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Caíto Marcondes

Crédito: Leila Fugii
Crédito: Leila Fugii


O percussionista e compositor fala sobre a busca por novas sonoridades e as dificuldades enfrentadas por quem faz música instrumental hoje


O músico Caíto Marcondes lançou, em junho, o DVD Brazilian Contemporary Music (Selo Sesc, 2014), gravado ao vivo no Lincoln Center, em Nova York. O percussionista começou a estudar piano aos 8 anos, passando depois para o violão, a bateria e a percussão sinfônica. Mais tarde, estudou composição com Hans Joachin Koellreuter e harmonia tradicional e contraponto com Mário Ficarelli. Além disso, integrou a Orquestra Popular de Câmara, uma aproximação dos instrumentos da música urbana com o som rural da viola caipira.

Na entrevista a seguir, Caíto fala sobre os desafios enfrentados por quem faz música instrumental no Brasil hoje. “O percussionista brasileiro geralmente não é especialista em uma coisa só e toca pandeiro, caxixi, reco-reco e cuíca, além da bateria”, explica. “Então se pode falar em uma percussão brasileira, até porque, se você percorrer o Brasil de Norte a Sul, você vai encontrar uma infinidade de instrumentos de percussão e de festas populares muito particulares.”


Ainda faz sentido nós falarmos hoje, com a globalização, em uma percussão brasileira?
Sim. O Brasil é pródigo em percussão e exporta muitos percussionistas. Nós temos muitas linhas de percussão, como Airto Moreira, Naná Vasconcelos, Dom Um Romão, e elas são muito valorizadas pela riqueza e variedade que têm. O percussionista brasileiro geralmente não é especialista em uma coisa só e toca pandeiro, caxixi, reco-reco e cuíca, além da bateria. Então se pode falar em uma percussão brasileira, até porque, se você percorrer o Brasil de Norte a Sul, você vai encontrar uma infinidade de instrumentos de percussão e de festas populares muito particulares. Desde o pandeirão, passando pela zabumba, as escolas de samba e por aí vai. Os rituais e festas populares brasileiras estão muito calcados no ritmo.

Você trabalhou com Hermeto Pascoal, um músico extremamente criativo na desconstrução dos instrumentos e no uso de objetos como panelas e canos de metal. Quanto a essa variedade de instrumentos de percussão, você diria que hoje o percussionista busca sonoridades diferentes?
O percussionista hoje é um pesquisador sonoro. Às vezes, ele nem usa instrumentos de percussão de fato, mas sim de sopro, como tubos de PVC. Existe essa movimentação. Eu comecei aprendendo piano, fui para o violão e depois para bateria e percussão. Da bateria para a percussão foi um pulo bastante rápido, porque eu percebi que a bateria tinha limitações de timbre.

Você acha que a bateria é um instrumento musical limitado?
É limitado assim como o piano é limitado, do ponto de vista do timbre. Para mim, a formação mais perfeita para fazer música é a orquestra sinfônica, porque você tem todos os timbres e a tessitura inteira, além da possibilidade de combinar e fazer dobra entre instrumentos. Isso gera resultados muito ricos.

Você acredita que a música brasileira perdeu a variedade e a riqueza de ritmos?
Isso é mundial. A música se desqualificou, do ponto de vista de riqueza e de proposta. Busca-se muito o comércio. Nada hoje é válido se não houver um certo número de acessos, pessoas curtindo ou suportando aquilo. Isso é muito perigoso e, no Brasil, é ainda mais forte, porque existe um preconceito com a música instrumental mais sofisticada. As pessoas acham que, se não é possível rebolar ou assoviar, a música é inacessível. Na música instrumental, o que eu sinto é falta de divulgação. A música continua pujante, os músicos estão aí, existem jovens fazendo música de qualidade, mas eles não têm onde tocar. Eu mesmo, que jamais quis morar fora do Brasil, estou com vontade, porque aqui você não tem escoamento da produção de música.

Por que isso acontece?
É uma série de fatores. Primeiro, a internet, que apesar de ser muito bem-vinda, tem um caos de coisas. O que acontece é que as pessoas em geral acabam escolhendo assistir o que é mais assistido. As pessoas são atraídas por aquilo que está sendo mais procurado. Outro problema é que não existe mais uma crítica especializada constante sobre o que é mais interessante. Os meios de comunicação não têm mais, em seu corpo editorial, gente de peso, então as pessoas que não conhecem muito a música mais sofisticada não se arriscam a falar do que está fora do grande mercado. Hoje você não vê uma crítica de show de música instrumental ou uma crítica de disco que passe de três linhas. Não se escreve algo em profundidade e isso desconstrói o diálogo cultural e musical.

Como é o estudo da percussão hoje no Brasil, em termos de escolas e possibilidades de educação musical?
Existe muita gente estudando percussão. Pandeiro, por exemplo, virou um objeto de desejo. Não sei exatamente o motivo, talvez porque ele seja um instrumento leve, fácil de carregar, pequeno e muito completo, já que é uma minibateria. Mas as pessoas têm estudado mais. Tenho vários amigos que são percussionistas e sobrevivem basicamente com aulas.

É difícil sobreviver tocando?
Sim, esse é um dos problemas sérios do Brasil hoje com relação à música instrumental. Há poucos lugares e poucas oportunidades, apesar de existir muita gente fazendo um trabalho de relevância.

Muitas pessoas costumam considerar a percussão algo intuitivo. Ela demanda um aprofundamento e estudo constante?
Nenhum instrumento é assim intuitivo. Muita gente toca alguns acordes no violão ou batuca no pandeiro, mas quem toca mesmo, pra valer, estuda horas e horas por dia. O percussionista ainda tem a desvantagem de não tocar um instrumento só. Você tem que se dedicar a vários instrumentos diferentes, cada um com uma técnica diferente. No meu caso, eu incorporei instrumentos que não são da cultura brasileira, mas que utilizo para fazer a minha música. São exemplos a tabla, que é um instrumento indiano, e o tamburello, que é italiano. É realmente um universo.

Como ficou a produção da música que você pratica após a internet?
Não me afetou nem um pouco, porque eu já não vendia antes e continuo não vendendo. Para o músico instrumentista, que sempre vendeu poucos discos, o que sempre pesou foi a música feita ao vivo.

E isso aumentou?
Aí é que está o âmago da questão. O espaço para a música instrumental diminuiu. O que aumentou foi que, hoje, para se ganhar dinheiro com música, é preciso tocar ao vivo. Nesse sentido acho altamente positivo, mas isso não resolve a questão da música mais aprofundada e sofisticada, que as pessoas não estão mais ouvindo.

A internet não ajuda a divulgar a sua música?
Em termos, porque na internet você tem absolutamente tudo. Enquanto antigamente, nos jornais, você tinha o que realmente importava para os jornalistas especializados, na internet você é que precisa fazer um filtro. Você precisa saber o que procurar, se não você vai enfiar goela abaixo um monte de coisa ruim. 

O projeto de haver ensino de música nas escolas poderia mudar esse quadro?
Esse projeto seria importantíssimo, mas não andou. Ele poderia mudar se fosse feito com seriedade, mas o problema é que, no Brasil, a educação e a cultura são supérfluos. Acho isso terrível, porque nossa música é uma matéria-prima de uma qualidade que não existe em nenhum lugar do globo. O Brasil é a menina dos olhos de qualquer músico do mundo, mas falta real desejo de investir em cultura.

Isso leva a essa pasteurização da música de que você falava?
A música leviana, ligeira e esquálida de formação tem uma penetração muito maior, porque é um produto imediatamente consumível. O que acontece hoje com as pessoas que capitaneiam esse mercado de música é investir naquilo que tenha saída mais rápida. Desafio as pessoas a imaginarem por que a maior parte dos grandes monstros sagrados da música brasileira estão com mais de 60 anos. No momento em que apareceram, a mídia era favorável a esse tipo de coisa porque a época era outra, não havia aferição de audiência e esses caras representavam a voz do povo da época.

Há também um empobrecimento dos arranjadores, em criatividade e ousadia?
É isso de você facilitar a audição, porque para muitas pessoas que fazem é preciso agarrar o público como as propagandas fazem. Mas você ouve qualquer música mais elaborada, como Milton Nascimento, e cada vez que você ouve você captura algo novo. É essa a riqueza de uma obra de arte. É você poder fruí-la cada vez mais em maior profundidade, e isso está se perdendo. As obras de arte estão ficando esquálidas, superficiais. Eu não facilito, faço o que vem da alma e proporciona uma diversão em profundidade, algo com que a pessoa precisa se comprometer, ouvir várias vezes e ter o prazer de uma novidade a cada repetição.

Você acha que o volume da boa música diminuiu?
Ainda se faz boa música em quantidade, a divulgação é que ficou comprometida. Eu me lembro que em São Paulo, nas décadas de 1980 e 1990, nós tínhamos um movimento de música instrumental incrível, com um público incrível. Havia projeto nos parques, nos teatros de periferia, no Teatro Municipal. Eu toquei no meio da Paulista, na altura do Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), em uma tarde inteira de música instrumental. Onde foi parar esse público? O que aconteceu? Não sei. Hoje as pessoas hesitam em sair de casa, a não ser que seja alguma coisa grandiosa. Elas perderam o senso de aventura de experimentar coisas novas.

Mas você tem conseguido fazer o seu trabalho?
Tenho conseguido, no Brasil, mas muito fora daqui, também. Acho que fora do país há mais oportunidades e o público é mais comprometido com a música boa. Tocar para o público alemão, por exemplo, é uma maravilha. Eles são ávidos e absorvem cada nota com concentração. Não que lá não exista porcaria também.

Você se considera um músico mais do estúdio ou das interpretações ao vivo?
Eu sou contra gravar discos. Eu acho que a música, principalmente a música instrumental, é feita para aquele público, naquele momento, naquele dia, e quando você grava vira uma falsificação, não tem graça. Tudo interfere na interpretação: a pressão, a temperatura, o seu humor, se você dormiu bem, o que você comeu, principalmente quando se faz uma música que tem abertura a improvisos. Gravo porque preciso ter um documento, assim como o escritor precisa ter um livro, mas eu não acredito, por exemplo, em nenhuma gravação que passe do terceiro take. Os meus trabalhos, em geral, são praticamente todos gravados ao vivo, e os mais recentes são ao vivo com público. O resultado é uma coisa muito mais quente, porque ao menos você não está tocando para o técnico de som. Tem outro sabor. Não sou um músico de estúdio. Não chega nem perto do prazer que me dá estar no palco, principalmente porque eu sempre convido o público para dentro do palco, porque ele tem, sim, que sentir que é importante.


"Um dos problemas sérios do Brasil hoje com relação à música instrumental é que há poucas oportunidades, apesar de existir muita gente fazendo um trabalho de relevância"

"Hoje você não vê uma crítica de show de música instrumental ou de um disco que passe de três linhas. Não se escreve algo em profundidade e isso descontrói o diálogo cultural e musical"

"A riqueza de uma obra de arte é você poder fruí-la cada vez em maior profundidade, e isso está se perdendo. As obras de arte estão ficando esquálidas, superficiais"

"Sou contra gravar discos. Acho que a música, principalmente a música instrumental, é feita para aquele público, naquele momento, naquele dia, e quando você grava vira uma falsificação"