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Um lugar de sentido

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


Por Sérgio Luís Oliveira


Um sentido, talvez seja isto que se busque o tempo inteiro, uma direção, um norte, um ter para onde ir. Em uma palavra: um ‘projeto’. Um projeto de vida, um projeto artístico. Interessante como isso soa, ao mesmo tempo, abstrato e concreto. Parece que ainda não vivemos o que temos que viver, não experimentamos as experiências de um ‘aqui e agora’, sempre empurrado por um passado, um já sido, que nos expele para um futuro incerto, desconhecido e ainda não cultuado, sem cultivo, sem reconhecimento.

É comum se dizer e ouvir falar ‘eu tenho um projeto’, ‘eu tive um sonho’. Como se algum deles, projeto e sonho, pudessem sofrer a ação do verbo ‘ter’. Como podemos ter algo que não existe, que está por vir, mas ainda não é? Um sonho, sonhamos mas não temos, somos. Somos num estado onírico, diferentes sim, da vigília, do acordado, mas somos inteiros enquanto sonhamos. Um sonho se vive.

Uma obra artística, teatral, podemos dizer, é um projeto, um sonho. Algo que, em si, nunca teremos, mas que podemos vivê-la. De diversas maneiras inclusive. Na fruição mesma enquanto estamos lá a assistir, depois quando saímos falando dela, mais tarde quando ela nos ocorre em pensamentos reflexivos sobre as coisas e o mundo e, muito além disto, quando somos surpreendidos por sentimentos e emoções, flashes da vivência dessa mesma obra já ida há tempos, mas que se atualiza num presente, que é já outro projeto.

A obra teatral, por sua presencialidade e efemeridade, por sua aderência à ordinariedade da vida, e por sua ficcionalidade ‘real’, tem a potência de nos mobilizar enquanto grupos, coletivos, gêneros, raça, de um modo realmente especial. Nosso projeto de vida, que é já passado, presente e futuro, tudo num átimo do vir a ser do homem, coloca-se implacavelmente, sem subterfúgios. Abrem-se cortinas, desvelam-se coxias, iluminam-se cenários e cenas de um futuro incerto aparecem, fugazes, mas certeiras e capazes de nos dizer coisas do mundo, que nós mesmos constituímos e por ele somos constituídos e, no fim, por ele respondemos.

Um festival, o nome já nos diz, é uma festa. Uma reunião de obras e projetos artísticos que só tem sentido por seu caráter aglutinador de gentes, espaços de convívio, de olhares, de entrega a outros pontos de vista, a outros mundos. O teatro como constituidor de novos mundos, quando esparramado por uma cidade, como sangue que flui pelos canais, ruas, vielas, canos, fios e ondas, pode tornar-se um amálgama para novas formas de sociabilidade, novos jeitos de se andar pelos espaços comuns, outra ginga pelos mesmos históricos esquecidos becos, casarões e calçadas.

Então, um festival pode ser também um projeto. Um projeto artístico, ele mesmo uma obra a muitas mãos. Um projeto de vidas que estão a todo tempo escolhendo, optando, afinando, apurando, curando as coisas do mundo, suas obras e dizeres. Escolhas não são fáceis, são apenas implacáveis. Quando vimos, nem nos demos conta, e já escolhemos. Mas isso que pode parecer e é aleatório, subjetivo, intuitivo e sem sentido para alguns, são decisões argumentadas, defendidas, discutidas, ouvidas e faladas, como um texto, que em sendo dito, deve ser escutado. Deixas que democratizam o convívio e trazem novos sentidos, novas obras. Novos pensamentos sobre o mesmo e recorrente tema: os homens, as mulheres e seus mundos. Deixemos que o Mirada, esse olhar de todos nós, seja nossa ágora contemporânea e o teatro um passo para o desconhecido.


Sérgio Luís Oliveira, formado em História, é assistente técnico para área de teatro da Gerência de Ação Cultural do Sesc