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“Brasileiro cultua a aparência”
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Poucas pessoas têm tantas histórias para contar quanto Ivo Pitanguy. A primeira digna de nota está relacionada com o seu nascimento. Oficialmente, Pitanguy veio ao mundo em 5 de julho de 1926, em Belo Horizonte, mas a certidão oficial feita por seu pai em cartório registra o ano de 1923. Confusões à parte, o médico cuja trajetória profissional se confunde com o advento da cirurgia plástica no Brasil prefere mesmo dizer que já está caminhando para o aniversário de número 92 talvez para enfatizar a vitalidade que esbanja.
Pelas hábeis mãos de Pitanguy, considerado um dos papas da cirurgia plástica mundial, passaram celebridades nacionais e internacionais, como a atriz italiana Sophia Loren e o piloto austríaco Niki Lauda. Todavia, a lista de pacientes e amigos ilustres é um assunto que não parece deslumbrar o pacato e observador médico mineiro radicado há muito tempo no Rio de Janeiro, onde criou os primeiros cursos de especialização em cirurgia plástica do país. “É uma satisfação enorme poder transmitir o bom conhecimento”, afirma. Pitanguy também foi o responsável por levar serviços de atendimento médico em hospitais públicos para aqueles que não podem pagar por uma cirurgia plástica.
Nesta entrevista, concedida em sua luxuosa clínica sediada no bairro de Botafogo, na capital carioca, Pitanguy também se deixou levar pela filosofia para explicar sua impressionante longevidade e a invejável capacidade de conciliar o elevado número de compromissos que recheiam sua agenda: “o tempo não se mede pelo espaço de horas, mas pela intensidade que se dá a elas”, define.
Problemas Brasileiros – Em 2014, pela primeira vez na história, o Brasil superou os Estados Unidos em número de cirurgias plásticas, tornando-se o campeão mundial nessa prática. Foram quase 1,5 milhão de operações, ou 13% do total global. O que explica esse fenômeno?
Ivo Pitanguy – Não existe uma explicação única. Em primeiro lugar, creio que a população brasileira é muito consciente de sua aparência. Ela se expõe muito ao sol, não se esconde em roupas, enfim, é muito consciente de seu corpo. Então, a cirurgia plástica foi aceita como mais uma possibilidade de as pessoas se sentirem bem com a própria imagem. Mas essa não é a razão principal. Na minha geração, ensinava-se muito pouco de cirurgia estética. Então, junto com alguns colegas, criamos no hospital da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro uma estrutura em que se ensinava cirurgia reparadora e estética, reafirmando a importância de levar em consideração os desejos das pessoas. Isso teve o mérito de trazer para as classes menos favorecidas também a cirurgia estética, além da cirurgia meramente reparadora. Nós formamos muitos médicos com essa capacitação. Outro dado importante é que surgiram outras escolas que passaram a trilhar o mesmo caminho da nossa. Então, há a vontade de se transmitir o conhecimento. Isso fez com que o Brasil, hoje, tenha cirurgiões plásticos espalhados por todo o seu território, um cenário que contrasta com o de outros países. Se você for a Aracaju [SE], a São José do Rio Preto [SP] ou a Juiz de Fora [MG] vai encontrar um cirurgião bem treinado. A cirurgia plástica no Brasil adquiriu qualidade e respeitabilidade.
PB – Qual é a diferença entre a cirurgia plástica estética e a plástica reparadora?
Pitanguy – Essa diferença não existe. A cirurgia plástica é uma só. Opera-se um indivíduo para elevar seu bem-estar e também para melhorar a relação com a sua imagem. Por exemplo: se alguém nasce com uma orelha para a frente, pode-se fazer uma cirurgia estética, por conta de uma deformidade congênita. Se, por acaso, nasce com lábio leporino, a cirurgia é puramente reparadora, mas depois passa a ser estética para torná-lo igual ao lábio normal. É necessário dar relevância à cirurgia plástica como um todo e isso se reflete no ensino. É importante entender a profundidade que existe em tratar um traumatismo esteticamente.
PB – Lipoaspiração, implante de silicone nas mamas e operação de elevação dos seios são os procedimentos mais comuns, segundo levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética. As mulheres ainda recorrem mais a cirurgias plásticas do que os homens?
Pitanguy – É preciso falar de cirurgia plástica de uma maneira mais ampla, e não nesse ou naquele tipo de cirurgia, porque, como já afirmei, cirurgia estética e cirurgia reparadora se confundem muito. Um dos procedimentos mais comuns entre as mulheres é a cirurgia abdominal para aquelas que têm muitos filhos, aglutinando aspectos funcional e estético ao mesmo tempo. A lipoaspiração, por exemplo, é feita aqui em condições iguais às de outros países e tem indicações limitadas. Ela é bem indicada para as lipodistrofias e gorduras localizadas. Mas não se emagrece ninguém com lipoaspiração.
PB – É possível traçar um perfil dos brasileiros que buscam uma cirurgia plástica? Esse perfil vem mudando ao longo do tempo?
Pitanguy – Existe hoje em dia uma certa mudança, sobretudo devido à facilidade da exposição da imagem. Isso fez com que a população se nivelasse quanto à procura de uma imagem ideal. O marketing exagerado fez surgir figuras ideais que não podem ser reproduzidas. Outro ponto: as pessoas começaram a ficar mais obesas, criando um campo muito grande para as cirurgias que tratam da obesidade. Cada vez mais existe a necessidade de que o cirurgião plástico seja bem formado para orientar quem deseja fazer algum tipo de procedimento. Nesse aspecto, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica é bastante atuante e se ocupa da qualidade e fiscalização dos cursos de formação de cirurgiões. Somos um dos poucos países em que existe hegemonia de uma entidade. Em outros lugares, há várias delas brigando.
PB – Como o senhor avalia as críticas de que existe uma obsessão por cirurgias plásticas no Brasil, alimentando a construção de um padrão estético preconceituoso que não corresponde ao da maioria dos brasileiros?
Pitanguy – A formação do cirurgião é que vai fazê-lo dizer ao paciente se ele precisa mesmo ser operado ou se deve buscar outro tipo de ajuda. O importante é que o profissional – antes de ser cirurgião – seja médico, para saber aconselhar o paciente. A cirurgia plástica não deve ser banalizada. Ela deve ser vista como um ramo da cirurgia geral e feita em indicações apropriadas.
PB – Recentemente, a conhecida modelo brasileira Andressa Urach sofreu uma grave infecção em decorrência da aplicação de hidrogel. Casos semelhantes já tiveram grande repercussão, como o da modelo Claudia Liz e do cantor Marcus Menna, que entraram em coma durante procedimentos de lipoaspiração. O que explica um caso como esse: falha do médico, falta de assepsia da clínica ou não confiabilidade do tratamento?
Pitanguy – Sem entrar nos detalhes de nenhum desses casos, uma das questões mais importantes no campo da cirurgia plástica é não utilizar produtos que não tenham uma longa comprovação clínica e laboratorial. Há produtos que não devem ser utilizados ou são utilizados erroneamente, muitas vezes até por pessoas que sequer têm formação em medicina. Além disso, alguns itens não deveriam ter sido liberados. Aliás, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária [Anvisa] já proibiu um tipo de hidrogel. É muito difícil injetar alguma substância que o organismo tolere. Então, é importante saber o que injetar. Nós vemos tanto aqui na clínica privada quanto na Santa Casa muitos casos de pessoas que vão à academia para injetar óleo mineral para ganhar músculos, uma barbaridade. É essencial que o paciente saiba que não pode aplicar qualquer coisa no seu corpo e que deve procurar se informar bem, com orientação de um médico competente.
PB – O senhor é a maior referência em cirurgia plástica no Brasil e uma das maiores do mundo. Além de criar técnicas inovadoras, também organizou os primeiros cursos dessa especialidade no país. Em que papel o senhor se sente mais à vontade: no de cirurgião ou no de professor?
Pitanguy – Na vida, quando se tem a oportunidade de transmitir o conhecimento, é o mais importante que se pode fazer. Lutei muito para aprender sobre cirurgia plástica porque, simplesmente, na minha época não se ensinava sobre ela. Então, comecei a fazer isso, e nosso curso vem há 53 anos formando médicos cirurgiões. Tempos atrás, fizemos uma foto da primeira turma formada junto com o grupo diplomado de número 50. É uma satisfação enorme poder transmitir o bom conhecimento. Ao mesmo tempo, professor é aquele que aprende, não só o que ensina. Aprende com o convívio. Esse convívio faz com que a curiosidade permaneça viva. É um conjunto da alegria de viver e de ensinar.
PB – Interessados de fora do Brasil procuram o senhor para aprender sobre cirurgia plástica?
Pitanguy – Como fui pioneiro em diversas técnicas, durante toda a minha vida, recebi gente do mundo inteiro. Mas também é muito importante ter por perto as pessoas simples, aprender que entre o mendigo e o rei não há diferença. Você aprende lidando com todo mundo.
PB – Muitas pessoas que sofrem acidentes necessitam de cirurgia plástica para recuperar a configuração original do corpo. Como o senhor, que trabalhou na Santa Casa e no hospital municipal Souza Aguiar, ambos no Rio de Janeiro, avalia as políticas públicas direcionadas a pessoas que não podem pagar por um cirurgião plástico particular?
Pitanguy – No aspecto técnico da cirurgia plástica, o Brasil até que está relativamente bem. Estamos mal é na orientação e na qualidade dos serviços públicos. Se pensarmos em serviços que dependem de verbas, como o tratamento de grandes queimaduras, aí é que não estamos bem mesmo. Não somos comparáveis a outros países, a outros grandes centros. São serviços que, além do conhecimento médico, necessitam de manutenção – e isso custa dinheiro. Os enfermeiros, os medicamentos, enfim, todo o tratamento de um grande traumatizado custa muito caro. Nesse sentido, somos inferiores ao que de melhor se faz no exterior devido à nossa situação social. Mas a qualidade da medicina e da cirurgia plástica praticadas aqui são excelentes.
PB – O senhor deixou de fazer cirurgias há quase dois anos. Sente falta?
Pitanguy – Até os 90 anos, eu ainda operava. Parei sentindo que havia cumprido meu tempo. Mas ainda tenho um imenso prazer em dar consultas a pacientes, grupo selecionado de pessoas que gostam de ter a minha orientação, só que agora em número mais reduzido do que no passado. Também conduzo cursos de formação, um de pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-RJ], que tem mais de 50 anos, e outro no Instituto de Pós-Graduação Médica Carlos Chagas. Tudo isso criado no âmbito do Instituto Ivo Pitanguy, que engloba a Santa Casa e a parte do ensino. Também continuo atuando na área científica, junto com um grupo de pessoas associadas da maior qualidade.
PB – O trabalho do cirurgião tem um quê do ofício do artesão?
Pitanguy – Em todo trabalho manual existe muito do artesão. O artesão puro não é valorizado. Mas não há uma grande pintura sem o artesanato. Não há uma grande escultura sem o artesanato. Michelangelo, por exemplo, foi um grande artesão italiano. Na medicina, você tem que – quando possível – conceber o útil. Mas depois você entrega ao organismo, que vai ter reações próprias. É uma profissão de intenções, não de fins absolutos, porque se assim fosse seríamos deuses – e não somos! A medicina é uma arte aplicada. Nas classificações antigas, desde os tempos de Aristóteles, a medicina não é tida como uma ciência dogmática, mas especulativa. Você está procurando encontrar a solução. Você não tem a solução. O médico precisa ter a vontade de acertar e essa vontade é conduzida pela formação, pelo estudo, pela especialidade. A medicina não pode ser inventada e reinventada, ela tem que ser feita, estudada e sedimentada ao longo de muitos anos.
PB – O senhor foi amigo de escritores consagrados, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, seus conterrâneos de Minas Gerais. Também manteve contato com personalidades como o filósofo Jean-Paul Sartre, o pintor Salvador Dalí e o cineasta Roman Polanski. O senhor é um grande amante das artes?
Pitanguy – Sou um grande amante da vida. Amo primeiro a natureza. Sempre gostei muito de bicho. Quando era garotinho, gostava tanto de bicho quanto de gente. E, desde jovem, sempre fui esportista. Gosto muito da disciplina que o esporte dá – e que trago para a vida. E gosto muito do convívio humano. Gosto da vida em toda a sua amplitude. Mas, por conta da medicina e do trabalho, evidentemente, sobra pouco tempo. Só que o tempo não se mede pelo espaço de horas, mas pela intensidade que se dá a elas. Por exemplo: se eu ia dar uma conferência em Kuala Lumpur, aproveitava para conhecer um pouco da Malásia. Aprendi muito sobre a vida nessas conferências que fiz pelo mundo, sendo levado por motivos puramente profissionais. Devo muito às obrigações profissionais e soube tirar proveito delas. E, evidentemente, gosto muito da vida familiar, de minha mulher, de meus filhos, sinto que a família é um núcleo fundamental. Tive a sorte de nascer numa família unida: meu pai era médico e minha mãe era uma grande senhora, uma grande humanista. Compreendo a divergência entre as pessoas, entendo que os filhos não têm de ser iguais aos pais. Mas é importante que exista um amor comum.
PB – O senhor recentemente lançou um livro com suas memórias intitulado Viver Vale a Pena. Como é sua relação com a literatura?
Pitanguy – Gosto muito de ler, e escrevo um pouco. Escrevo, sobretudo, trabalhos científicos, e são mais de 900 artigos e 40 livros. Mas Viver Vale a Pena é uma obra sem pretensões, que conta um pouco disso sobre o que estamos conversando: a luta por um ideal e a luta para transmiti-lo.
PB – O senhor se arrisca a escrever poemas, narrativas ficcionais?
Pitanguy – Não. Sou um grande leitor de poesia e gosto muito de literatura. Leio muito a grande literatura mundial. Adoro todos os clássicos. Graças a Deus, formei uma cultura muito sólida, começando por Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare. Tenho toda a minha formação feita por prazer, que continuo a cultivar, porque gosto de cultuar o espírito.
PB – E a sua relação com a música?
Pitanguy – Ouço o tempo todo música clássica. Gosto muito de Mozart, de Bach, mas quando estou calmo também gosto de bossa nova. Da nossa música, prefiro o samba romântico, mais antigo, mais clássico. Não gosto de música eletrônica e adoro jazz, Billie Holiday, por exemplo. Tudo o que faço, se possível, faço com música. A música é penetrante, conferindo a você uma consistência maior.
PB – Chico Xavier foi caseiro de sua família. Madame Satã foi seu guia em mergulhos e caçadas submarinas. Em uma entrevista, o senhor afirmou que “sempre teve curiosidade pelas pessoas mais simples”. O que o senhor quis dizer com isso exatamente?
Pitanguy – Eu gosto muito de pessoas. E acho que a cultura popular é uma forma riquíssima de cultura. O Chico Xavier já é uma cultura do além... [risos].
PB – O senhor se interessa por política?
Pitanguy – Sim, tenho grande interesse pela política. Como todo mineiro, sou alguém que observa muito. Porém, jamais seria um político porque, devido ao meu temperamento, não sou de fazer grandes concessões para aquilo em que não acredito. Sou muito franco, muito aberto, e isso forma um mau político.
PB – Existe alguma figura política que o senhor admira? Em quem votou nas últimas eleições?
Pitanguy – A figura política que mais admirei e com quem convivi muito foi Juscelino Kubitschek. Tinha por ele uma grande admiração, pelo entusiasmo que conseguia transmitir às pessoas. Poucas pessoas têm uma luz interna e são capazes de transmiti-la a outras. Nas eleições do ano passado, Aécio Neves fez uma campanha bonita. Porém, acho que a política atualmente no Brasil está vivendo um momento de muita fraqueza. Na verdade, estamos muito pobres em política. E essa pobreza está refletida na expressão de desgosto de parcela da população pela política, esperando que alguma coisa nova surja.
PB – Além de se dedicar ao trabalho, o senhor sempre teve uma vida muito ativa: pratica mergulho e é faixa preta de caratê, por exemplo. Como equilibrar tantos pratos ao mesmo tempo?
Pitanguy – Se você tiver curiosidade por muitas coisas, vai se enriquecer mais. Eu tive essa sorte. E continuo tendo. Sei, por exemplo, o que aconteceu na última luta de MMA [Mixed Martial Arts]; estou a par da classificação do futebol; acompanho a NBA [a liga de basquete norte-americana], e estou inteirado sobre os tempos da natação. Se você der a cada momento uma intensidade maior, sua vida será muito mais rica em anos e os momentos mais longos.