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Humor sutil
Cineasta com um invejável currículo esportista. Sim, antes de se dedicar à produção de filmes, Jacques Tati, nascido em 1907, destacava-se no rúgbi, no futebol e no tênis, modalidades que praticava no clube Racing, em Paris. Seus pais eram de nacionalidades diferentes, a mãe francesa e o pai russo. Aliás, Tati é a redução de Tatischeff, seu verdadeiro sobrenome. Considerado um cineasta maduro, lançou seu primeiro longa-metragem, Carrossel da Esperança (Jour de Fête), em 1949.
Homem alto e com consciência corporal, dessincronizou aptidões em suas comédias, representando personagens desajeitados e com movimentos atrapalhados. “No início da carreira fazia gags cômicas com elementos que conhecia: o esporte e o corpo”, afirma o pesquisador da história do cinema Luis Carlos Pavan. “Depois da 2ª Guerra (1939-1945) e do tempo que fica fora do cinema, pois esteve combatendo no front, isso muda. Volta com um olhar mais aguçado para a relação do indivíduo com o entorno, as situações que envolvem pessoas, lugares e coisas.”
Local de nascimento do cineasta, a França é também berço da Nouvelle Vague, um dos movimentos cinematográficos mais importantes do cinema Sensível, questionador e visionário, o cineasta Jacques Tati produziu filmes memoráveis, levando para as telas a essência do homem moderno moderno, que chegou ao auge durante os anos de 1960.
Apesar de ser contemporâneo à Nouvelle Vague, Tati seguiu outra direção no desenvolvimento de sua carreira, dedicando-se à comédia. Quando essa nova tendência começa a despontar, Tati, em 1958, lança Meu Tio, vencedor de melhor produção estrangeira no Oscar de 1959. Para a pesquisadora e mestre em Comunicação Careimi Ludwig Assmann, “a Nouvelle Vague ficou
mais conhecida como movimento artístico por ter registrado em artigos toda a sua trajetória, o que infelizmente não aconteceu com a carreira longa e profunda de Tati, que fez filmes desde 1932”. Vale lembrar que o primeiro cômico do cinema foi francês, Max Linder (1883-1925), “pai intelectual de todos os outros que nasceram pelo cinema mundial, como Charlie Chaplin (1889-1977) e o próprio Tati,” acrescenta Pavan.
Em busca da superação Jacques Tati era perfeccionista. Extrapolava as possibilidades em seus projetos, chegando a investir recursos financeiros próprios para concretizá-los. Entre os filmes lançados ao longo de sua trajetória, estão Carrossel da Esperança (1949), As Férias do Sr. Hulot (1953), Meu Tio (1958), Playtime (1967), Trafic (1971) e Parade (1973). Mas seus últimos filmes tiveram alto custo e baixo retorno comercial. “Infelizmente, ele não teve boa percepção da relação investimento/lucro na fase final da sua carreira, ou talvez não quisesse ceder no conteúdo artístico da sua obra por nada”, pondera Careimi. Contudo, as adversidades não abalaram o que fora construído até então.
Independentemente dos altos e baixos, a obra de Tati, morto em 1982, vítima de embolia pulmonar, provoca reflexos interessantes.
Na contramão do que normalmente acontece no cinema, em que livros inspiram a criação dos roteiros audiovisuais, o filme Meu Tio
deu origem a um livro homônimo do escritor Jean-Claude Carrière, ilustrado por Pierre Étaix (Cosac Naify, 2009). Ambos guardam
relações pessoais com Tati. O primeiro conheceu Tati e seu então assistente, Pierre Étaix, nos anos de 1960. Este havia sido apresentado ao diretor em 1954 e havia se tornado desenhista de seus cenários, além da participação conclusiva em Meu tio, no qual aparece como diretor-assistente.
Em declaração escrita na quarta capa da publicação, o cineasta Cao Hamburger relata a sua experiência em assistir ao filme pela
primeira vez: “Além das cenas antológicas de humor refinado, o que mais me impressionou foi o tempo e o silêncio... O tempo/silêncio provoca uma sensação de espaço a ser preenchido pelo espectador. Espaço para pensar, sentir, rir e se emocionar”.
Tal relação de som e silêncio é uma marca nas construções narrativas de Tati. E, de acordo com Pavan, o som passa a ser o personagem coadjuvante das gags criadas. Por exemplo, o vento que adentra a sala e perturba a ordem estabelecida no hotel do filme As Férias do Sr. Hulot. “Vale lembrar que os elementos sonoros são importantes em sua comédia, mas não o texto ou os diálogos. Tati balbucia em cena, enquanto os outros atores falam, sem nenhuma importância para a narrativa. Os sons, barulhos
e rangidos, a música, estes, sim, são seus colegas de cena”, analisa.
Homem moderno
A contemporaneidade de Tati pode ser percebida na abordagem crítica dos temas. O seu principal personagem, Sr. Hulot, lançado
quando o diretor estava há mais de 20 anos em atividade, é considerado fruto da maturidade como cômico e observador da sociedade europeia dos anos de 1950 em diante. “No início da carreira criou o personagem do carteiro, presente em seus primeiros curtas e no longa Carrossel da Esperança”, diz Careimi. “Isso de alguma forma limitava seu poder criativo para cenas que envolvessem o passar do tempo, mas Hulot pode ser qualquer um de nós.”
É uma paródia do homem moderno. Cheio de coisas nas mãos, sempre agitado e apressado, com muitos compromissos e poucas realizações, sensível e ingênuo, desligado e desconcentrado. “Se estivesse vivo, Tati faria cenas incríveis com todos
os gadgets eletrônicos que carregamos conosco e com a forma como vivemos desconectados uns dos outros na multidão e ironicamente conectados em rede, com dezenas de amigos virtuais”, resume Pavan.
Outro exemplo da visão crítica é o filme O Mágico (Sylvian Chomet, 2010), baseado em roteiro inacabado de Tati. A história de um ilusionista alto, magro, que praticava sua arte em shows de magia para plateias quase inexistentes, requisitando uma sensibilidade aparentemente distante e sem espaço no contexto futuro que se moldava.
“No fundo, seus filmes, com sua ordem visual e geometria, provocam a reflexão sobre que ordem é essa”, observa Pavan. “Sua comédia é provocadora, forçando-nos a rever os conceitos de ordem, poder, hierarquia, lazer, trabalho, relacionamentos,
espaço, identidade.”
Para ver e rever
Um convite para quem tem a intenção de mergulhar nas comédias sensíveis do cineasta, ao mesmo tempo, pontuadas por questionamentos e reflexões.
Carrosel da Esperança (1949) – Nesse filme, Tati vive o carteiro, personagem dos seus curta-metragens. Aqui vemos o quanto sua comicidade está conectada aos movimentos corporais, ordenados ou desordenados, em relação aos objetos de cena, principalmente a bicicleta e a bolsa. Se a função do cômico é perturbar a ordem, o carteiro de Tati é o mensageiro perfeito para que ela se instaure.
As Férias do Sr. Hulot (1953) – Pela primeira vez teremos em cena o Monsieur Hulot, cidadão moderno da cidade que vai passar férias no sul da França. Os efeitos sonoros, ruídos de cena e a música estão em primeiro plano, contracenando com o cômico e articulando o que viriam a ser cenas que se tornaram clássicas na história do cinema mundial. Imperdível a aparição do “tubarão”, perturbando a paz dos banhistas.
Playtime (1967) – Reflexão sobre a relação do indivíduo moderno e urbano com os lugares, pessoas e coisas. A ordem e a forma como organizamos é mesmo viável para a manutenção da sanidade nos grandes centros urbanos? Filme que antecipa questões sobre a viabilidade da forma como se vive e trabalha nas grandes cidades do mundo. Considerado um dos filmes franceses mais caros do período, na época orçado em 19 milhões de francos.
De Corpo e alma
Exibição de filmes e curso relembra obra cinematográfica icônica
Em parceria com a Embaixada da França e Cultures France (órgão ligado ao Ministério da Cultura e da Comunicação para promover a Cultura Francesa no mundo), o Sesc Belenzinho promoveu, de 19 de março a 2 de abril, a mostra Tati por Inteiro, com exibição de todos os seus títulos, como A Escola dos Carteiros (1947) e Meu Tio (1956), e curso sobre o cineasta, com curadoria dos pesquisadores Luis Carlos Pavan e Careimi Ludwig Assmann.
Itinerante, o evento já passou pelo Rio de Janeiro em 2012 e deve circular por várias regiões do país. Como descreve a técnica do Núcleo de Imagem e Palavra da unidade, Cátia Leandro, a intenção foi promover a cinematografia do diretor: “Também aproveitamos a oportunidade para oferecer o curso sobre a história da comédia no cinema francês, que aconteceu antes de cada exibição. Assim, ampliamos o debate e a reflexão acerca da produção de Tati, que ainda é desconhecida por grande parte do público”. A programação falou aos cinéfilos e interessados em geral, que desejavamexpandir as fronteiras do cinema francês, tão marcadamente lembrado pelo movimento da Nouvelle Vague. Ainda segundo Cátia, “a exibição dos filmes foi organizada de modo cronológico, sendo possível visualizar as transformações promovidas por Tati e como ele orquestrava cada detalhe”.