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A Europa sem sair daqui
Por: JOSÉ PAULO BORGES
No coração da serra gaúcha, a 830 metros acima do nível do mar, destaca-se na paisagem uma cidade com ares de cartão-postal europeu, premiada pela natureza com nevadas ocasionais no inverno, clima ameno no verão e uma profusão de flores o ano inteiro. Na alta temporada, que segundo as agências de turismo acontece nos meses de julho, novembro e dezembro, a movimentação é intensa. Nos feriados e finais de semana a agitação de pessoas e carros aumenta a ponto de ficar complicado caminhar ou dirigir no centro do aglomerado urbano de cerca de 35 mil habitantes. Nas ruas e nas centenas de restaurantes, bares, pousadas e hotéis o que se ouve o tempo todo é um burburinho de sotaques falados por mais de 3 milhões de turistas que aportam por lá todos os anos, desde endinheirados apreciadores de chocolates finos, fondues e lareiras crepitantes, a farofeiros que não se intimidam de estender a toalha quadriculada na relva.
Às vezes, uma surpreendente neblina se forma de uma hora para outra e provoca certo ar de mistério nas ruas, principalmente à noite. Mas é nos dias úteis da semana, em especial na segunda-feira, quando os turistas já se foram, que se pode observar mais amiúde os moradores daquele lugar. Dá para notar o zelo como eles cuidam das praças, parques e jardins, e a maneira educada de receber os visitantes. Assim é a cidade de Gramado, que em dezembro deste ano completará 60 anos de emancipação e que, não por acaso, é apontada como o terceiro destino dos sonhos de turistas de todo o Brasil – conforme pesquisa da Fundação Getulio Vargas, encomendada pelo Ministério do Turismo.
Os dez dedos das mãos são insuficientes para enumerar as atrações do maior acontecimento turístico de Gramado, o Natal Luz. O evento é preparado durante o ano inteiro e movimenta em seus bastidores centenas de pessoas, entre coordenadores, produtores, iluminadores, técnicos em sonorização, artistas plásticos e atores. Muitas cores, luzes e adereços enfeitam a cidade, além de efeitos especiais, como o Snow Flow, em que lâmpadas simulam a neve caindo. De novembro a janeiro, Papai e Mamãe Noel, e uma constelação de personagens do universo natalino, reinam absolutos num cenário repleto de espetáculos artísticos, concertos, desfiles de rua e uma Parada de Natal apoteótica, que encanta milhões de pessoas vindas de todas as partes do país. No ano inteiro, durante o entreato das festas oficiais, acontecem dezenas de feiras e congressos promovidos por empresas, entidades (inclusive religiosas) e agências de turismo.
Em maio, Gramado retoma suas origens rurais, com a realização da Festa da Colônia. Iniciado em 1958, originalmente sob o nome de Festa das Hortênsias, este evento comunitário contribuiu para o desenvolvimento do turismo na região. Ele celebra a vida do interior do município, com desfiles de carros típicos ornamentados com objetos utilizados no dia a dia do campo, apresentações musicais e grupos de dança, além da exposição e venda de produtos artesanais e a degustação em plena rua de uma farta gastronomia regional.
“Mulher vaidosa”
De Toda Nudez Será Castigada, em 1973, a A Estrada 47, em 2014, a trajetória do cinema nacional, nos últimos 42 anos, passa pelo Festival de Cinema de Gramado. A primeira edição aconteceu de 10 a 14 de janeiro de 1973, já com a disputa pelo Kikito, o “Deus do Bom-Humor”, estatueta criada por Elisabeth Rosenfeld, uma das principais incentivadoras do artesanato gramadense. Atualmente, o festival acontece em agosto. “Se olharmos para a história do evento cinematográfico de Gramado, podemos saber como foi o nosso Brasil e a nossa cinegrafia nas últimas quatro décadas”, afirma o diretor de cinema Fernando Meirelles. Em 1992, com a incorporação de produções latino-americanas, o evento ampliou seus horizontes para fora do país.
“Gramado é uma mulher vaidosa que gosta de estar sempre bonita para receber os visitantes. Gramado é o turismo do frio, da expectativa da neve, tomando um bom vinho ou assistindo um filme no Festival de Cinema”. É assim que o advogado e professor Gilnei Casagrande resume sua terra natal. Segundo ele, o nome da cidade tem a ver com o passado. “No final do século 19, o lugar onde fica Gramado, a 115 quilômetros de Porto Alegre, servia de passagem para tropeiros que tocavam o gado serra acima”, relata. Ao chegarem ao topo da serra, se deparavam com um campo de grama muito verde, onde descansavam e refaziam as forças. Depois de enfrentar uma travessia difícil, com muitos precipícios, florestas fechadas e enormes quedas de água, para os tropeiros chegar até aquele ponto, todo “gramado”, era como aportar num paraíso. “A colonização local teve início em 1875 com levas de imigrantes portugueses, que foram seguidos por alemães e, um pouco mais tarde, por italianos”, acrescenta Casagrande.
“As pessoas vinham a Gramado no verão, principalmente de Porto Alegre, para aproveitar o clima ameno de montanha, ou por aconselhamento médico em busca de tratamento para a tuberculose”, conta Iraci Koppe, 82 anos, ex-diretora do Arquivo Histórico Municipal João Leopoldo Lied. Para acolher esses visitantes, denominados “veranistas”, foram construídos os primeiros hotéis da cidade. As reservas eram feitas com antecedência, pelo correio. Meninas uniformizadas iam à estação de trem para recepcionar os hóspedes. Isso aconteceu nas primeiras décadas do século passado. “Gramado sempre se preocupou em receber bem os visitantes”, ressalta Iraci. O dia dos veranistas começava cedo com um generoso café da manhã acompanhado de pão assado no forno, servido numa mesa repleta de salames, queijos, linguiças e geleias de frutas colhidas nos fundos dos hotéis. “Depois disso, os hóspedes saíam para passear, alguns iam a cavalo e voltavam com cheiro de mato e musgo na roupa”, ela recorda.
Casagrande e Iraci dizem que um dos responsáveis pela transformação de Gramado em atração turística foi Leopoldo Rosenfeldt, um dos primeiros pioneiros a se estabelecer na região. Além de ter projetado o Lago Negro e o Lago Joaquina Rita Bier, dois ícones do paisagismo da cidade, Rosenfeldt elaborou o primeiro roteiro turístico de Gramado. Outro nome de destaque no panteão gramadense é o de um outro pioneiro, Oscar Knorr. Após construir sua casa em estilo bávaro no alto de um morro, Knorr plantou no local milhares de mudas de hortênsias. Não demorou muito e essas flores, de uma tonalidade azul intensa, se espalharam pela cidade, surgindo a ideia de organizar uma festa para atrair turistas. Nascia, assim, a Festa das Hortênsias de Gramado, evento que impulsionou o turismo na cidade.
A mais florida
Na lista de Casagrande e Iraci há outros nomes que despontam como personagens emblemáticas da cidade, casos de Elisabeth Rosenfeld, precursora do artesanato gramadense nas décadas de 1950 e 1960, e Jayme Prawer, responsável pela introdução e comercialização do “chocolate caseiro de Gramado”. Eles citam, ainda, o nome de Annelies Rosenfeldt Bertolucci e suas malhas feitas a mão, que se transformaram numa das marcas registradas da cidade.
Os turistas que se encantam com o colorido o ano todo das ruas, das praças e dos jardins de Gramado, não imaginam o trabalho realizado pelo Horto Municipal para manter a zona urbana assim. De acordo com Márcio Potrattz, que coordena a equipe responsável pelo paisagismo da cidade, cada estação requer o plantio de flores que se adaptem a diferentes temperaturas. “Tudo é analisado, estudado e planejado para que Gramado esteja sempre florida”, destaca Potrattz. A demanda crescente por plantas levou à ampliação da estrutura do Horto e cuja produção gira em torno de 700 mil mudas anuais dos mais diversos tipos de flores e plantas.
As flores de Gramado dão vida a mais de 360 canteiros existentes no perímetro urbano. Neles, a cada estação, florescem 330 mil espécies, colorido que rendeu o título, em concurso, de cidade mais florida do Rio Grande do Sul concedido pelo governo gaúcho.
Além das tradicionais hortênsias, cujo auge de beleza se dá no fim da primavera, e das azaleias, que florescem no início de setembro, em outras épocas do ano a cidade exibe o colorido de amores-perfeitos, begônias, bocas-de-leão, calêndulas, cravinas, petúnias e sálvias, entre outras espécies.
A certeza de que não faltarão espécies para embelezar as ruas e os canteiros de Gramado, faça chuva ou faça sol, frio ou calor, é resultado de um intenso planejamento e do trabalho minucioso realizado no horto. Pelo menos seis meses antes da floração, começa a seleção das variedades mais apropriadas a cada época do ano. Escolhida a variedade, tem início o cultivo. Durante o período de crescimento, a planta recebe adubação e cuidados meticulosos para que se fortaleça e possa enfrentar o clima fora das estufas. Quando estão no tamanho adequado para os canteiros, a equipe de jardineiros prepara o solo e realiza o plantio. Começa, então, a etapa mais difícil, que é a vigilância constante, canteiro a canteiro.
Quem convenceu as autoridades a transformar Gramado num jardim foi uma cidadã de nome Irma Peccin. Em suas viagens pela Europa, por volta de 30 anos atrás, Irma via aquelas cidades coloridas e se indagou: “Por que não fazer igual em Gramado?”. Irma reuniu então um grupo de voluntárias para estudar a possibilidade de encher de flores os canteiros da cidade. Cada uma das integrantes que viajava para o exterior identificava flores que, após consultas em revistas de paisagismo, eram ou não plantadas em razão do clima local. Com o passar do tempo, a prefeitura incorporou às suas tarefas o cuidado com os jardins sugeridos por essas voluntárias, tornando irreversível a transformação de Gramado num imenso jardim.
Os detritos vegetais recolhidos na cidade são transformados em adubo orgânico por dois trituradores de lixo verde, obtidos com verba destinada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O adubo é destinado a agricultores locais e utilizado no Horto Municipal. Localizado no bairro Moura, o horto tem uma área de 860 metros quadrados só de estufas. Técnicas de agricultura sustentável são aplicadas há um bom tempo ali, como a captação de água da chuva, que é usada na irrigação das mudas.
Ruas congestionadas
O grande mote da cidade, todavia, é mesmo o turismo, responsável por 90% da receita do município, e os beneficiários, além da população em geral, são o comércio, a gastronomia e a hotelaria. São mais de 140 hotéis, pousadas e albergues, totalizando cerca de 11.500 leitos; somam em torno de 1.200 empresas comerciais, 250 indústrias e 140 bares e restaurantes capazes de atender mais de 10 mil pessoas simultaneamente. Os segmentos de chocolate, construção civil, couro, ferramentas e malhas também contribuem com o incremento da economia e na geração de emprego e renda em Gramado.
Pesquisa realizada pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) aponta que o Produto Interno Bruto (PIB) da cidade é de US$ 133 milhões, a arrecadação total do município chega a R$ 24 milhões ao ano e o rendimento médio anual de cada cidadão gira em torno de US$ 4.330. A agroindústria também se destaca na economia local, uma vez que emprega famílias inteiras de imigrantes italianos e alemães, em sua maioria, em mais de 70 empresas artesanais ou semiartesanais. Elas produzem geleia, graspa (bebida alcoólica derivada do bagaço de uva), mel, pão caseiro, queijo, vinho e os tradicionais bolos cuca.
O Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), estudo elaborado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) com base em estatísticas dos ministérios do Trabalho, Saúde e Educação, classificou Gramado em 95º lugar entre os cem municípios mais desenvolvidos do país, nos segmentos educação, emprego e renda, saúde. Além de ser a única cidade da região, na serra gaúcha, classificada entre as melhores em todo o território nacional, a terra das hortênsias também se sobressai no ranking dos municípios gaúchos, onde ocupa a sexta posição nos três itens avaliados. O IFDM varia de 0 (mínimo) a 1 ponto (máximo) e classifica o nível de desenvolvimento municipal em quatro categorias: baixo (de 0 a 0,4), regular (0,4 a 0,6), moderado (de 0,6 a 0,8) e alto (0,8 a 1) desenvolvimento. A metodologia foi criada em 2008 pela Firjan com o propósito de monitorar o avanço socioeconômico dos 5.570 municípios brasileiros. Em 2014, Gramado obteve os índices 0,7865 em emprego e renda, 0,8062 em educação e 0,9287 em saúde.
Nem tudo, entretanto, são flores em Gramado. A infraestrutura viária da cidade já atingiu o limite do esgotamento. Nas épocas de maior afluxo de turistas a população flutuante mais do que dobra, e os hotéis e pousadas ficam com a capacidade próxima à máxima.
Congestionamentos de automóveis nas ruas centrais e nos acessos à cidade são comuns e provocam transtornos. Ônibus de excursões e caminhões emperram ainda mais o trânsito. Nos fins de semana, há filas nos restaurantes e achar uma vaga para estacionar é quase uma loteria. A saturação da malha urbana levou a prefeitura a implantar, em junho de 2010, o sistema de estacionamento pago nas ruas. As autoridades municipais e os empresários do comércio e do setor de turismo temem que esse princípio de caos acabe afugentando os turistas mais exigentes – aqueles com dinheiro, mas que não toleram trânsito parado e longas esperas nos restaurantes. A queixa de um proprietário de agência de turismo não é isolada: “Quando o pessoal do ‘farofatur’ invade a cidade não podemos nem sair de casa de carro. No Natal Luz tem gente urinando na rua”.
Umberto Beltramea, gerente-geral do Hotel Saint Andrews Gramado, não reclama. Inspirado nos castelos da região de Saint Andrews, na Escócia, o hotel é bastante requisitado por clientes dispostos a desembolsar de R$ 2.950 a R$ 6 mil para se hospedar nos fins de semana em uma de suas 11 suítes. Enquanto são recebidos com flores frescas, os hóspedes podem observar as peças antigas, os móveis e as cortinas, tudo importado da Inglaterra, bem como um lustre de cristal tcheco de 36 braços, logo na entrada, avaliado em R$ 50 mil. Os cristais também estão presentes nas mesas, sobre as quais repousam sinos artesanais, com sons diferentes uns dos outros. “Assim, os mordomos não confundem quem está chamando”, explica Beltramea.
O castelo foi construído em 2001 por um casal de empresários gaúchos, e ele foi utilizado como casa de inverno até 2004. Depois de cinco anos fechado, foi comprado por um executivo do ramo de turismo, que investiu R$ 10 milhões na recuperação do local. Na parte interna há um jardim repleto de chafarizes, usado por casais que querem um casamento de luxo, ao ar livre. Na adega gourmet, que fica na antiga garagem da casa, é possível degustar vinhos classificados entre os melhores do mundo. “A adega é climatizada naturalmente. Atrás há uma pedra de granito que permite armazenar o vinho o ano todo a uma temperatura constante de 18ºC”, explica o gerente geral do estabelecimento.
Gramado soube aproveitar como poucas cidades sua herança histórica advinda da imigração europeia, para atrair turistas que buscam consumir um “pedacinho da Europa” sem precisar embarcar para o exterior. Ou como sugere o antropólogo Edson Bertin Dorneles em sua dissertação de mestrado: “O encanto dos turistas com relação à cidade parece explicar-se, em parte, pela configuração étnica de seus habitantes, em sua maior parte descendentes de imigrantes alemães e italianos. Dessa forma, pode-se dizer que, muito mais do que conceber Gramado como uma cidade brasileira, ela é vista (pelos turistas) como ‘naturalmente europeia’”.