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sobre o não-lançar de memórias amassadas (ou revisitar, ressignificar, reinventar)

Cena do espetáculo Atenciosamente, Srta. N (Foto: Camila Grun)
Cena do espetáculo Atenciosamente, Srta. N (Foto: Camila Grun)

por amilton de azevedo

Antes do terceiro sinal, Natália Bastos e Luise Martins já estão em cena. Enquanto a trilha ao vivo de Martins começa a ser executada, Bastos transita entre o que parecem ser caixas de madeira de diversos tamanhos. O público descobrirá, pouco depois, que, sem fundo nem tampa, guardam objetos – cartas, uma bacia, uma xícara de chá...

Espalhadas pelo tapete, são nichos de memórias; partes da própria intérprete a serem revisitadas. No entanto, ainda que as correspondências sugiram o caráter autobiográfico de “Atenciosamente, Srta. N”– e sejam, efetivamente, pessoais – logo na primeira cena Bastos estabelece um enquadramento ficcional: a fábula de que a personagem, Senhorita N., é uma “alucinação coletiva” construída naquele momento presente, na relação com o público que a observa. Nesta mesma cena introdutória, a intérprete afirma que “o pouco que se sabe dela é construído frame a frame, 24 por segundo”.

A referência à cadência de projeção padrão do cinema pode servir como mote para a leitura de que, tal como em um filme, essa figura alucinatória será construída, a partir da seleção de Bastos – que assina também a dramaturgia – junto ao diretor Juliano Mazzuchini, de forma editada; um processo de montagem.

Nota-se, neste sentido, a escolha por uma trajetória fragmentada que, em consonância à encenação, alimenta-se de ideias do chamado teatro pós-dramático. Há, de certo modo, uma possível linearidade a ser compreendida pelo espectador. No entanto, tal lógica é subvertida pelo próprio jogo de “Atenciosamente, Srta. N”.

Certas convenções se estabelecem desde o início, como os nichos de ação. O tapete branco se mostra o campo de possíveis, onde Bastos torna as cartas – a memória – em ação e as redimensiona para além da lembrança biográfica e da relação particular dela com o material documental.

As caixas de madeira servem de estantes, mesa, cadeira; também, na fronteira com o território do tapete, que permite o voo, são os lugares concretos onde pousa o vivenciado em ação. Sejam comentários sobre o que se viu ou sobre o que virá, sugerem a localização de toda a narrativa: de certo modo, não deixa de ser uma sessão de análise onde a intérprete é ao mesmo tempo paciente e analista.

Porém, longe de realizar a própria autópsia, Bastos toma as cartas – e sua relação afetiva com elas – como ponto de partida; um trampolim para um jogo de representação. A moldura ficcional desloca a intérprete de uma possível performatividade na lida com o material, mantendo-a, de certo modo, em uma zona de conforto.

Trata-se de uma escolha interessante e, como afirma a personagem (de si mesma?) em dado momento, ela “acredita na ficção”. Talvez seja por meio da assunção deste enquadramento ficcional que o espetáculo ganhe em densidade. Complexo, “Atenciosamente Srta. N” é também generoso ao, já próximo do final, inverter a direção do fluxo de correspondência; depois de revisitar cartas recebidas pela nem-tão-ficcional senhorita N – letra que pode ser a abreviação de Natália, mas também representar todo um conjunto – é a intérprete que assina, com seu nome, a última.

Nesta revelação – que não chega a surpreender, mas encerra dúvidas acerca dos dados do real presentes na obra – a narrativa efetiva um trânsito entre o particular e o geral, o pessoal e o coletivo. Se vemos Bastos revisitar, ressignificar e reinventar relações – com a avó, a mãe, uma (ex-)namorada, um irmão... – também a vemos confrontar o pai. Assim, é possível perceber um desenvolvimento linear no sentido da emancipação da intérprete. A carta final, assim como a curiosa metáfora do cachorro, acaba por quebrar essa pretensa trajetória.

Para além da cenografia e a movimentação de Bastos, os recortes de luz de Gabriella Celani reforçam as localizações do espetáculo. Como se as ações da obra transitassem entre o dentro e o fora; uma dinâmica fluida entre o material documental, o como se lembrar do que consta nele e o que se inventa a partir dele.

A presença de Martins na trilha sonora – composta para o espetáculo e executada ao vivo – dialoga com esse movimento de construção e desconstrução constante. Entre sintetizador, baixo elétrico e a própria voz de Bastos, os loops são elaborados parte a parte, compondo e decompondo atmosferas sonoras a cada cena/carta.

No “refúgio” de Senhorita N, joga-se com quem se era e o que se torna a partir disso. Na metáfora da relação com o cachorro que a acompanha, o não-lançar da bolinha é o teste recorrente não só da lealdade daqueles que estão conosco – e, porque não, de nós com nós mesmos – mas do que fazemos com as memórias que amassamos mas mantemos por perto.

 

*amilton de azevedo é artista-pesquisador, crítico e professor. Escreve para a Folha de S. Paulo e para sua página, ruína acesa. Responsável pela disciplina "Estudos sobre o ensino do teatro" na graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.