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Filhos, filhos, por que não tê-los?
Por: SILVIA KOCHEN
A macarronada de domingo, com a matriarca, seus muitos filhos e netos à mesa, é uma imagem do passado que muitos guardam na lembrança como um símbolo familiar. Coisas de outros tempos: a família brasileira está mudando, radicalmente, e ela vem encolhendo ao longo das últimas décadas. Ao contrário da época de nossas avós, hoje é muito difícil encontrar uma família com mais de três filhos. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2012, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ajuda a entender melhor essa situação. O levantamento mostrou que cresce a porcentagem de casais sem filhos, de 14% em 2002 para 19% em 2012. Os que optam por ter filho tem uma prole cada vez menor, mas ainda é possível encontrar exceções, normalmente casais com pouco acesso a informações sobre controle de natalidade e assistência contraceptiva.
Afinal qual é a taxa de fecundidade ideal? Demógrafos raciocinam da seguinte forma: o pai e a mãe um dia morrem, e, diante dos fatos, devem ser substituídos por dois herdeiros, dando margem, portanto, à estabilização do crescimento populacional. É o que chamam de taxa de reposição, que permite que o número de habitantes de uma nação se mantenha indefinidamente inalterado.
Segundo a Síntese dos Indicadores Sociais, publicada pelo IBGE em 2013 e que apresenta uma análise das condições de vida da população brasileira, a taxa de natalidade no país vem caindo ao longo dos anos. Em 1960, era de 6,21 filhos por mulher. Hoje é de apenas 1,81. Isso explica o fato de que enquanto 71,9% das mulheres brasileiras na faixa de 45 a 49 anos tiveram dois ou mais filhos, esse índice cai para 48,1% na faixa de 30 a 34 anos e vai a 31,4% de 25 a 29 anos.
Há um século, a vida era diferente. Não existia a pílula anticoncepcional, “nem televisão”, o conceito de planejamento familiar era coisa de ficção e o casamento indissolúvel “até que a morte nos separe”. O projeto de vida das mulheres era casar e gerar rebentos quantos pudessem. E houve uma época – pouco mais de cem anos atrás, no período em que a mão de obra estrangeira, especialmente italiana, tocava as lavouras de café em São Paulo – em que muitos pais raciocinavam assim: quantos mais filhos, mais braços para a lavoura.
O sonho de ter filhos continua presente na vida das mulheres, só que a constituição de famílias numerosas não passa pela cabeça da maioria delas. Em boa parte das vezes a alta fertilidade, quando acontece, é obra de “descuido”. E os casais podem não ficar atados eternamente, já que hoje são tantos os que desfazem a união em nome de uma relação com qualidade. Há ainda os casais que nem filhos têm, ou os que têm filhos sem se casar. Apesar disso, ainda é possível encontrar famílias com muitos filhos, um acontecimento cada vez mais incomum que desperta curiosidade.
O casal Sami e Viviane Akl é um exemplo de família numerosa. Ela, decoradora e art dealer (comerciante de arte), ele, artista plástico e arquiteto, unidos pelo matrimônio há quase três décadas, festejaram, no início da vida em comum, o nascimento das gêmeas idênticas: Giovanna e Gabrielle, hoje com 26 anos. Viviane conta que, como ela se sentia muito só quando morava na casa dos pais por ter um único irmão, pensava em três filhos depois de casada. Quatro anos depois das gêmeas, chegou mais uma menina, Samyie. O casal pensou em fechar definitivamente a “fábrica”, segundo palavras da esposa, mas preferiu adotar métodos naturais. “Passamos a utilizar preservativo combinado com a tabela dos dias férteis”, conta Viviane. Quando Samyie estava com cinco anos, Viviane começou a padecer de um mal-estar logo diagnosticado como virose. Nove meses depois, a virose ganhou um nome: Isabelle, hoje com 16 anos.
Bom padrão de vida
Durante a gravidez, Viviane resolveu que devia parar por ali, e fez o que achou mais apropriado: a laqueadura das trompas durante o parto da caçula. “O médico até perguntou se não queríamos tentar um menino, e respondi que nunca tivemos a preocupação com o sexo de filho, mas que nascesse com saúde”, recorda-se.
A criação das meninas foi tranquila. Quando pequenas, por questões óbvias, as decisões cabiam aos pais: onde passar as férias, qual a melhor decoração para o quarto, as roupas que deveriam usar, o restaurante do fim de semana. Mas, o fato de a família ser numerosa criava alguns problemas. Conforme a caçula foi crescendo, ficou complicado transportar todos em um único carro, pois acomodar Isabelle, a partir dos seus sete ou oito anos de idade, no colo da mãe, era uma tarefa ingrata. Sami e Viviane ora se moviam em carros grandes, ora se dividiam em dois carros.
A história de convivência entre as irmãs é boa, mesmo assim há o registro de episódios hilários. Uma noite, Samyie e as gêmeas adormeceram enquanto assistiam a um filme na TV. Quando acordaram se deram conta, a contragosto, que Isabelle, então com cinco anos, havia aproveitado aquele instante de sono para cortar tufos das longas cabeleiras das irmãs. Samyie, a mais prejudicada pela peraltice da irmã menor, teve de esperar meses até recuperar o visual de antes.
Conforme as meninas foram crescendo, surgiram novas situações que passaram a exigir paciência e discernimento por parte dos pais. Por exemplo, nos fins de semana, a família costumava comer fora, mas, agora, cada uma das filhas quer fazer valer sua preferência gastronômica. Antes, saiam todos juntos de avião nas férias. Hoje, cada qual quer ir para um lado, dividindo a família.
Mesmo tendo um bom padrão de vida e vivendo em um bairro nobre de São Paulo, ajustar as contas da família não é fácil. Aos 19 anos, as gêmeas foram fazer um curso de espanhol em Córdoba, na Argentina, mas o tempo passou e ficaram por lá mesmo, cursando uma faculdade em Buenos Aires, a capital portenha. Justificaram-se dizendo que comunicação social com especialização em marketing, o curso desejado, não existia por aqui. Os pais fingiram que acreditaram. E aquiesceram com o seguinte argumento: “É bom que elas tenham experiência de vida em outro país”.
Não deu nada certo. Depois de algum tempo, as gêmeas retornaram deixando o curso inacabado. Por lá ficou apenas Samyie, que havia se dirigido à vizinha nação um pouco mais tarde, mas que vem enfrentando dificuldades para definir sua vocação. Ela começou o curso de psicologia, mudou para filosofia e agora estuda teatro. Os pais esperam que ela volte logo.
O psicólogo José Carlos Ferrigno observa que, a despeito do cenário demográfico atual, em que as famílias estão ficando cada vez menos numerosas, não é difícil encontrar casais com muitos filhos, só que em classes sociais específicas. Ou são os muito ricos, para quem o encargo financeiro da criação de uma criança é irrisório; ou os mais pobres, que não planejam suas vidas. Já a classe média é formada por pessoas com maior nível educacional: as pessoas casam mais tarde e planejam a família, com apenas um ou dois filhos.
O casal Wander e Juliana Lacerda Dias Santos, de 37 e 28 anos, respectivamente, tem cinco meninos: Isaac, de 11 anos, Isaías, dez, Vitor, seis, Apollo, quatro, e Davy, dois anos. Apesar da alta fertilidade, os Santos se empenharam em planejar a família. “Casei cedo, aos 16 anos, e logo em seguida tive os dois mais velhos”, conta Juliana. “Então, coloquei um dispositivo intrauterino (DIU), mas não me adaptei e resolvi tentar uma menina”. Veio Vitor. Então, ela tomou pílula por três meses, até descobrir que tem varizes pélvicas, suspendendo a medicação. Apesar de passar a utilizar a pílula do dia seguinte, conta Juliana, nasceu Apollo.
O casal só decidiu tomar uma atitude radical depois do nascimento do caçula Davy. Como uma laqueadura de trompas não era a melhor opção para a saúde de Juliana, a solução coube a Wander, que fez a vasectomia. “Já tínhamos pensado em operar antes, mas não imaginávamos que íamos ter tantos filhos”, diz Juliana.
Por conta própria
O dia a dia do casal tem suas nuances. Juliana é cabeleireira e manicure, e Wander, designer de sobrancelhas e cabeleireiro masculino. Os dois não precisam caminhar muito para ir ao trabalho, já que o salão, pequeno por sinal, fica na parte de cima do imóvel onde residem. É uma vida atribulada, e o casal se contorce para que nada falte aos filhos. Além da rotina estafante no salão, marido e mulher comercializam chinelos que eles mesmos customizam. Tem mais: Juliana dá aula uma vez por semana em uma escola de cabeleireiro e estética em Osasco e Wander é representante comercial de uma marca de cosméticos. Além desse esforço redobrado, os dois ainda podem contar com a ajuda de outros parentes, como o exemplo dado recentemente por uma prima, que contribuiu para a aquisição de um guarda-roupa para os meninos.
O casal se reveza de modo que um fica em casa com os filhos quando o outro sai. Eles acham que não é difícil cuidar de tanta criança, pelo menos enquanto elas são pequenas. “O problema está na adolescência, quando, sabemos, os mais velhos deixam de ouvir os pais”, ressalta o marido de Juliana. Na casa dos Santos, assim como em todos os lares com muitos filhos, é comum as brigas entre irmãos pelos mais diferentes e comezinhos motivos. Há uma vantagem: os dois mais velhos ajudam a arrumar a casa e colaboram com os pais, levando ou buscando os mais novos na escola e na creche. Como vários parentes moram próximos, Juliana não tem encontrado dificuldades para lidar com os filhos. “Quando faço chinelos, Davy fica comigo enquanto os outros dois pequenos brincam”. A grande queixa diz respeito à bagunça generalizada, quando eles colocam a casa de pernas para cima, “mas são boas crianças, não falam palavrões e são tranquilos”.
Os exemplos de famílias numerosas se avolumam. Regina Barros Pereira, de 30 anos, e Roque Rimoldi, de 41 anos, têm quatro filhos: Jhonata, nove anos, Tainá, sete, Mateus, cinco, e Michele, que acaba de completar um ano. Regina tem ainda uma filha do primeiro casamento, Natasha, hoje com 15 anos. A explicação para uma prole tão grande está na ponta da língua de Regina: “Como tenho varizes, não abuso da pílula. Sigo a tabelinha”.
Ela conta que Tainá, Mateus e Michele foram “acidentes” e que há anos aguarda para fazer uma laqueadura das trompas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A cirurgia pretendida por Regina promete uma esterilização definitiva, impedindo a gravidez em quase 100% dos casos. Ela conta que quando usa pílula por alguns meses, as varizes das pernas doem e causam inchaço. “O ginecologista, então, me encaminha para o clínico geral com vistas a uma consulta posterior com o angiologista. Só que não tenho conseguido marcar hora no Posto de Saúde e a agente de saúde da família, que poderia me auxiliar, não passa por minha casa há pelo menos um ano”, lastima-se a esposa de Rimoldi. Angiologista é o especialista no tratamento clínico das doenças ligadas às artérias, veias e aos vasos linfáticos.
Regina e Roque estão tentando juntar dinheiro para fazer a cirurgia pela rede particular. Ele, que é maquinista de terraplanagem, tem uma caminhonete que poderá ser vendida para ajudar na concretização desse projeto. Ela é dona de casa e pretende começar a trabalhar fora agora que a mais nova completou um ano. Para isso, Regina conta com a ajuda de uma vizinha, que se propõe a cuidar das crianças.
O casal vive em uma pequena chácara na Grande São Paulo. Regina conta que Roque mudou-se para lá há 14 anos, como caseiro. Mas o dono do lugar simplesmente desapareceu, deixando de pagar o salário do marido. Orientado por um advogado, os Rimoldi passaram a saldar os carnês do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) da propriedade, tornando-se dono dela, anos mais tarde, graças a uma ação de usucapião vitoriosa.
Além do salário de Roque, o casal conta com a renda de dois inquilinos que vivem na chácara. Regina ainda trabalha como vendedora autônoma, e, no momento, comercializa tintas imobiliárias. “Nossa vida não tem luxo, mas conseguimos sustentar os filhos sem grandes problemas”, ela garante.
A filha mais velha, Natasha, mora com a avó materna, que se mudou para um apartamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) – por ser uma pessoa idosa, exigiram que tivesse acompanhante. A vida com os quatro filhos mais novos é agitada. “Fico atarantada com eles, mas meu marido ajuda quando se trata de impor disciplina”. Com tantos filhos, Regina compara seu papel de mãe ao de uma professora em sala de aula. “Dá trabalho, mas é gratificante”.
A despeito dos exemplos cada vez mais presentes de famílias numerosas, a tendência que retrata casais com apenas um ou dois filhos deverá se manter firme e forte. O IBGE estima que daqui a 20 anos as mulheres brasileiras estarão concebendo, na média, 1,5 filho, basicamente a mesma taxa de fecundidade atual da Europa.
Laços afetivos
Para o psicólogo José Carlos Ferrigno, a família brasileira está em processo de mudança desde os anos 1960, quando a mulher passou a trabalhar fora de casa e o índice de fertilidade feminina caiu. Em vez da família definida por laços biológicos – que tem como emblema o núcleo formado pelos pais e seus filhos –, hoje predomina o critério afetivo que une um conjunto de pessoas que coabitam e têm relação de cooperação no orçamento doméstico, independente da idade ou sexo. “A família nuclear tradicional hoje é mais um modelo ideal do que algo estatisticamente frequente”, diz.
Ferrigno faz uma observação inusitada, fruto de seu trabalho na área de convívio entre gerações: atualmente, muitas pessoas que estão entrando na faixa dos 60 anos moram com os amigos, em uma espécie de “república da terceira idade”, diante da incerteza quanto ao amparo futuro por parte de suas famílias biológicas. Esse grupo, pelos critérios de afeto, constitui um arranjo familiar. “A marca da família hoje é a diversidade, que é tanta a ponto de termos dificuldade de conceituá-la”.
Mesmo sem um número grande de filhos, as famílias estão aumentando, observa o psicólogo. O aumento da longevidade permite que hoje encontremos famílias com até quatro gerações que convivem de forma próxima. Por motivos econômicos, os filhos hoje continuam na casa paterna em vez de “criar asas”, provocando um fenômeno chamado de “síndrome de ninho cheio”. Além disso, com um segundo ou terceiro casamento, frequentemente os filhos retornam à casa dos pais após uma separação. Vários casamentos derivam para famílias maiores, que reúnem filhos e enteados do casal.
Com doutoramento em psicologia social e especialização em gerontologia, Ferrigno destaca que até mesmo o papel da família na sociedade está em mutação. “No período anterior à Revolução Industrial, quando predominava a atividade agrícola, a família era uma unidade de produção, fornecendo braços para a exploração da terra”. Com a industrialização e o crescimento das cidades, a família encolheu e se tornou uma unidade de consumo de bens e serviços.
Neste momento, diz o psicólogo, voltamos a ter uma família extensa, com avós que provêm renda para os demais membros da família, graças à aposentadoria ou benefícios sociais. Assim, os idosos deixaram de ser um ônus e passaram a representar um bônus para núcleos familiares.