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Monarca do samba
É no subúrbio carioca, no bairro Cavalcante, que nasce, em 1933, um homem do samba: Hildemar Diniz, ou melhor, Monarco. O apelido, apesar de nada ter a ver com a monarquia, sugere a grandeza de um verdadeiro rei da música popular brasileira. É no ambiente do homem simples e trabalhador, primeiro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e depois em Oswaldo Cruz, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que Monarco passa a infância e adolescência, em proximidade com o samba e com a pobreza.
É também no bairro de Oswaldo Cruz que o compositor tem os primeiros contatos com a escola de samba à qual seria fiel até hoje, a Portela, tornando-se um dos membros da velha guarda mais popular do país. “A Portela é minha vida, minha carreira e eu a idolatro nas minhas músicas”, afirma. Seu primeiro disco solo, que revelaria um dos compositores de samba mais gravados do país, além do intérprete aclamado, foi lançado em 1976, com obras marcantes como Lenço (com Francisco Santana) e O Quitandeiro (com Paulo da Portela).
Entre seus grandes sucessos estão Vida de Rainha, Passado de Glória, Coração em Desalinho, Tudo Menos Amor, entre outros clássicos, gravados por cantores como Martinho da Vila, Clara Nunes, João Nogueira, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho. Em depoimento à Revista E, o compositor relembra momentos marcantes da carreira e reflete emocionado sobre sua relação com o samba, além de recitar constantemente trechos de suas letras. A seguir, os principais trechos.
primeiros passos
Eu praticamente já nasci em cordão de samba, porque, desde menino, em Nova Iguaçu, já brincava nos blocos, fazia umas “bobagenzinhas”, umas riminhas pobres, mas já tinha um dom que despertava para esse lado. Depois, fui morar em Oswaldo Cruz e me aperfeiçoei vendo aqueles bambas, a turma toda, o Manacéa [Manacé José de Andrade, sambista, 1921-1995], o pessoal discípulo do Paulo da Portela [1901-?1949], entre outros. Então, ali me aperfeiçoei e comecei a compor para a Portela. E deu certo, virei parceiro daqueles compositores antigos, o Chico Santana [1911-1988], o Alvaiade [Alberto Lonato, 1909-1998], e eles começaram a falar que havia um garoto aí que era bom. Assim, tomei gosto por aquilo. Foram os meus primeiros passos na Portela.
criação
Muita influência vem do meu pai. Ele não tinha a musicalidade dentro dele, mas rimava muito bem. Fazia poesias, sonetos e quando ele faleceu deixou, numa caixinha de sapato, vários versinhos que eu guardo até hoje. Então, essa parte de rimar tenho certeza de que é influência de meu velho pai. Já a musicalidade eu tinha e ele não. Realmente, nasci com o dom de compor.
Tenho mais de 200 músicas compostas, umas 150 gravadas, com grandes intérpretes, como Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro, João Nogueira, Clara Nunes. Eu não sei explicar como é o meu processo de criação, porque a música nasce espontânea. Eu não visualizo nada antes; quando vejo já nasceu, em um momento assim inspirado. Às vezes, não gasto nem papel nem lápis.
Acho que a minha inspiração são os meus mestres, as referências, como o Alcides da Portela [viveu de 1909 a 1987], Chico Santana [viveu de 1911 a 1988], Alvaiade [viveu de 1909 a 1998], Manacéa [viveu de 1921 a 1995], Candeia [viveu de 1935 a 1978], Cartola [viveu de 1908 a 1980], Carlos Cachaça [viveu de 1902 a 1999], Aniceto [viveu de 1912 a 1993]. Essas foram as pessoas com quem eu sentava para conversar e aprendia com elas.
o compositor
Aos 11 anos, em Nova Iguaçu, eu já tinha feito uma tal de A Liga da Defesa Nacional, que nem sabia o que queria dizer. Eu andava com dois colegas, um chamava Luiz e o outro era um crioulinho que pedia esmola no trem. Aí eu fiz: “A Liga da Defesa Nacional vai contratar o crioulinho e o Sabu, para cantar lá no Rio Grande do Sul. Também vai contratar Monarco e Luiz, a garotada vai pedir bis”.
Essa foi a primeira paródia que fiz. Quando fui para Oswaldo Cruz, com 16 anos, escrevi um samba e o Milton da Portela gostou. Então, fui lá para o terreiro, cantei, o pessoal gostou e acabou sendo o samba de esquenta da Portela, se não me engano, em 1952, aquele samba que toca antes do desfile, para aquecer o gogó das baianas. Já o primeiro samba que fiz na Portela se chamava Retumbante Vitória, que mais tarde o João Nogueira gravou e trocou o nome para Passado da Portela, e foi meu primeiro samba realmente de sucesso, oficial.
O samba que me colocou de vez no meio do pessoal e que fez começarem a me chamar para gravar foi com o Martinho da Vila, Tudo Menos Amor, em 1970. O Martinho gravou: “Tudo que quiseres te darei, oh flor, menos meu amor”. Foi esse samba que me deu credibilidade. Agora, tem também o Coração em Desalinho, que entrou na novela: “Numa estrada dessa vida / Eu te conheci / Oh, Flor!”. Também foi um sucesso grande o Vai Vadiar. Eu gosto de todos os meus sambas; pena que alguns fizeram sucesso, outros ficaram, não fizeram, mas eu gosto deles todos.
portela
A Portela é minha vida, minha carreira e eu a idolatro nas minhas músicas. Em muitos sambas, eu falo do Paulo da Portela e até hoje eu estou com o meu baú ainda cheio de músicas que falam da Portela. Muitas eu nem gravei, mas vou fazer, se Deus quiser, um disco de músicas inéditas, quando eu fizer 80 anos; é meu sonho. Vai se chamar O Baú do Monarco.
Então, eu estou sempre falando da Portela, saio na escola direto e, hoje, sou um dos componentes mais antigos. Já estou com 78 anos e, enquanto Deus me deixar, eu vou ficando aí. O samba não é um amor parecido com o do futebol. É um amor verdadeiro, mas não é fanatismo. Nós respeitamos as escolas irmãs. Eu me dou bem com o pessoal da Mangueira, sempre ia lá para conversar com o Cartola, com o Carlos Cachaça, aquela turma toda.
Não tem essa rivalidade toda do futebol e acho que as torcidas deviam se mirar no samba, mesmo porque escola de samba com essa coisa de torcida organizada nem dá muito certo. O samba é mais democrático. O Paulo da Portela estudava com o Cartola. Até hoje tenho amizade com o Neguinho da Beija-Flor. As escolas são parceiras umas das outras, fazem samba juntas, existe uma solidariedade muito bonita.
malandragem
O samba sempre foi a voz do trabalhador. Quem trabalha tem razão. Há anos, o pessoal falava muito na malandragem, o samba não era muito bem-visto, diziam que nas escolas de samba só tinha marginal, era o samba de morro, só se falava em malandragem. “Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o que será / pois vivo na malandragem / e vida melhor não há.” Aí, hoje, passaram a desprezar um pouco essa coisa da malandragem. Vem o Ataulfo Alves e o Wilson Batista: “Quem trabalha / é quem tem razão / eu digo / e não tenho medo / de errar”. É por aí. Então, teve algo que incentivou a falar no trabalho.
paixão
O samba representa tudo na minha vida. É ele que paga as minhas contas, é com ele que eu faço as minhas queixas quando estou chateado. As ilusões amorosas que eu tive na minha vida viraram samba. Ele é tudo, sem o samba eu não sou ninguém. Se eu estou onde estou, respeitado no meio, agradeço ao meu samba. É ele que me incentiva, me dá força para viver no alto dos meus 78 anos. Eu me sinto um garoto quando subo no palco para cantar um samba. Quando faço um samba novo, canto para minha mulher, para os meus filhos e continuo produzindo, porque ele é a minha válvula de escape.
“O samba representa tudo na minha vida. (...) É ele que me incentiva, me dá força para viver no alto dos meus 78 anos. Eu me sinto um garoto quando subo no palco para cantar”