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Estado e a liberdade individual

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Estado e a liberdade individual

A liberdade individual, valor que desde a Revolução Francesa ganha importância, é frequentemente confrontada pelos interesses públicos, defendidos pelo Estado democrático. Quais seriam os limites da intervenção do Estado no direito individual? O professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Eduardo Raposo e o advogado Pedro Dutra analisam o assunto.


Liberdade! Liberdade! Abre as Asas sobre Nós
por Eduardo Raposo


A Inglaterra do século 17 foi palco de uma disputa que definiu seu destino como nação moderna e também influenciou todo o mundo ocidental. Nascia, a partir de então, a noção de liberdade, que se opunha às pretensões de um Poder Executivo embalado pela ideia do absolutismo, então em voga na Europa.
A Inglaterra encontrava-se dividida e atormentada por lutas e querelas entre protestantes, católicos, liberais e absolutistas. Essa batalha – que se desenvolveu nos campos político, religioso e militar – durou décadas, tendo sido finalmente vencida pelos liberais-protestantes na célebre Revolução Gloriosa de 1688.
Nesse contexto de disputa foram escritos dois dos mais importantes livros sobre filosofia política, que até hoje são paradigmas para distinguirmos países governados por Estados fortes (O Leviatã, de Thomas Hobbes) de países onde impera a força da sociedade e do mercado (Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Lock).
A ideia de liberdade não é, certamente, monopólio da corrente liberal, mas o fato é que essa ideia, como campo protegido das ações dos Estados absolutistas, que então se multiplicavam na Europa, tem repercussões até os dias de hoje.
A esse respeito, Benjamin Constant escreveu um célebre artigo chamado “Da Liberdade dos Antigos comparada à dos Modernos”, onde estabelece importantes diferenças entre as duas concepções de liberdade anunciadas em seu título. Constant nos diz que “entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos os seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos os seus movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destitui, condena, despoja, exila, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores”.
Para Benjamin Constant, “o perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias individuais”. E o perigo da liberdade moderna “está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político”. Essas dimensões, que são tipos ideais não encontrados em estado puro na realidade social, marcam duas posições clássicas na discussão sobre liberdade e ambas devem ser levadas em consideração em seus alcances e consequências.
No Brasil, colonizado por Portugal, a noção de liberdade surgiu timidamente, só incorporando mais claramente sua dimensão moderna (restrição ao poder absoluto) no século 19, um período de avanço do liberalismo e das forças da sociedade e do mercado em todo o mundo. Com o desenvolvimento do pensamento liberal, os grandes proprietários rurais adquiriram mais poder, diminuindo consequentemente o poder do centro político, da monarquia. A esse fato somaram-se a Constituição de 1824, que ampliou os direitos individuais e políticos no país, o Código de Processo Penal (1832) e o Ato Adicional (1834), que confirmaram a autonomia local, fortalecendo o poder privado.
Com a abdicação de D. Pedro I, a Regência descentraliza as forças políticas em direção aos municípios e províncias. O Liberalismo político brasileiro se realiza associando-se a essa descentralização, que coincide com os interesses de autonomia dos senhores de terra, defendendo a livre concorrência e se opondo também ao excesso da intervenção estatal na sociedade e no mercado. Porém, com a renúncia do Regente Feijó do Ministério da Justiça – um dos fundadores do Partido Liberal – termina esse período de avanço do Liberalismo. O primeiro passo da reação centralizadora foi a Lei de Interpretação do Ato Adicional, que privilegiou o Legislativo Nacional e fez com que as assembleias provinciais perdessem terreno.
Com a abolição da escravatura, em 1888, e a Proclamação da República, em 1889, as ideias liberais, em voga pelo mundo, voltam a prosperar no Brasil. Nesse final de século, já passam a conviver em terras brasileiras ideias e instituições do mundo colonial ibérico, entrelaçadas a ideias e instituições provenientes dos países que foram palco de revoluções burguesas e de cismas protestantes.
A respeito da presença de ícones dessa vertente civilizatória nas terras brasileiras, é interessante lembrar que livros como O Contrato Social, de Jean Jacques Rousseau, uma das principais inspirações da Revolução Francesa, circulavam amplamente nas mãos dos inconfidentes mineiros, que conspiravam exatamente pela independência brasileira de Portugal. Na verdade, não só a Inconfidência Mineira, mas a maior parte dos movimentos revolucionários do século 19, como a Conjuração Baiana e a Revolução dos Padres, foi influenciada pelo ideário de liberdade e igualdade da Revolução Francesa. Também, quando foi instituída a Constituição de 1891, após a proclamação da República brasileira, houve forte influência do constitucionalismo norte-americano, sobretudo quanto à forma republicana de governo e do Estado federalista aqui implantados.
Do ponto de vista econômico, em todo esse período manifestava-se um Brasil ainda essencialmente agrário e exportador, onde se via um mercado que era ativado pela demanda externa, criando dependência e atraso. Com a decadência do ciclo do açúcar, as oligarquias do Nordeste perdem parte de sua importância política no país. ¿Os cafeicultores do centro-sul iniciam então novo período da economia nacional, promovendo uma acumulação de capital que será a base para o processo de industrialização e urbanização do país. Somente a partir dos anos de 1930, com a desorganização da economia mundial em razão da primeira Guerra Mundial e do crack da Bolsa de Nova York, é que a economia brasileira passa a produzir não apenas para exportação, mas também para o mercado interno. Surge, a partir de então, uma burguesia e um proletariado mais expressivos. O setor de serviços também desenvolve-se, com a formação de profissionais liberais e de burocracias estatais.
Nesse ciclo, que se estendera a partir da década de 1930, o Estado surgiu como o principal articulador do desenvolvimento econômico do país. Em versões tanto democrática (de 1945 a 1964 e, posteriormente, a partir do final do primeiro mandato do presidente Lula) quanto autoritária (durante os governos militares de Costa e Silva a Figueiredo), o Estado foi, de fato, o principal agente do crescimento da economia nacional.
Porém, a partir da crise dos anos de 1970-1980, que corresponde no Brasil ao final dos governos militares, a pauta liberal passa, novamente, a orientar as políticas públicas a serem adotadas na área econômica, situação que vigorou do governo Sarney até os três primeiros anos do primeiro mandato do governo Lula. Nesse longo período, os liberais lutaram contra a excessiva intervenção do Estado na economia, combatendo o que chamavam de populismo econômico, defendendo o equilíbrio orçamentário, políticas fiscais responsáveis e políticas monetárias como meio de evitar processos inflacionários e desajustes econômicos.
Enfim, Mercado e Estado estiveram presentes, alternando protagonismos, em todo esse período da modernidade brasileira inaugurado nos anos de 1930. As concepções de liberdade dos antigos e dos modernos, nos termos de Benjamin Constant, estiveram presentes se alternando, se confrontando e se complementando na construção do Brasil moderno.
Hoje vivemos o mais longo e ininterrupto período de democracia da história de nossa República. As instituições democráticas se fortaleceram e com elas a sociedade pode caminhar conjugando preocupações relativas tanto ao poder social quanto aos direitos e garantias individuais, apontando para um país onde possa haver justiça social, democracia política e desenvolvimento econômico.

Eduardo Raposo é professor e pesquisador do ¿Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia ¿Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)

“As instituições democráticas se fortaleceram e com elas a sociedade pode caminhar conjugando preocupações relativas tanto ao poder social quanto aos direitos e garantias individuais”


Liberdade individual  e seus limites
por Pedro Dutra


Liberdade e indivíduo nem sempre andam juntos. Embora os direitos individuais tenham ganhado a sua formulação moderna na sequência da Revolução Francesa de 1789, quando a Declaração dos Direitos do Homem estipulou as garantias e prerrogativas a proteger o indivíduo do Estado, historicamente o seu maior opressor, essas normas não se afirmaram de imediato.
Ao contrário, pode-se dizer que a política nos dois últimos séculos é marcada, precisamente, pela tensão entre a liberdade individual e as prerrogativas do Estado, e o regime democrático acha a sua melhor mensuração no respeito que exibe às garantias individuais, legalmente estipuladas e cumpridas.
A liberdade absoluta não acha lugar na vida em sociedade, senão na vida primitiva, onde os indivíduos viviam isolados uns dos outros. A vida sedentária, que se afirmou a partir do domínio da cultura de alimentos e assim determinou a reunião e nela a convivência de indivíduos de outros grupos, evidenciou que a liberdade individual tem a sua limitação em igual liberdade exercida pelos demais indivíduos.
A organização da sociedade, nas diferentes formas estatais que tomou, ergueu o Estado como titular dos meios, inclusive coercitivos, e viu, entre as primeiras medidas a tomar, a preceituação da liberdade individual. Isto é, fixar e fazer cumprir os limites aceitáveis nos quais cada indivíduo é livre para determinar as suas próprias ações. Essa liberdade, maior no círculo íntimo do indivíduo, desdobra-se pelos diferentes planos da vida social: político, cultural etc. Assim, é livre o indivíduo para determinar não apenas as suas escolhas pessoais, mas também aquelas próprias à vida social – a cidade, o país – na qual se inscreve.
Esquematicamente, pode-se contrapor a liberdade cumprida no plano individual, no círculo imediato da existência do indivíduo, ao interesse público, que o estado democrático privilegia em relação à liberdade individual. Isso porque o interesse público nada mais é do que o interesse transindividualizado, ou seja, o conjunto de interesses individuais que foram continuamente se alinhando até consistirem, pela sua dimensão, o interesse público, que, na verdade, é o interesse de quase toda a sociedade. Exemplificando, o estado democrático não pode permitir a instalação e a operação de um estabelecimento comercial que ponha em risco a segurança pública, mesmo que seja em lei assegurada a liberdade de empreender a seus donos.
Esse conflito, entre liberdade individual e a defesa do interesse público, é próprio do regime democrático, assim como nele o interesse do Estado é o interesse público e o seu dever é promovê-lo. No regime democrático, não pode o Estado defender o interesse do governo, do partido, ou partidos políticos que o apoiem, e, muito menos, o interesse dos homens que dirigem o partido, ou ainda o interesse de corporações.
Por essa razão, o estado democrático exige a atenção de todos os indivíduos, a crítica deles expressa pelo processo eleitoral livre, e manifestada no entrechoque de opiniões e fatos divulgados pela imprensa. Não admira que haja tantas imperfeições nesse regime. Porém, essas imperfeições são largamente compensadas, precisamente pelo fato de a liberdade individual ser protegida por leis que lhe definam claramente as suas prerrogativas.
Talvez a melhor síntese desse regime em tempos modernos tenha sido feita por Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, que disse não ser a democracia um bom regime, porém ainda não se havia inventado outro melhor.

Pedro Dutra é advogado

“(...) o interesse público nada mais é do que o interesse transindividualizado, ou seja, o conjunto de interesses individuais que foram continuamente se alinhando até consistirem, pela sua dimensão, o interesse público