música Nova Gilberto Mendes, realizado em setembro em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Ciências da Performance em Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Idealizado pelo compositor Gilberto Mendes nos anos de 1960 o festival põe em destaque a música erudita de vanguarda.
A apresentação ficou a cargo do Camerata Aberta, grupo criado em 2010 dedicado à música contemporânea. “Estamos dedicados a construir uma sonoridade, uma característica de interpretação”, explica o diretor artístico do Camerata Aberta, Sérgio Kafejan. “Já temos uma personalidade forte e própria dentro do cenário da música contemporânea.”
Sob a regência de Guillaume Bourgogne e a participação especial da soprano francesa Sylvie Robert e do tenor brasileiro Tiago Pinheiro, o grupo executou a peça considerada marco inaugural da música moderna nos dias 13, 14 e 16 de setembro, no Sesc Belenzinho. “O maestro Guillaume Bourgogne trabalha com a gente há muito tempo, é uma figura importante na história da camerata, seja na formação do grupo, seja no direcionamento musical”, acrescenta Kafejan. “A soprano Sylvie Robert, que já apresentou o Pierrot Lunaire com os principais músicos da Europa, entrou em contato conosco interessada em fazer um trabalho com a camerata.”
O selo Sesc também lançou recentemente o primeiro álbum gravado pelo Camerata, Espelho D’Água, que traz obras eruditas contemporâneas de artistas brasileiros e estrangeiros.
Roteiro musical
Obras que também fizeram história
1876 – O Anel dos Nibelungos (a tetralogia operística),
de Richard Wagner (1813-1883)
1903 – Jenufa, de Leos Janacek (1854-1928)
1905 – Salomé, de Richard Strauss (1864-1949)
1906 – Sinfonia de Câmara op. 9, de Schoenberg (1874-1951)
1911 – Castelo de Barbazul, de Bela Bartók (1881-19454)
1912 – Pierrot Lunaire, de Schoenberg (1874-1951)
1913 – Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky (1882-1971)
1917 a 1925 – La Valse, L’Enfat e les sortilèges,
de Maurice Ravel (1875-1937)
1922 – Wozzec, de Alban Berg (1885-1935)
1935 – Lulu, de Alban Berg
1941 – Music of Changes, de John Cage (1912-1992)
1943 – A Segunda Cantata, de Anton Webern, (1883-1945)
1952 – 4’33’’, de John Cage
1960 – Contatos, de Karlheinz Stockhausen (1928-2007)
1969 – Disco The World of Harry Partch,
de Harry Partch (1901-1974)