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Mulheres indígenas na liderança

Elas são mães, parteiras, xamãs, cacicas. Cuidam dos filhos, dos mais velhos, do marido e da terra. Mas, além de todos esses papéis, elas são mulheres indígenas que lutam pelos direitos de suas comunidades. Segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a atual população indígena brasileira (presente nas cinco regiões) é de 896,9 mil pessoas, sendo a distribuição entre homens e mulheres equitativa. Ainda de acordo com a pesquisa, foram identificadas 305 etnias, como Tikúna, Yanomámi e Guarani, e um total de 274 línguas. Uma vasta cultura desconhecida por milhões de outros brasileiros, salvo em momentos em que se abre espaço para ouvir e falar sobre tantos povos que formam o país. Iniciativas como a recém-aberta exposição Ser Essa Terra: São Paulo Cidade Indígena, no Memorial da Resistência (terceiro andar do edifício da Estação Pinacoteca), em cartaz até 22 de abril, e o projeto Sawé, que desde 2018 realiza no Sesc Ipiranga atividades com foco nas lideranças políticas indígenas, em especial no papel das mulheres. A pesquisadora e doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade do Rio de Janeiro, Sandra Benites, e a advogada Naiara Tukano, que coordenou no Ministério da Saúde, entre 2014 e 2015, o Projeto de Intercâmbio Cultural para resgate das práticas tradicionais relacionadas à saúde, contam como é ser é ser uma mulher indígena, suas lutas e o amor pela terra.

 

Mulheres indígenas na luta: contexto atual


Sandra Benites


O corpo de Nhandesy é concreto, é chão onde se pisa. O que dá a vida, dá alimentos, é o corpo da Nhandesy. Nhanderu aparece como algo de cima, como espírito, nhe’e, tudo que é coisa de cima é corpo de homem: ywytu (vento), pytu (respiro), ar, coisas aéreas. Tudo isso representa o corpo masculino. Nhandesy e Nhanderu são complementos um do outro. Nhandesy sempre vai precisar do ar, do respiro, do vento, da chuva e o ar não faria sentido sem a terra, sem chão. Porém, Nhandesy é mais concreta, é prática, é vivida, é um corpo que ocupa mais o espaço, e Nhanderu é o ar.

Como mulher Guarani Nhandewa, percebo que há certa confusão na visão dos jurua kuery (não indígenas) quando se trata de mulheres indígenas “na liderança”. Portanto, pretendo esclarecer. Para os indígenas, de modo geral, não há uma separação entre quem tem mais poder em relação a mulheres xamãs, mulheres que trabalham nas roças ou aquelas que assumem um cargo, a exemplo de cacica, na aldeia. Geralmente, essas mulheres recebem tratamentos diferentes por terem uma função específica e mais responsabilidades nas atividades que exercem.

Não é hierarquizado o poder. Mesmo que elas sejam cozinheiras, parteiras ou mães, elas sempre têm autonomia para circular por todos os espaços de luta. Elas têm voz para dizer sobre as necessidades e demandas delas nas comunidades. Elas são reconhecidas como mulheres de luta, independentemente dos espaços onde estão inseridas. São admitidas como lideranças não apenas por assumirem um cargo importante. Elas são importantes em quaisquer papéis ou espaços em que atuam.


A participação das mulheres indígenas está nas decisões da vida das comunidades, sejam elas diretas ou indiretas. Digo direta e indiretamente porque há estratégias de participação delas nas comunidades em qualquer decisão. Aqui cito a fala de um professor Guarani Mbya em 2012 numa roda de conversa na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele disse: “Quando vou para uma reunião, primeiro ouço as mulheres que me rodeiam para levar as falas delas. Portanto, meu corpo é meu, mas minha cabeça é delas, dessas mulheres que estão à minha volta. Por isso, eu digo que mesmo que elas não estejam presentes nas reuniões, elas estão presentes por meio da representação do marido, do irmão, do pai, de outra mulher ou de familiares”.

 

Todas na liderança

Não estou dizendo que as mulheres indígenas nas lideranças estão à frente. O que ocorre é que as mulheres que estão nas suas aldeias como mães, cozinheiras e parteiras são pessoas importantíssimas como qualquer outra mulher que esteja na luta. Percebo que o protagonismo das mulheres indígenas não é apenas olhar a partir de ângulos de “lideranças”. São protagonistas aquelas que estão em universidades, partidos políticos, associações, etc. São protagonistas da própria fala.

Todas elas são fundamentais para a luta de seus povos, não importa os espaços que elas ocupam nas comunidades. Elas são reconhecidas como mulheres kunhangue py’a guasu (corajosas), mulheres de luta  pelas suas terras, pelo bem-estar das comunidades e pelo fortalecimento de suas identidades. As diferentes etnias brasileiras estão nessas lutas, de modo geral. Além de se verem divididas entre tantos afazeres e responsabilidades, elas enfrentam o desafio da invisibilidade e buscam forças em outras mulheres indígenas e não indígenas.

O risco que corremos dessa busca pelo protagonismo é o de tornar aquelas que sempre ficam nas suas aldeias mais invisíveis, por elas não enfrentarem espaços intelectuais? Nem sempre aquelas que têm a sabedoria do seu povo gostam de aparecer ou falam a língua portuguesa, embora a sabedoria delas seja extremamente importante. Esse é o caso de uma parteira, alguém superimportante nas comunidades.
O papel de uma parteira não é apenas o de cuidar das grávidas. Geralmente, é ela quem orienta a família da gestante; quem orienta as mulheres para terem cuidados com a saúde. Ela também conhece remédios para as mulheres. Por isso, é sempre importante que as mulheres sejam ouvidas. Portanto, essas mulheres enfrentam vários desafios para serem reconhecidas e valorizadas na sociedade brasileira,  já que muitas vezes são ignoradas pelas mulheres jurua (não indígena). Como médicas jurua que não consideram o conhecimento das parteiras. Ainda mais quando se trata de costumes próprios, ou seja, de identidades culturais.

 

Culturas e tradições

As mulheres indígenas sofrem vários tipos de violência por ver seu povo afetado pela violência da discriminação, por falta de terra adequada para plantar certos tipos de alimentos que fazem parte da alimentação específica do grupo do qual elas pertencem. Um exemplo disso, para nós, Guarani, de modo geral, é o chamado milho crioulo. Ele é a base principal da alimentação dos Guarani. Mas em algumas aldeias as terras não são adequadas para plantar esse tipo de milho, nem outros tipos de milho, como na aldeia Boa Esperança, localizada no município de Aracruz (ES). Lá só há eucaliptos plantados.

Para nós, mulheres Guarani, nossa sabedoria e alegria também estão relacionadas com cozinhar tembi’u porá (comida boa). Se não tiver algo para mbodjy wa’erã (para cozinhar), é uma violência contra nossa vida e sobrevivência. Os plantios, limpar para plantar, tudo isso está associado diretamente com sabedorias dos homens: eles observam a lua, o tempo certo para plantar e sempre fazem rituais para ir às matas. Segundo os anciãos Guarani, esses rituais são para pedir permissão para idjara (guardião das coisas), para irem buscar quaisquer elementos. Podem ser caças, madeiras para artesanatos ou para construção de casa.

 


Sempre corremos o risco de falar da inclusão excluindo, ou falar da igualdade mantendo desigualdades

 

Gostaria de concluir essa reflexão com as dificuldades enfrentadas na aplicação de políticas públicas para as mulheres, para discutir os corpos dessas mulheres, levando em consideração as especificidades delas no contexto em que elas estão inseridas como intelectuais, ou não, tratando de mulheres indígenas. É um equívoco dizer que as mulheres indígenas nas lideranças são aquelas que estão à frente das batalhas. As lutas das mulheres indígenas não têm esse foco principal. Não podemos universalizar vários perfis de mulheres em suas várias realidades e diferentes lutas.

Quando se trata de mulheres indígenas e da diversidade de etnias é ainda maior o desafio. No entanto, sempre corremos o risco de falar da inclusão excluindo, ou falar da igualdade mantendo desigualdades. A luta de que participamos, como algo universal, comum às lutas de todos e todas é a da demarcação de terras. Essa é a pauta principal de todas as lideranças.

Aqui gostaria de destacar uma mulher como Sônia Guajajara, uma mulher reconhecida no Brasil e até fora do país como coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma instância de aglutinação e referência nacional do movimento indígena no Brasil. Ela é uma referência para outras mulheres indígenas. Referência de encorajamento, caso algumas queiram se tornar pessoas públicas como mulheres indígenas. Na minha percepção, entendo como referência para assumir a frente de lutas como espelho.

 

Sandra Benites é Guarani Nhandewa, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); trabalha, desde 2004,
com educação indígena. Foi curadora da exposição DjaGuata Porã: Rio de Janeiro Indígena no Museu de Arte do Rio em 2017-2018. Também foi coordenadora pedagógica de educação indígena na Secretaria de Educação do Município de Maricá, RJ (2012-2014).

 

 

 

Um propósito em meio a dualidades


Naiara Tukano


Ser mulher indígena na atualidade é bastante desafiador e interessante ao mesmo tempo. Em minha trajetória, vejo alguns motivos que me fizeram ingressar na militância indígena e entendo que não se tratou de mera opção, mas da necessidade de quem se sente num mundo diferente e prefere não se calar diante disso. Sou Naiara Tukano, pertenço ao povo Yepã Mansã, situado em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Sou filha de mãe branca e do líder indígena Álvaro Tukano. Sou fruto desse encontro e, assim como muitos brasileiros, nasci da união entre diferentes raças e histórias. Herdei dois mundos bastante diferentes, até que pude encontrar a conexão entre eles.

Foi entre a dualidade e a busca incessante por encontrar meu propósito nesta terra que percorri muitos caminhos. Como mulher, vejo que tive certo privilégio de ser criada com uma visão de autonomia e de clareza sobre minha força, mas os desafios começaram desde cedo. A busca por compreender minhas raízes era inegável, mas pelo fato de eu ser mulher alguns assuntos e decisões não eram compartilhados comigo, o que está correto segundo a tradição de meu povo. No entanto, eu sempre estava pelo meio, opinando e prestando muita atenção nas pessoas, e isso me ajudou a entender o que os mais velhos pensavam.

Como filha de Álvaro tive a oportunidade de estar nos espaços políticos desde jovem, foram oportunidades que me ensinaram muito. Quando ia a TI Balaio com meu pai podia comer e ficar entre as lideranças, momentos em que ele me contava sobre nossos costumes e as relações familiares de modo geral. Aos poucos, fui entendendo minha responsabilidade e papel como indígena. Meu pai sempre me dizia: “Naná, você é Tukano e deve amar o nosso povo!”. Eu acredito que uma liderança nasce da sua capacidade de refletir sobre a realidade e de coordenar um povo com sabedoria e amor. Já um ativista nasce da postura que este tem perante o mundo e outras pessoas. Geralmente os líderes são pessoas de opinião forte que já trazem em sua personalidade essa vontade de ir além.

 

Entre livros e práticas

Minha militância como ativista indígena começou na faculdade, diante das dificuldades que nós, alunos indígenas, tivemos nos primeiros anos da implementação das cotas indígenas nas universidades. Sentíamos que aquele mundo diferente não estava preparado para nos receber. E, em meio a tantos conceitos, teorias e livros, nós sentíamos que éramos invisíveis aos olhos da universidade, onde nada, ou quase nada, dentro dos livros, tratava dos povos indígenas. Eu pensava: “Que incoerência! Um país de origem indígena que se funda no pensamento eurocêntrico, que persegue ter um modo de vida como os europeus não pode estar feliz, pois sei que, quando não sabemos quem somos ou não reverenciamos nossas origens, não temos plenitude em nossas vidas”.

Falar de índio neste país sempre foi algo estranho e residual porque muitos brasileiros ainda não desvendaram suas raízes como indígenas, negros, ou não sabem exatamente como aconteceu a miscigenação porque suas histórias foram apagadas por um Estado colonizador e integracionista que nos pintou como raças inferiores e sem sabedoria. Sem dúvida, os tempos mudaram e com a ampliação dos debates políticos e sociais em torno da questão racial, de gênero e de sexualidade abriram-se novos caminhos de mais empoderamento e diálogo na sociedade, de modo geral.

 

Eu acredito que uma liderança nasce da sua capacidade de refletir sobre a realidade e de coordenar um povo com sabedoria e amor

 

O preconceito ainda existe e o direito de sermos diferentes ainda é pouco compreendido pela sociedade, o que nos torna mais vulneráveis. Viver como índio neste país significa receber ameaças constantes. Seja pelo agronegócio, latifúndio, mercado verde, a realidade é que sempre querem avançar sobre os territórios indígenas porque as terras deles já estão sucateadas de tanta exploração e ainda querem destruir mais e mais.

Se por um lado somos reconhecidos como sujeitos diferentes perante o Estado, reconhecidos como povos originários desta terra, com cultura e costumes diferentes, por outro lado temos que lidar com políticas que atuam de forma fragmentada e incoerente. Nós, mulheres indígenas, temos muita preocupação com as futuras gerações e queremos avançar nos debates específicos das políticas para as mulheres.

 

Vozes femininas

O questionamento que trazemos diz respeito aos assuntos específicos das mulheres e que jamais poderá ser trazido pelos homens em nome das mulheres. Pelo simples fato de serem homens e não pensarem nem agirem como mulheres. Nesse sentido, a representação direta é muito importante. Isso também deve ser refletido na política, nos órgãos ou trabalhos com povos indígenas. Nossa voz deve ser ouvida de forma direta, limpa e com poder de decisão. Do contrário, estaremos reproduzindo o mesmo ato colonizador e deturpado sobre os povos indígenas.

Hoje temos professores, médicos, advogados e tantos outros intelectuais indígenas que têm condição de dialogar em pé de igualdade perante a sociedade, mas na prática o que acontece é que este lugar ainda está ocupado por ONGs, indigenistas ou organizações que ainda optam falar de índio e não falar conosco de modo direto. Temos caciques, pajés e outras lideranças de mulheres que conhecem muito bem a questão indígena e seu povo, e quando essas duas frentes se encontram o povo indígena se torna ainda mais forte.

O debate em torno da questão cultural, seja pelo papel social e histórico da mulher dentro das comunidades, seja pelo lado espiritual, está sendo transformado dia após dia. A cultura está em constante transformação e nós também buscamos uma evolução dentro de nossa cultura quando isso significa uma vida com melhor qualidade. É preciso lembrar que os grandes líderes também tiveram a oportunidade de aprender com outras visões de mundo, com amigos, professores, antropólogos... O que ocasionou uma melhor preparação dos índios para compreender o mundo não indígena. Da mesma forma, as mulheres podem aprender quando nos é dada a oportunidade certa. Por isso, me orgulho de ser mulher, mas principalmente de ser mãe e defender a vida em primeiro lugar.

 

Naiara Tukano é graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 2013, no I Fórum Nacional das Culturas Indígenas, foi eleita representante indígena no Conselho Nacional de Política Cultural (2013-2015). Em 2014 e 2015, ela coordenou, no Ministério de Saúde, o Projeto de Intercâmbio Cultural entre os povos Tukano, Dessana, Baniwa e Ashaninka, para resgate de práticas tradicionais relacionadas à saúde.


 

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