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Nos tempos das big bands
Por: HERBERT CARVALHO
As décadas de 1950 e 1960 – quando os países do Ocidente tinham virado a página da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), começavam a desfrutar de bem-estar social e o capitalismo mostrava pleno vigor – ficaram conhecidas no Brasil como Anos Dourados, título de minissérie sobre o período exibida pela Rede Globo entre 5 a 30 de maio de 1986, em 20 capítulos. Caracterizada no plano econômico pela implantação da indústria automobilística e a construção de Brasília, foi uma quadra de intenso otimismo, em especial para a classe média de um país que deixava de ser predominantemente rural para se urbanizar.
Nas cidades grandes e médias, e mesmo nas pequenas, os salões de baile dos clubes constituíam o ponto alto da vida social, forma privilegiada de diversão num tempo marcado pela cortesia no trato entre as pessoas, pois “tudo era partilhado”, como resume o escritor Ignácio de Loyola Brandão. Impulsionada por Juscelino Kubitschek (JK), o presidente bossa-nova e pé de valsa, como era chamado, que prometera fazer o país avançar 50 anos em apenas cinco, a nação rodopiava rumo ao progresso, embalada por orquestras que marcaram época.
As big bands brasileiras, inspiradas em suas congêneres estadunidenses, animavam os dançarinos com arranjos elaborados, para instrumentos de sopro complementados pela “cozinha”, como então se designava a base harmônica do grupo, formada por guitarra, bateria, contrabaixo e piano. No total, exibiam-se entre 12 e 25 músicos versáteis, que se alçavam em momentos-chave como protagonistas de interpretações coreografadas. Ao som romântico de um naipe de saxofones ou das notas agudas de um trompete, agitavam-se os corações apaixonados de rapazes trajados com terninhos justos ou jaquetas de couro, e de moças radiantes com cabelo amarrado e vestidos rodados abaixo do joelho. Em noites de gala, que exigiam traje a rigor, flores e garrafas de champanhe sobre as mesas completavam o ambiente.
De sua disseminação na terra do Tio Sam, na década de 1930, até a popularização entre nós por meio de maestros e bandleaders como Severino Araújo e Sílvio Mazzuca, Problemas Brasileiros reconstitui o mundo de glamour das orquestras de baile, hoje desaparecido, à exceção da pioneira e mais notável de todas elas, a octogenária Orquestra Tabajara. As primeiras bandas de jazz surgiram no início do século 20, em Nova Orleans, na Luisiana, no sul dos Estados Unidos, a partir de uma fusão do blues – a canção nostálgica dos negros escravos – com os instrumentos de sopro típicos de bandas militares, como trompete, clarinete e trombone, presentes também nas origens do nosso chorinho. Em pequenas formações que incluíam tarol, bumbo e banjo (mais tarde substituídos por bateria e guitarra), tocavam em cabarés e funerais.
Apesar de suas raízes negras, foram músicos majoritariamente brancos – como os da Original Dixieland Jazz Band, responsáveis pela primeira gravação de uma música de jazz – que transformaram o gênero na linguagem básica da dança moderna e da música popular da civilização urbana industrial. Isso ocorreu a partir do momento em que as bandas começaram a crescer, como a de Duke Ellington (três trompetes, três trombones e quatro palhetas, que podiam ser tanto clarinetes como saxofones) e, principalmente, a de Benny Goodman, que inaugura oficialmente, em 1935, a “Era do Swing”, popularizando a música orquestral para dançar através do programa de rádio não por acaso intitulado Let’s Dance.
Para americano ver
Segundo o historiador Eric Hobsbawn, em sua História Social do Jazz, o público dançante do swing era composto, principalmente, por adolescentes e estudantes universitários, pois “os movimentos atléticos e acrobáticos que a música suscitava eram mera liberação de energia sexual por meio do ritmo”. Presentes nos cinemas e salões de dança, espaços que cristalizaram o setor de entretenimento na primeira metade do século passado, as big bands, entre elas a de Glenn Miller, a mais emblemática, começam a declinar após a Segunda Guerra Mundial. Muitos dos músicos, recrutados como soldados, desistem da profissão ou optam pelo estilo bebop, em grupos menores de casas noturnas, gueto ao qual o jazz retorna no momento em que a televisão começa a eclipsar outras formas de diversão.
No Brasil, ao contrário, será quando as dance bands, como também eram conhecidas, atingem o apogeu juntamente com os bailes ansiosamente aguardados como aqueles dedicados às debutantes, de réveillon ou formatura, nos quais dançar abraçado ao par tornara-se hábito nacional. Caso raro de músico brasileiro que assume sem culpas a influência norte-americana, Severino Araújo de Oliveira ouvia diariamente as transmissões em ondas curtas, captadas em João Pessoa, de seu ídolo Benny Goodman, clarinetista como ele. Nascido em 1917 no município pernambucano de Limoeiro – cidade onde seu pai, líder da banda municipal, ensinava-lhe música desde os seis anos de idade – o futuro compositor do choro Espinha de Bacalhau iniciou a vida profissional na Banda da Polícia Militar da Paraíba.
Em Recife, Araújo torna-se, aos 21 anos, o regente de uma orquestra já afamada, fundada pouco antes para atuar na Rádio Tabajara, emissora local cujo nome herdaria, para projetá-lo por todo o país e além. Sua intuição de assimilar o estilo das big bands é testada em janeiro de 1943 frente a um público conhecedor do assunto: os soldados americanos do Campo de Parnamirim, próximo a Natal, cedido por Getúlio Vargas ao governo americano para a construção de uma base militar capaz de assegurar a rota dos aliados para a África. Logo de cara a Tabajara atacou um foxtrote para agradar aos combatentes, mas em seguida mandou um samba, um frevo e um maracatu para compensar nosso lado nacionalista.
No ano seguinte, Araújo chega ao Rio de Janeiro, decidido a traduzir para a linguagem jazzística de orquestração, sambas – como Aquarela do Brasil, de Ary Barroso – e demais ritmos brasileiros de sucesso. Trabalhando como arranjador na Rádio Tupi, dos Diários Associados, obtém de Assis Chateaubriand, chefe do então poderoso império de comunicação, o aval para trazer à capital do país, à época, o grupo que ficaria famoso, precedido pelo nome de seu bandleader: Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara.
Até morrer, em 2012, aos 95 anos, o maestro revelou, ao longo de quase sete décadas, músicos exímios como K-Ximbinho e Zé Bodega, nomes artísticos de Sebastião de Barros e José de Araújo Oliveira, este último considerado o maior saxofonista tenor de todos os tempos na música brasileira. Ajudou a consagrar nos bailes da vida – nos quais muita gente boa pôs os pés na profissão de tocar um instrumento e de cantar, de acordo com a canção de Milton Nascimento – cantores do porte de Milton Santos de Almeida (Miltinho), falecido em setembro deste ano, José Bispo Clementino dos Santos (Jamelão) e Elizeth Cardoso, crooners da orquestra.
Sob o comando de Severino Araújo – que, em 2006, passou a batuta da orquestra ao irmão flautista Jaime Araújo – a Tabajara realizou a média de 200 apresentações por ano, encontros que nunca tinham menos de mil pessoas, ou milhões de dançarinos ao longo do tempo. Outros números superlativos: mais de 300 discos gravados e dez anos seguidos de animação da Domingueira Voadora, bailes que aconteciam aos domingos na casa de espetáculos Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Dancings e gafieiras
Em São Paulo, a orquestra mais solicitada para bailes e festas durante os anos de 1950 foi a de Sílvio Mazzuca (1919-2003), regente, compositor e pianista que também tocava vibrafone, instrumento que ajudou a popularizar. Paulistano do bairro boêmio do Bexiga, alto e moreno, mantinha sua big band atenta ao que havia de mais moderno em matéria de música instrumental, o que lhe rendeu o Prêmio Tupiniquim de Melhor Orquestra de 1951 a 1958.
Gravou discos de composições suas e de outros autores brasileiros como Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu, teve um programa exclusivo na Rádio Bandeirantes e foi diretor musical da extinta TV Excelsior, na década de 1960. O long play (LP) gravado pelo selo Columbia intitulado Baile de Formatura – que traz na capa a foto de uma jovem com vestido branco longo, descendo de um carro pela mão de um rapaz impecável em black tie – comprova a preferência absoluta de sua orquestra pelos estudantes em final de curso. De autoria do próprio Mazzuca, o fox You Only You, prefixo do grupo, está disponível na internet, por meio do site YouTube, para quem queira conhecer ou matar a saudade.
Outro regente a sobressair nesse tempo foi o italiano Enrico Simonetti (1924-1978), radicado em São Paulo durante uma década, de 1952 a 1962, quando retornou a seu país. Além dos bailes, estrelava o programa televisivo Simonetti Show, dirigido pelo estreante Jô Soares, no qual os músicos participavam ativamente, como até hoje fazem no talk show do humorista na Rede Globo. Compositor de hinos e trilhas sonoras foi, ainda, o responsável por arranjos orquestrais originais de sucessos da cantora Maysa, como o célebre Meu Mundo Caiu, em cuja introdução colocou um solo de trombone, de modo a impor o silêncio aos ouvintes.
Rafael Lemos Júnior, o Fafá Lemos (1921-2004) e Luis Arruda Paes completam a lista dos mais famosos maestros das dance bands daqueles tempos. Diferentemente de seus pares, em geral pianistas ou músicos de instrumentos de sopro, Fafá era violinista e deixou um LP clássico gravado em 1954 nos Estados Unidos: Jantar no Rio, hoje transformado em raro objeto do desejo de colecionadores, traz arranjos especiais para três obras-primas do cancioneiro nacional – Ninguém me Ama (Antonio Maria e Fernando Lobo), Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso) e Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro). De Arruda Paes, mais tarde regente da Jazz Sinfônica de São Paulo, o grande êxito fonográfico foi o LP Brasil Dia e Noite, lançado na Argentina, no México, no Japão e nos Estados Unidos.
Além de clubes e bailes comemorativos, as orquestras animavam salões de dança profissionalizada, como o Palácio Mauá, em São Paulo, e o Palácio de Mármore, em Santo André, no ABC paulista, considerado então a melhor sala de baile da América do Sul. Nesses locais, conhecidos como dancings, trabalhavam dançarinas sempre disponíveis para os clientes, que pagavam por cada música dançada mediante um sistema de picotar cartões, semelhante aos de controle de ponto nas empresas. Outros templos da música ao vivo para dançar eram as chamadas gafieiras, entre as quais se destacavam nomes famosos que marcaram época, como Elite e Estudantina, no Rio de Janeiro, e Som de Cristal, em São Paulo.
Big bands caipiras
Longe dos grandes centros também havia orquestras com música de qualidade, que convidava o público a dançar a noite inteira. Uma recente exposição realizada pela Unidade Sesc Campinas resgatou a trajetória de 12 desses grupos, com origem nos municípios paulistas de Catanduva, Espírito Santo do Pinhal, Franca, Guararapes, Jaboticabal, Jaú, Rio Claro, São José do Rio Preto e Tupã.
A mais famosa dessas autênticas big bands caipiras, requisitada para a coroação de misses, desfiles de moda, casamentos e aniversários de cidades, foi a Orquestra Continental de Jaú, que dispunha de um ônibus para os deslocamentos, apelidado de “Marta Rocha”, em homenagem à primeira Miss Brasil (1954), preterida no concurso de Miss Universo por causa de duas polegadas a mais nos quadris.
Com 19 músicos-professores organizados em um sistema de cooperativa, a Continental atuou durante 26 anos, chegando a gravar discos de sucesso no Brasil e no exterior. Acompanhou todos os principais cantores nacionais da época e alguns internacionais, como o espanhol Gregorio Barrios. Atingiu o auge em 1956, ao abrilhantar 110 bailes, e entre dezembro daquele ano e janeiro de 1957 tocou em 34 bailes de formatura, apresentando-se em mais de 300 cidades de seis estados Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo. Os contratos para a apresentação da Continental eram firmados com antecedência de até um ano.
Pedrinho e sua Orquestra Guararapes e Nelson e sua Orquestra Tupã devem a fama aos respectivos maestros-criadores. Pedro Salla, nascido em Taquaritinga (SP), dirigiu primeiro a banda Jazz Ibirá, para se apresentar no Cassino do Grande Hotel das Termas de Ibirá (SP). Com a proibição do jogo e o fechamento dos cassinos, em 1946, transferiu-se para o município de Guararapes, onde organizou a orquestra com seu nome, que tinha um diferencial: no meio dos bailes, apresentava um show com a Dança Ritual do Fogo, composição do espanhol Manuel de Falla, em que o clímax ficava por conta do baterista.
Já Nelson de Castro, integrante da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e filho de Júlio de Castro, maestro da Banda Municipal de Tupã, escolheu a data de 22 de novembro de 1949, Dia de Santa Cecília, a Padroeira dos Músicos, para lançar a Orquestra Tupã, aquela que, por duas vezes, receberia o troféu de melhor conjunto musical de baile do interior, outorgado pela Ordem dos Músicos do Brasil (OMB).
Uma dessas orquestras, a Capelozza, permanece ativa na região de Ribeirão Preto e tem agenda repleta para tocar em casamentos e outros eventos sociais. Com seu naipe de violinos para os clássicos nupciais de Johann Sebastian Bach e Charles Gounod, ela, todavia, difere bastante do grupo original formado pelos irmãos Amélio e Tunin Capelozza, marceneiros de profissão, que tinham na música uma atividade complementar. Fundadores da Continental, dela se afastaram para depois organizar, na mesma cidade de Jaú, a Orquestra Capelozza, atuante entre 1950 e 1970 no formato de big band. Uma saga assim descrita por Tunin: “Era uma forma de ganhar um dinheiro extra nos finais de semana. Uma vez fomos a um baile, mas os carros encalharam na estrada. Chegamos ao clube a 1h30 da manhã e tocamos todos sujos de barro até o final”.
Bailes célebres
Nos bailes, muitos casais dançavam sem parar das 22h às 4h. Eram obrigatórios em grandes comemorações, uma tradição legada pelo Império que, como se sabe, terminou no famoso baile da Ilha Fiscal, em 1889, às vésperas da Proclamação da República. No século 20, o baile que entrou para a história foi o realizado no Palácio do Planalto, durante a inauguração de Brasília. Às 22h30 do dia 21 de agosto de 1960, quando já rolava no Eixo Monumental uma grande festa popular, Juscelino Kubitschek vestiu casaca para, com sua mulher, dona Sarah, recepcionar 3 mil convidados, ao som da orquestra do pianista Benedito Francisco José da Penha Nunes, mais conhecido como Bené Nunes. “Nunca verei um espetáculo mais chique”, garantiu para a revista “Manchete” o colunista Jacinto de Thormes. Às 2 da manhã do dia 22, o presidente bateu em retirada, não sem antes recomendar às filhas, Márcia e Maria Estela, que não passassem das 3h. Dançando como tanto gostava, JK prolongou por duas horas o dia mais glorioso de sua vida.
Em pequenas cidades como Pindorama, em São Paulo, os bailes mais badalados eram os que coroavam rainhas, exemplos do Baile da Primavera e do Baile do Café. Transmitidos ao vivo por emissoras de rádio, eram noticiados pela imprensa local em detalhes, dos perfis das concorrentes à decoração, assim descrita por um cronista: “Mimosas flores azuis pendiam graciosamente do centro do teto, caíam artisticamente por sobre as paredes e davam a impressão da própria primavera enquadrada no ambiente de festividade”.
Para um “brotinho” concorrer à rainha, sua família deveria ser associada ao clube promotor do concurso e ter uma renda que lhe permitisse arcar com os gastos, em especial para confeccionar os hollywoodianos vestidos usados na noitada. Muitas copiavam, das artistas preferidas, não apenas o vestido e o corte de cabelo, mas também o jeito de olhar, falar e andar. Um mês antes do baile, começava a venda dos votos que determinariam, na razão da quantidade vendida, a vencedora. Esta, fosse uma “virgem” ou uma “vamp”, de acordo com os arquétipos difundidos pelo cinema americano, começaria o “discurso de posse” agradecendo aos “leais súditos”. A seguir rainhas e princesas esvoaçavam pelo salão, como borboletas multicores.
Um retrato sintético e ao mesmo tempo fiel desse Brasil ingênuo que se perdeu está em Baile no Elite, samba de breque de João Nogueira e Nei Lopes, que vale a pena transcrever na íntegra: “Fui a um baile no Elite, atendendo a um convite/Do Manuel Garçom (Meu Deus do Céu, que baile bom!)/Que coisa bacana, já do Campo de Santana/Ouvir o velho e bom som: trombone, sax e pistom./O traje era esporte que o calor estava forte/Mas eu fui de jaquetão, para causar boa impressão/Naquele tempo era o requinte o linho S-120/E eu não gostava de blusão (É uma questão de opinião!).
Passei pela portaria, subi a velha escadaria/E penetrei no salão. Quando dei de cara com a Orquestra Tabajara/E o popular Jamelão, cantando só samba-canção. Norato e Norega, Macaxeira e Zé Bodega/Nas palhetas e metais (E tinha outros muitos mais) /No clarinete o Severino solava um choro tão divino/Desses que já não tem mais (E ele era ainda bem rapaz!).
Refeito dessa surpresa, me aboletei na mesa/Que eu tinha já reservado (Até paguei adiantado)/Manoel, que é dos nossos, trouxe um pires de tremoços/Uma cerveja e um traçado (Pra eu não pegar um resfriado)/Tomei minha Brahma, levantei, tirei a dama/E iniciei meu bailado (No puladinho e no cruzado)/Até Trajano e Mário Jorge que são caras que não fogem/Foram embora humilhados (Eu tava mesmo endiabrado!)
Quando o astro-rei já raiava e a Tabajara caprichava/Seus acordes finais (Para tristeza dos casais)/Toquei a pequena, feito artista de cinema/Em cenas sentimentais (à luz de um abajur lilás). Num quarto sem forro, perto do pronto-socorro/Uma sirene me acordou (em estado desesperador)/Me levantei lavei o rosto, quase morro de desgosto/Pois foi um sonho e se acabou (Seu Nelson Motta deu a nota que hoje o som é rock and roll. A Tabajara é muito cara e o velho tempo já passou!)”.