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Financiamento coletivo

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


As plataformas de financiamento coletivo, que chegaram ao Brasil em 2011, surgiram como alternativas para viabilizar projetos. A ideia é buscar pessoas que apoiem financeiramente a iniciativa e ajudem os idealizadores a atingir a quantia necessária para a realização. Alguns anos após sua popularização, quais as perspectivas desse sistema no Brasil? Analisam  o assunto o coordenador de comunicação da maior plataforma brasileira do tipo, Felipe Caruso, e os sócios de uma empresa de pesquisa com foco em cultura e economia criativa, Alan Berenstein e Dino Siwek.


Boas notícias para o setor cultural
por Alan Safro Berenstein e Dino Siwek

O “Retrato do Financiamento Coletivo no Brasil de 2013”, primeira grande pesquisa sobre o tema no país, realizada no 2º semestre do ano passado, traz boas notícias para o setor cultural. Segundo a pesquisa, o maior interesse dos apoiadores do financiamento coletivo está justamente no fomento de projetos artísticos e culturais de forma independente, com mais de 50% da preferência. O impacto dessa preferência é percebido também pela ótica dos realizadores, uma vez que 1 em cada 3 proponentes é diretamente ligado aos setores de arte e produção cultural e já viabilizou filmes, livros, CDs e DVDs, exposições de arte e fotografia, intervenções urbanas, espetáculos de dança e teatro, cineclubes, saraus e festivais, entre outras manifestações.

A apropriação dessa modalidade de financiamento pelo meio cultural evidencia uma relação mutuamente benéfica. Se por um lado o financiamento coletivo possibilita a projetos culturais uma independência e liberdade muitas vezes ausentes em outros modelos de financiamento, por outro o aumento do uso dessas plataformas por projetos culturais pode impulsionar a expansão desse mercado no país.

O modelo de apoio à cultura via editais e leis de incentivo vem sendo repetidamente discutido no país. O processo engessado, que por vezes contempla artistas melhores em moldar projetos para editais do que em realizá-los, a concentração econômica e demográfica da verba distribuída e a discussão sobre o uso de dinheiro público para ações de marketing de empresas privadas são alguns dos constantes questionamentos a esse sistema de valorização do fazer cultural.

O financiamento coletivo, além de aparecer como uma alternativa de maior autonomia e isonomia, inclui as pessoas em uma equação antes restrita a empresas, governo e produtores, fortalecendo o vínculo entre o artista e seu público, uma vez que a utilização dessa lógica resulta em benefícios que vão além da captação de recursos.

Durante o período de arrecadação, cria-se uma atmosfera de expectativa e mobilização que se reflete na capilarização da divulgação de maneira espontânea, na intensificação da conexão entre os envolvidos e, em última análise, em um termômetro da relevância social de determinada ideia, projeto ou artista, que começa a fase de difusão de sua obra já com um público preestabelecido e engajado. Ao decidir apoiar um projeto, o público passa a ser não só espectador, mas de certa forma torna-se coautor do processo. A conquista, então, deixa de ser apenas do proponente e passa a ser de toda a sua rede, imbuindo o projeto com a aura do “fazer junto”, tão própria e tão importante para essa modalidade de financiamento.

Tivemos a oportunidade de acompanhar, por exemplo, o Auditório Ibirapuera lotado para a pré-estreia para apoiadores do filme Belo Monte  Anúncio de uma Guerra, à época (2012) a maior arrecadação de um projeto via financiamento coletivo (R$ 146 mil reais), e perceber a emoção do público presente em fazer parte daquele momento como um agente fundamental na realização do filme. Da mesma forma, observamos a reconquista do espaço público em projetos como o Festival Baixo Centro e o Parque das Corujas, entre várias outras iniciativas com impacto perene na revitalização dos espaços urbanos.

Durante a pesquisa, procuramos compreender como se dá o processo de formação de comunidades, em um modelo denominado Círculo de Influência do Financiamento Coletivo, baseado em três esferas que se expandem a partir de um mesmo núcleo.
O primeiro círculo é o das redes diretas dos realizadores, representada por seus amigos e conhecidos. Esse círculo é responsável pela ignição dos projetos e atualmente concentra o maior percentual dos valores captados. O segundo, das relações estendidas, corresponde às redes criadas a partir da divulgação dos apoiadores diretos, e é pelo menos até aqui que uma campanha precisa chegar para ser bem-sucedida. Já o terceiro e maior, chamado de círculo de interesse público, amplia o alcance dos projetos para além das redes conhecidas, atingindo o domínio público. É particularmente difícil chegar a esse estágio, que depende de boa comunicação, exposição na mídia e, principalmente, da relevância da causa proposta.

Para efetivamente discutir o impacto que essa alternativa de financiamento pode ter na cultura, é importante comparar a capacidade de arrecadação dos modelos colaborativos e de renúncia fiscal, o que no cenário atual ainda demonstra uma diferença significativa. Se apenas via Lei Rouanet foram captados no ano de 2013 1,1 bilhão de reais, no mesmo período o valor total arrecadado pelos projetos no Catarse, maior plataforma de financiamento coletivo do Brasil, foi de 7,1 milhões.

A opção pelo financiamento coletivo, porém, não exclui a possibilidade de se usar outras formas de financiamento complementares. No atual cenário, um financiamento misto, que integre o potencial de arrecadação via leis de incentivo com a capacidade de mobilização de um projeto colaborativo, é um caminho bastante interessante de experimentar, e essa lógica, chamada de cross funding, começa a ganhar corpo no Brasil em plataformas como o “Partio”.

Outra questão a ser explorada diz respeito ao potencial futuro do mercado, pois se ele ainda é incipiente no Brasil, um olhar para os Estados Unidos revela possibilidades auspiciosas. Artistas de renome como Marina Abramovich, Spike Lee e Amanda Palmer já construíram mobilizações capazes de atingir as cifras dos milhões e ajudaram a plataforma Kickstarter, a maior do gênero no mundo, a ultrapassar a marca de 1 bilhão de dólares arrecadados em mais de 68 mil projetos.

Observando a evolução do financiamento coletivo nos Estados Unidos, verificamos que os grandes catalisadores do crescimento do mercado foram projetos de empreendedorismo, principalmente o desenvolvimento e a pré-venda de produtos inovadores, um forte traço não só do setor, mas da cultura americana como um todo. Já no Brasil, a qualidade e a diversidade da produção cultural, constantemente alimentadas e oxigenadas pelo talento e criatividade de nossos artistas, possuem força suficiente para levar o financiamento coletivo a um outro nível de investimentos.

Uma pesquisa realizada pelo Kickstarter, em concordância com o modo de navegação nas plataformas também observado no Retrato do Financiamento Coletivo no Brasil, indica que projetos de grandes dimensões potencializam a arrecadação de todos os projetos correlatos da plataforma em que estão inseridos. Cabe, então, à própria cena cultural brasileira, sejam artistas, produtores ou instituições, tomar a dianteira desse processo, pensando e propondo projetos mais ambiciosos, que viabilizem seus trabalhos e enriqueçam o universo do financiamento coletivo como um todo.



“Além de aparecer como uma alternativa de maior autonomia e isonomia, o financiamento coletivo inclui as pessoas em uma equação antes restrita a empresas, governo e produtores, fortalecendo o vínculo entre o artista e seu público”

 


Alan Safro Berenstein, formado em Comunicação Social, e Dino Siwek, antropólogo,
são pesquisadores e sócios da Chorus, empresa de pesquisa com foco em cultura e economia criativa.

 


Escalada da confiança e consolidação
por Felipe Caruso

“O ideia do crowdfunding é ótima. Acho que vai decolar nos Estados Unidos, mas não vai funcionar no Brasil nem em mil anos”, previu Diogo Biazus muito antes de se tornar o diretor de tecnologia do Catarse, a primeira e maior plataforma de financiamento coletivo para projetos criativos do Brasil. Ele não acreditava que o brasileiro fosse dar um voto de confiança e de fato colocar a mão no bolso para apoiar ideias de pessoas através da internet.

Pouco mais de três anos e meio depois de o Catarse entrar no ar, Diogo reconhece feliz o erro do seu prognóstico. Mais de 150 mil pessoas já contribuíram com quase 20 milhões de reais para 2.200 projetos de todo o país. O modelo de negócios se provou viável, e a credibilidade do modelo está consolidada. 

O sucesso da plataforma começou com a construção de uma experiência positiva dos primeiros usuários e a consolidação das redes de apoiadores e realizadores de projetos, que aos poucos extrapolaram para outras redes e levaram o potencial do modelo a cada vez mais pessoas que encontraram no financiamento coletivo, por diversas razões, a ferramenta ideal para finalmente tirar suas ideias do papel.

O primeiro projeto de financiamento coletivo de jornalismo do Brasil foi o Cidades para Pessoas, de Natália Garcia. Ela conseguiu R$ 25 mil com 285 apoiadores para rodar 12 países em busca de respostas de como tornar uma cidade melhor para seus habitantes e abriu caminhos para outras campanhas da categoria. Natália serviu de referência para o Reportagem Pública, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, que levantou quase R$ 60 mil com mais de 800 pessoas e pediu a ajuda delas para escolher 12 propostas de reportagem investigativa independentes para receberem uma bolsa. 

Aqui no Catarse, artistas, designers, pesquisadores, gamers, cientistas, empreendedores e ativistas encontraram uma poderosa ferramenta para viabilizar financeiramente seus projetos. Essas iniciativas se tornam realidade a partir da colaboração direta de pessoas que se identificam com elas. 

Ao ser aprovada pela equipe, a campanha é aberta para a captação e os realizadores compartilham a ideia com o mundo. O realizador escolhe um prazo (entre 1 e 60 dias) para alcançar a meta de arrecadação. Se as pessoas gostarem da proposta, podem contribuir financeiramente em troca de recompensas não financeiras de acordo com cada faixa de contribuição. Quando acabar o prazo final, é tudo ou nada. Se o objetivo for atingido ou superado, o realizador do projeto recebe o dinheiro e executa a ideia. Caso contrário, devolvemos as contribuições para todos os apoiadores e o proponente não leva nada.

Se um projeto é bem-sucedido ao final do prazo, 13% da arrecadação ficam com a plataforma, sendo cerca de 8% de comissão para o Catarse e 5% das taxas dos meios de pagamentos. Se o projeto é malsucedido, não ficamos com nada. Entramos no risco com os realizadores. Acreditamos sempre nessa relação de ganha-ganha.

Mentes criativas procuram o financiamento coletivo porque precisam de dinheiro para realizar seus projetos e as formas tradicionais de arrecadação não atendem suas necessidades. Outros não têm ferramentas confiáveis para transformar o seu capital social em capital financeiro. Há também quem utilize a campanha como forma de chamar atenção para uma ideia, causa ou produto ou testar a demanda por um serviço ou produto. Como o modelo do tudo ou nada reduz os riscos, o ambiente favorece a inovação.  

A cultura se apropriou rapidamente da ferramenta porque havia uma vocação da equipe inicial do Catarse de trabalhar no setor. Além disso, muitos produtores e artistas já estavam acostumados e articulados para buscar financiamento. Essa nova alternativa para mobilizar recursos ocupou uma falha dos sistemas tradicionais de financiamentos culturais. Uma grande demanda reprimida encontrou menos burocracia, risco quase zero, mais agilidade e independência do financiador e um potencial ilimitado. Hoje, metade dos projetos financiados é das categorias de Música ou Cinema e Vídeo.

Bandas como os Raimundos, For Fun e Dead Fish, que recentemente levantou mais de R$ 260 mil com a ajuda de 3.100 pessoas e se tornou a maior campanha de financiamento coletivo do Brasil, já usaram o financiamento coletivo para driblar a crise do mercado fonográfico e contar com a força dos fãs e a independência do modelo para seguir com o trabalho. Filmes que abordam temas polêmicos como Cidade Cinza, Belo Monte: o Anúncio de uma Guerra e Domínio Público financiaram coletivamente parte da sua produção, finalização ou distribuição.
 
Apesar de gostarmos dos grandes projetos, pensamos no impacto local das pequenas iniciativas. Cerca de 90% dos projetos financiados na plataforma são de até R$ 30 mil, faixa negligenciada por outras alternativas de financiamento. Permitimos que o mínimo necessário de pessoas de todo o mundo e interessadas na mesma ideia se reúna e divida custos para realizá-la.

Outras áreas já descobriram no financiamento coletivo a ferramenta para superar falhas similares às da cultura. Doutoranda em biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcela Uliano, por exemplo, estuda o mexilhão dourado, uma espécie invasora que veio de carona em navios que ancoravam na bacia do Prata, já chegou ao Pantanal e ameaça a Amazônia. 

Para entender como combatê-lo, Marcela contou com a ajuda de 361 apoiadores que juntaram R$ 40 mil para ela sequenciar o genoma do mexilhão. Como recompensa, ofereceu colocar o nome dos financiadores em proteínas e enzimas do DNA do molusco. Com financiamento coletivo, ela reconectou os interesses da sociedade civil à pesquisa científica. E essa lógica pode ser transposta a todas as categorias de projetos. É um caminho sem volta de mais independência, contato, proximidade, honestidade, transparência, agilidade e afeto em diversas cadeias produtivas.

No longo prazo, o horizonte do financiamento coletivo é ser a primeira opção para, mais do que financiar projetos, viabilizar ideias criativas no país. Há muito que fazer e seguimos fortes na construção de uma cultura mais dinâmica, diversa e colaborativa.



“Essa nova alternativa para mobilizar recursos ocupou uma falha dos sistemas tradicionais de financiamentos culturais. Uma grande demanda reprimida encontrou menos burocracia, risco quase zero, mais agilidade e independência do financiador e um potencial ilimitado”

Felipe Caruso é jornalista e coordenador de comunicação do Catarse