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Francisco Brennand

Foto: WSchulz
Foto: WSchulz


Artista relembra fatos marcantes dos mais de 70 anos de carreira e fala sobre a criação do ateliê que reúne centenas de obras suas em Recife


Considerado um dos maiores artistas plásticos brasileiros, o pernambucano Francisco Brennand possui uma obra que se estende pela escultura, cerâmica, arquitetura, desenho e pintura. O artista iniciou sua formação nos anos 1940, quando frequentou cursos em Recife e em Paris, onde descobriu o gosto pelos trabalhos em cerâmica. Em 1971, começou a reforma de uma antiga olaria da família, hoje transformada em um ateliê com centenas de obras dispostas em um espaço de mais de 15 mil m². Nesta entrevista, Brennand, que tem trabalhos em exibição permanente em unidades do Sesc como Interlagos, Pinheiros e Sorocaba, fala sobre a relação com esse espaço de criação e sua trajetória artística marcada por esculturas repletas de motivos arcaicos e figuras fantásticas.

Quando você descobriu que a cerâmica poderia ser não apenas utilitária?
Eu não tenho nada contra a utilidade, ela não anula nem a perfeição nem a procura formal. Eu nasci dentro de um universo industrial cerâmico. Minha família se dedicava desde 1917 à cerâmica, meu pai era um homem fascinado pela matéria cerâmica, além de ser um empresário, e chegou a fazer telhas e tijolos, porcelana, azulejo, todo o universo cerâmico. Eu tinha, como qualquer artista herdeiro de determinados conceitos do século 19, preconceito com as chamadas artes menores, em que a cerâmica estava embutida. A arte maior era a pintura a óleo sobre tela. Até hoje, as grandes fortunas que se dão para uma obra de arte são para pinturas a óleo. Eu tinha esse mesmo preconceito e não tinha, até a minha primeira viagem a Paris em 1949, intenção de fazer cerâmica. O pintor Cícero Dias, pernambucano como eu, estava em Paris e me convidou para ver uma exposição de Picasso. Fui certo de que ia ver, pela primeira vez, os quadros a óleo de Picasso, mas para a minha grande surpresa era uma exposição de cerâmicas. Essa belíssima exposição me deixou boquiaberto e, mais do que tudo, humilhado, porque me demonstrou de imediato que não existia arte maior e arte menor. Esse problema de ser tela, madeira, gesso ou o que for pouco importava.

Depois que você viu essa exposição, mudou a percepção?
Fiquei maravilhado para, logo depois, verificar que vários pintores da escola de Paris haviam sido impulsionados pela cerâmica. A matéria cerâmica de Joan Miró, sob o ponto de vista de riqueza, era muito maior do que o material que Picasso utilizava, mas isso não fazia com que o trabalho de um fosse melhor do que o do outro. Era apenas uma coisa que me atraía porque, quando voltei para o Brasil, comecei a receber encomenda de murais. Eu, um pintor a óleo, que trabalhava com pequenos formatos, comecei a receber encomenda de grandes formatos.

Como foi essa adaptação para formatos maiores?
Uma coisa é você trabalhar em uma tela que tem alguns centímetros ou, no máximo, um ou dois metros. Outra é você receber uma encomenda de 20 metros quadrados. Há certas coisas que você pode ampliar e outras que você não pode ampliar. A figura humana é uma delas. Se você amplia excessivamente, fica monstruosa. Outros elementos, como os florais, deixam-se ampliar maravilhosamente bem.

No que a sua escultura em cerâmica difere da pintura?
Na pintura eu me deixo levar pelo erotismo, me deixo levar muito fortemente pela forma feminina, pela redondeza, a maciez, curvas e coisas que não me comovem na cerâmica. Na cerâmica isso pode estar contido em um vaso e em uma outra forma qualquer na qual a mulher é lembrada de maneira indireta, e não quando eu faço uma mulher que tem olho, nariz, lábios, etc.

Esse universo arcaico e essas figuras fantásticas que você faz estão ligados a um mergulho na cultura pernambucana?
Não, existe essa incompreensão de que eu tenho relação com a arte pernambucana. Ariano Suassuna foi um dos meus grandes amigos, com quem eu tive 30 anos de convivência amigável. Ele até apelidou o nosso grupo de “academia dos emparedados”, porque nós discutíamos todos os problemas do mundo e o mundo nos ignorava. Mas eu nunca tive nada a ver com o movimento armorial [movimento artístico fundado por Ariano Suassuna com objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro]. É mais provável que Ariano tenha se apoderado de algumas ideias que eu tive a respeito de mural, por exemplo, como o fato de a pintura ficar na superfície da parede e não furá-la com a perspectiva.

Como se dá a criação desses murais em grandes superfícies?
Você não pode pegar um edifício e criar uma outra dimensão. Eu peguei uma encomenda em 1961, da Bacardi, para revestir um prédio em Miami. Estudei isso e logo parti para elementos vegetais. Os arquitetos ficaram preocupados – por se tratar de um artista sul-americano – com a possibilidade de eu utilizar cores carnavalescas, mas eu tinha conhecimento do que é cerâmica em obras externas e o compromisso com o volume do prédio. Eu os acalmei de imediato dizendo que iria pintar o prédio de azul e branco, algo que vem da tradição ibérica. Mais tarde esse mural foi premiado pela prefeitura de Miami. O aparecimento dos grandes formatos me fez deixar de lado a figura humana e partir para a abstração, tendo como pretexto o mundo vegetal. Eu já não estava preocupado com problemas de deformação, porque quem é que iria reclamar de um caju ter forma de banana ou de maçã? Se ele fosse uma esfera ou um cilindro? Se a castanha fosse enorme ou diminuta? Ninguém reclama disso. Reclama se você fizer um homem com orelha de burro. No caso do mundo vegetal ninguém reclama de nada, então tive a liberdade de criar formas.

Esses arcaísmos que você traz na sua obra vêm de onde?
Os meus arcaísmos nasceram no momento em que eu me predispus a fazer cerâmica sem nenhuma base de como eu iria me expressar. Fui aluno de Fernand Léger e de André Lhote, então eu sabia admirar os mestres da pintura moderna, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, Picasso, Matisse, mas quando fui fazer cerâmica eu não ia fazer nem a cerâmica que Picasso fazia nem a que Miró estava fazendo. Eu tinha que fazer uma cerâmica um pouco ligada ao mundo vegetal, às formas femininas, à anatomia do homem e da mulher fragmentada, sem nenhuma necessidade de fazer a figura por completo. Essa liberdade eu nunca tive na pintura a óleo e nem quero ter. Eu a tive na cerâmica, continuo a ter, e vai haver sempre essa disparidade entre aquilo que eu faço como pintor e o que eu faço como ceramista, mas dizer que nós somos dois é pouco. Nós somos vários, enormemente vários.

Como começou a reforma da antiga olaria e a criação deste seu ateliê?
A primeira motivação de reconstrução desse conjunto foi uma homenagem ao meu pai, que havia feito isso e estava em ruínas. Meus irmãos empresários, com a frieza de todos os empresários, não se importavam. Mas não existe ruína que seja ruína definitiva, a ruína é uma ideia abandonada e eu me apossei dessa ideia e comecei a reconstruir na maior simplicidade. Não aceitei a presença de arquitetos. Eu preferi a arqueologia industrial, pela qual é possível velhas fábricas e transformá-las em espaços culturais. Isso se fez com o museu d’Orsay, que era uma estação de trem em Paris, e no Sesc Pompeia, que era uma fábrica de tambores. A ideia de fazer, de imediato, e reconstruir uma ruína de pedra sobre pedra e tijolo sobre tijolo não deixava de ser um propósito fetichista, no qual eu excluía qualquer ideia de estética, de razão. Foi um propósito baseado na minha memória de infância. Eu e meus irmãos brincávamos aqui e achávamos esse lugar extremamente misterioso. Nós fomos povoando de histórias essas estruturas. A partir daí, consegui dar uma configuração que estivesse de acordo com as minhas lembranças.

Esse imaginário que você pratica na escultura vem desse momento da sua infância?
Não sei se vem da infância ou se vem de leituras. Cultivo tanto a literatura quanto a pintura. Por exemplo, tenho aqui um Templo ao Ovo, mas isso não veio do nada. Eu tinha visto uma pintura de Piero della Francesca, que é uma madona com um ovo sobre a cabeça. Salvador Dalí tirou partido disso também. Se você for ao museu do Dalí, vai encontrar ovos de todos os tamanhos, baseados nessa mesma madona. Eu, aproveitando uma antiga base de uma máquina gigantesca, um triturador de argila que tinha aqui no pátio, criei esse Templo ao Ovo. Aí o ovo precisava ser protegido por guardiões. Poderiam ser guerreiros, ou dragões, serpentes, lagartos. A escolha desses elementos veio como obra de determinados acasos. Entrei um dia em casa e encontrei minhas filhas lendo uma história de Simbad. Na narrativa, os marujos chegam a uma ilha, encontram ovos gigantescos e vão mexer neles. Nesse momento, pássaros enormes jogam pedras nos navios, que naufragam. Botei isso na cabeça, e por acaso na minha primeira viagem a Paris eu li um livro de Freud chamado Os Cadernos de Infância de Leonardo da Vinci [do francês, Un Souvenir D’enfance de Léonard de Vinci]. Todo aquele livro se baseava em uma pesquisa a respeito de um passeio que Freud havia feito no Louvre durante o qual achara que a Santana, de Leonardo, no seu contorno, dava a impressão de um abutre. Aí Freud se pergunta por que Leonardo associou a maternidade a um abutre e, pesquisando os cadernos de infância de Da Vinci, ele nota um episódio em que, aos dois anos, o artista estava chorando de fome quando parou um abutre na janela, voou até a borda do berço e lhe deu de mamar com a cauda.

Você pertence a uma geração que se preocupa muito com a identidade do Brasil. Como isso influenciou a sua obra?
Aí é onde começam certas vertentes que me unem a Ariano Suassuna. Por exemplo, quando fiz o painel da Batalha dos Guararapes, coincidiu com a batalha de Jânio Quadros. Tanto que no painel aparece Jânio Quadros levantando a mão direita. É uma homenagem a ele e à expulsão dos holandeses, que foi cantada em prosa e verso com paixão.

Hoje, aos 87 anos, como é o seu trabalho?
Nos bons tempos cheguei a morar aqui neste ateliê. Com o tempo, isso já não era possível. Moro perto daqui, e este local é muito mais minha casa do que qualquer outra coisa. Não posso fazer longas viagens e nem gosto de viajar de avião. Diminuí consideravelmente as minhas viagens e as minhas exposições, consequentemente fiquei fora do mercado, mas foi o que eu fiz.


“A ideia de reconstruir uma ruína de pedra sobre pedra e tijolo sobre tijolo não deixava de ser um propósito fetichista, no qual eu excluía qualquer ideia de estética, de razão. Foi um propósito baseado na minha memória de infância”


“Essa liberdade eu nunca tive na pintura a óleo e nem quero ter. Eu a tive na cerâmica, continuo a ter, e vai haver sempre essa disparidade entre aquilo que eu faço como pintor e o que eu faço como ceramista”


“O aparecimento dos grandes formatos me fez deixar de lado a figura humana e partir para a abstração, tendo como pretexto o mundo vegetal”


“Na pintura eu me deixo levar pelo erotismo, pela forma feminina, a redondeza, a maciez, as curvas e coisas que não me comovem na cerâmica. Na cerâmica isso pode estar contido em um vaso e em outra forma qualquer em que a mulher é lembrada de maneira indireta”