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Naturalmente revolucionária

Firme em suas convicções e atitudes, Nise da Silveira viveu para modificar os rumos da psiquiatria no Brasil e fora dele. Seria louvável se o protagonismo ficasse restrito à atuação médica, mas ela tangenciou o universo das artes, educação e política, além de atuar no campo da emancipação da mulher na primeira metade do século 20 – embora dispensasse o título de feminista.

Nascida na madrugada de 15 de fevereiro de 1905, em Maceió, Alagoas, era filha única de Maria Lídia e Faustino Magalhães da Silveira. No livro Nise: Arqueóloga dos Mares (Aeroplano Editora, 2009), do jornalista Bernardo Carneiro Horta, a biografia de Nise, a seu pedido, é apresentada de forma não linear. “Comentava que se algum dia escrevessem sobre ela, que não optassem por uma narrativa convencional. ‘Comece do meio, vá para o fim e depois volte para o início, ou prefiro que nem escreva’”, diz o autor.

Tal radicalismo convivia com sua personalidade humanista e um aspecto que muitas vezes ficava reservado aos amigos e aos alunos do Grupo de Estudos C. G. Jung, o senso de humor apurado. Quem conviveu com a doutora foi a artista plástica e coordenadora de atividades plásticas na instituição de reabilitação psiquiátrica Casa das Palmeiras e do Grupo de Estudos C. G. Jung, ambos localizados no Rio de Janeiro, Martha Pires Ferreira.

“Acompanhei a doutora por muitos anos e penso que o mais importante deixado por ela foi o arquivo dos trabalhos artísticos dos clientes (como se referia aos pacientes) para serem estudados em série”, recorda. “E também a valorização do não verbal aos doentes de transtornos psíquicos muito graves.”

Contribuições

No ano de 2012, o Museu de Imagens do Inconsciente, uma das instituições que a médica fundou, completou 60 anos. Além dela, outras três foram criações de Nise: a Casa das Palmeiras, o Grupo de Estudos C. G. Jung e a Sociedade de Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente (Samii).

O Museu é inaugurado em 1952, reunindo o material produzido nos ateliês de modelagem e pintura da Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), no Rio de Janeiro. Trata-se de um local destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios de modelagem e pintura do centro, valorizando-os como documentos que abriram novas possibilidades para a compreensão mais profunda do universo interior do esquizofrênico.

Segundo a arte terapeuta do Museu de Imagens do Inconsciente, Glória Chan, o museu é uma instituição viva e em atividade. “Na época da Nise era diferente, havia 2 mil internos, hoje recebemos as pessoas que vivem em suas casas, mas fazem terapia nos ateliês. Calculamos que anualmente sejam criadas 5 mil obras, que são guardadas na reserva técnica para serem objetos de estudo dos interessados.

É importante porque existe uma equipe que há 40 anos preserva toda a filosofia que ela fundou: o diretor do museu, Luiz Carlos Mello, que também foi assistente da doutora, e a coordenadora de pesquisa da instituição Gladys Schincariol. O trabalho da Nise sobrevive graças a essa equipe”, enfatiza Glória.

Em 1956, Nise funda a Casa das Palmeiras; em 1969 formaliza a criação do Centro de Estudos C. G. Jung; e em 1974 cria a Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente, com o objetivo de ajudar o museu homônimo.

Vida escrita em explosão

O nome da médica foi escolhido em homenagem à musa do poeta inconfidente Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). “Conta-se que a Nise do poeta realmente existiu e, assediada por ele, rebelou-se e o rejeitou. De fato, a vida de Nise se balizou entre sua originalidade e rebeldia. Além disso, sua mãe acreditava que o nome era um antídoto contra apelidos que viessem a colocar na filha”, relata Horta.

A originalidade pode ser demonstrada em um passo decisivo. Em 1920 é candidata ao vestibular da Faculdade de Medicina da Bahia, mas a idade exigida para o exame era 16 e a jovem ainda tinha 15. Portanto, auxiliada por parentes, falsifica a certidão de nascimento. A atitude que aparentava rebeldia foi justificada por Nise, em declaração registrada no livro de Horta: “Quem tratou de falsificar meu documento foi meu pai e alguns conhecidos. Era comum. Também faziam isso para que as moças pudessem casar”.

Em 1921, muda-se para Salvador e inicia os estudos. Um tempo depois, começa a viver com seu primo, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, em uma relação que dura até a morte do médico, em 1986. “Antes, Nise era esposa do doutor Mário, mas a partir da década de 1970 ele passou a ser o marido da doutora”, comenta Horta.

Depois dos estudos, a morte do pai, em 1927, faz com que a doutora se mude para o Rio de Janeiro, indo morar primeiro no Catete e, posteriormente, no bairro de Santa Teresa, onde conhece o poeta Manuel Bandeira (1886-1968).

Sua fase carioca coincide com a aprovação no concurso para psiquiatra da antiga Assistência a Psicopatas e Profilaxia. Em 1933, especializa-se em psiquiatria e presta residência no Hospital Nacional de Alienados (Hospício da Praia Vermelha).

Ao fim da década de 1920 adere ao ateísmo e abraça o marxismo, participando de reuniões do partido comunista. Após um tempo afasta-se da militância, por conta de sua aprovação no concurso público. Na época, o governo de Getúlio Vargas (1882-1954) foi responsável pela detenção de vários civis, entre eles a médica, que, em 1936, é encaminhada para a sala 4 da prisão Frei Caneca. “Dividiu cela com Olga Benário (1908-1942), e foi a médica que confirmou a gravidez da militante junto à diretoria do presídio”, pontua Horta.

A ala masculina também estava repleta de figuras célebres, como o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) e o pintor Di Cavalcanti (1897-1976). Nise ficou presa por 14 meses sem processo formal de acusação. Após a reclusão, teve de viver no ostracismo até ser reintegrada ao serviço público, em 1944, pelo mesmo governo que a prendeu. Passa a trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II, onde se recusa a usar o recurso do choque elétrico como tratamento.

Tendo em vista a negativa, é transferida para a Seção Terapêutica Ocupacional do hospital. Em 1946 inaugura o ateliê de pintura e promove a primeira mostra com a criação dos clientes. As atividades artísticas tinham como objetivo privilegiar a comunicação. “Assim ela percebeu que pessoas em estado catatônico ou muito agitadas mudavam o comportamento. E nesse caminho, da manifestação dos conteúdos psíquicos através de pinturas e esculturas, ela conduz a obra e descobre seu método”, detalha Horta.

Martha Pires Ferreira teve a oportunidade de atuar nos ateliês acompanhando os casos clínicos como voluntária. E a Casa das Palmeiras foi criada para evitar reinternações dando grande relevância ao não verbal e à expressão corporal. “Era uma ponte entre a vida pessoal e o mundo. Como ela dizia, a Casa das Palmeiras era um pequeno território livre.”

Conversas com Jung

Essas experiências se tornaram a ponte entre Nise e o psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica Carl Gustav Jung (1875-1961). Nise enviou carta ao pesquisador em 1954, com fotografias de mandalas feitas pelos clientes do Centro Psiquiátrico Pedro II. Logo depois, recebeu resposta. No mesmo ano, as obras foram apresentadas na Exposição de Artes Primitivas e Modernas Brasileiras, no Museu de Etnografia de Neuchâtel, na Suíça. Em 1957 encontrou-se pessoalmente com o Jung, na Suíça, onde estudaram psicologia analítica. Entre 1961 e 1962 participou de outros estudos no Instituto C. G. Jung de Zurique. A experiência culminou na publicação do livro Jung, Vida e Obra, no ano de 1968 (Paz e Terra, 2007).

A trajetória incomum e farta de realizações é inspiração para a peça Nise da Silveira – Guerreira da Luz, que esteve em cartaz nos meses de novembro e dezembro de 2012 no Sesc Santana. “Conheci a doutora quando era pequena e a peça é uma junção tanto de suas histórias quanto das minha e do meu pai, Raffaele Infante, que também contribuiu ao avanço da psiquiatria através do teatro”, explica a atriz Mariana Terra.

Nise da Silveira morreu em 1999 com 94 anos. Inovadora, marcou época e fez inúmeras contribuições no campo da psiquiatria, sem medo de mudar de opinião. Tanto que no fim da vida retomou o catolicismo, um escândalo no meio intelectual. “Ela via o ateísmo como um equívoco, embora continuasse admirando o marxismo, mas no final decidiu viver ao modo de São Francisco de Assis”, diz Horta.

Martha reitera o valor do trabalho realizado pela médica, em parte registrado em sua produção textual. “É importante que as obras sejam reeditadas, pois as pessoas leem pouco o que ela escreveu. Os textos deixados são de grande sabedoria.”

Tributo com arte

Espetáculo reúne diferentes formas de expressão para retratar a trajetória da médica Nise da Silveira

“Além de exigir bom preparo técnico, é um trabalho que toca o coração das pessoas”, diz Mariana Terra, atriz da peça Nise da Silveira – Guerreira da Luz, que permeia as diferentes fases da vida da doutora. O espetáculo esteve em cartaz nos meses de novembro e dezembro de 2012 no Sesc Santana.

Dividindo o palco com Mariana, a bailarina Ana Botafogo, responsável pela coreografia, e os músicos João Carlos Assis Brasil no piano e Caito Marcondes na percussão. Dirigido por Daniel Lobo, o espaço de encenação é completado por participações multimídia do poeta Ferreira Gullar, do diretor José Celso Martinez Corrêa e do ator Carlos Vereza, representando a voz do inconsciente. O aparato ajuda a retratar a trajetória da mulher que redesenhou a teoria e a prática psiquiátrica.

Para o técnico de programação responsável pelas Linguagens de Teatro e Sustentabilidade da unidade, Ricardo Tacioli, a peça reforça a importância das artes para revelar segredos e criar diálogos. Em sua opinião, a trilha sonora foi um dos fios condutores do espetáculo. “Ao mesmo tempo em que se conecta com diferentes períodos, a música serve de terreno para as evoluções dos pacientes da doutora que inovou no tratamento da esquizofrenia”, completa.

“Meus primeiros anos  de vida foram muito selvagens. Por isso, ainda sou um pouco selvagem... Talvez muito.  Às vezes sou uma guerreira. Acho que fui mais guerreira do que qualquer outra coisa.”


“Quem sabe o que acontece no imenso mar do inconsciente? Quem disser que sabe, este sim é louco.”


“Ao lidar com a loucura, não penso em atacar uma doença, mas em compreender indivíduos que tropeçam no caminho de volta à realidade cotidiana. No tratamento da esquizofrenia, evitem o termo paciente, pois ele sugere que o doente apresenta uma atitude de passividade. No entanto, o doente precisa ser ativo para melhorar. Por isso, em vez de paciente digam: pessoas.”

“Falando do meu trabalho, há quem diga: ‘Esta é uma psiquiatria humanitária’. Sugiro que retirem a psiquiatria e deixem a humanitária.”