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Janelas digitais

Nas duas últimas décadas, a pluralidade de vozes, propagando ideias e discursos, ganhou espaço na internet. Fato observado, e analisado, por pesquisadores de diversas áreas que buscam compreender os impactos gerados por tal polifonia. Afinal, pela internet, em especial pelas redes sociais, é possível se informar, debater, reivindicar. “Quando a internet deixou de ser uma rede conectando cientistas nas universidades e se abriu para os usuários comuns, no final de 1994, seu advento veio cheio de promessas”, afirma Pablo Ornelas, professor dos programas de Mestrado em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (UVV). “A rápida difusão do acesso à internet, a disponibilidade de todo tipo de informação por meio de páginas web e a pouca regulação que incidia sobre o novo meio deram origem a uma onda de esperança utópica.” Essa popularização (70% da população brasileira está conectada) ocasionou a mudança de hábitos de consumo de informações, o que interfere na formação da opinião dos internautas. É o que explica Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab – centro independente de pesquisa interdisciplinar que promove o debate acadêmico e a produção de conhecimento nas áreas de Direito e Tecnologia: “Hoje, uma publicação em uma rede social feita gratuitamente (e em poucos minutos) por um indivíduo tem o potencial de alcançar mais pessoas do que um spot de campanha na televisão, que custa milhões de reais, dando novo sentido à ideia de militância e de apoio político”. Nesse contexto de interconexão, os especialistas refletem sobre os impactos dessa nova forma de comunicação na vida pessoal e nas decisões tomadas pela comunidade na era digital.
 

 

Aprendendo a lidar com uma nova dieta (de mídia)

Francisco Brito Cruz

Depois de 30 anos da promulgação da Constituição Federal, a forma como a população brasileira se informa sobre a política mudou. Nesse período, as transformações em nossas dietas de mídia (ou seja, a composição do consumo de informações entre diferentes meios, conteúdos e temas) trazidas pela internet configuraram uma série de novidades na democracia brasileira com as quais ainda estamos aprendendo a lidar.

Na saída do regime militar, a principal personagem nesse campo foi a televisão. Impulsionada pelas políticas de expansão das telecomunicações realizadas pelos militares, a TV alcançou a casa da grande maioria dos brasileiros e, aberta a possibilidade das eleições diretas, tornou-se o verdadeiro palco da política, provendo espaço aos partidos via horário eleitoral gratuito e em sua cobertura jornalística.

Como se observa, a televisão modulou um jeito de disputa por votos, concentrando poder na mão de intermediários, como grandes emissoras e veículos de imprensa. Agindo conforme a própria lógica – profissional e empresarial –, tais atores interagiam com os políticos, que buscavam espaço para se tornarem conhecidos e convincentes.

Desde 1989, a figura do marqueteiro despontou como central em campanhas para os principais cargos eletivos: políticos buscavam alguém que entendesse “a mente do brasileiro”, por mais que a ideia de uma mente do brasileiro seja absolutamente ficcional e abstrata. As propagandas políticas construíam-se em torno de narrativas grandiloquentes, e as estratégias de campanha baseavam-se na performance dos políticos na lente da imprensa. Nesse contexto, era comum dizer que a política era intermediada pela mídia.

A chegada da internet trouxe promessas ambiciosas. A era da televisão estaria com os dias contados e, na decadência do império da mídia de massa, decairia a velha política de acordos de gabinete e o controle dos meios de comunicação sobre as narrativas. Nessa “utopia da desintermediação” (conceito criado pelo filósofo basco Daniel Innerarity), a política democrática se tornaria menos elitista e mais transparente – e a representação eleitoral mais direta e sem manipulações.

Conforme as dietas de mídia dos brasileiros foram mudando, tornando-se cada vez mais digitais, esse discurso foi tornando-se mais presente. Se no início dos anos 2000 pouco mais de 30% dos brasileiros era usuário de internet, no final dos anos 2010 esse número já supera os 70%. Mesmo que as pessoas ainda tenham televisão em casa, pesquisas (vale a pena entender melhor esse retrato observando as pesquisas realizadas pelo IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, Cetic.br, e pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República, a pesquisa Brasileira de Mídia) mostram que elas gastam mais tempo na internet do que na TV e que essa tendência é impulsionada com vigor pelos padrões observados nas camadas mais jovens.

Ao mesmo tempo que tais transformações foram acontecendo, a ideia de que da internet surgiria uma “nova política democrática” foi se turvando. A polarização política, o discurso de ódio e a disseminação de boatos nas redes sociais são fenômenos que nublaram o céu azul da utopia de uma política sem intermediação. Mais do que isso, eles evidenciaram que um novo tipo de intermediação se configurou.

A intermediação passou a ser realizada pelas plataformas de internet, como grandes redes sociais, empresas com forte base tecnológica que se viabilizaram a partir da inserção da computação e das redes de computadores em nossas vidas. Em termos de dieta de mídia, é nelas que cada vez mais passamos a nos alimentar, gastando nossa atenção em seus feeds e nas conexões com nossos amigos.

Assim como na televisão, essa atenção é coletada e revendida a anunciantes, mas agora numa forma customizada conforme nossas preferências pessoais. Se de um lado a personalização da informação disponível funciona para nos atrair com mais eficiência do que a programação pasteurizada e massificada de um canal de televisão, ela também serve para que os anunciantes possam ter acesso a diferentes nichos de audiência ao mesmo tempo.

O TEMPO QUE AS PESSOAS GASTAM NA INTERNET ULTRAPASSA O QUE ELAS GASTAM NA TV (...) TENDÊNCIA IMPULSIONADA (...) NAS CAMADAS MAIS JOVENS

Queda de barreiras

Dessa maneira, essa nova intermediação fez desabar as barreiras que protegiam a posição das organizações de mídia de massa e, hoje, uma publicação em uma rede social feita gratuitamente (e em poucos minutos) por um indivíduo tem o potencial de alcançar mais pessoas do que um spot de campanha na televisão, que custa milhões de reais, dando novo sentido à ideia de militância e de apoio político.

Quando se esvaem, essas barreiras levam consigo proteções econômicas e políticas à autonomia do jornalismo e do entretenimento, permitindo que suas funções sejam expropriadas das lógicas de funcionamento que prevaleceram na maior parte do século 20. Dessa forma, para além da cortina de fumaça das “notícias falsas” está a diluição das divisões entre o que é jornalismo (e, nele, o que é notícia), propaganda política e entretenimento.

Se na mídia de massa a política era retratada quase como um esporte, a internet destravou as portas entre o campo e a arquibancada, franqueando a entrada de novos atores e lógicas no campo. Com efeito, diferentemente das emissoras de TV, por exemplo, esses novos intermediários não produzem o conteúdo que será consumido, mas sim as suas condições de circulação. Quem produz ou propulsiona também somos nós, na foto do prato de comida que postamos, na curtida ou no compartilhamento. Ao nosso lado, empresas de mídia, jornais e revistas são convidadas a ocupar esse espaço. Assim, é inegável que isso abriu espaços inéditos de participação para muitas novas vozes no debate.

Entretanto, foi esse o conjunto de escolhas empresariais que encontrou afinidades com fenômenos problemáticos do ponto de vista democrático. Entre eles, estão a perda de confiança na imprensa e, com isso, no conjunto de normas ético-profissionais do jornalismo; a polarização política, que abriu brechas para que boatos, manchetes sensacionalistas e performances políticas polêmicas dominassem a nossa atenção; e a dificuldade de consumo de informações no seu contexto adequado.

Esse quadro dá uma lição aos que viam a chegada da internet de um jeito determinista e positivo. Ainda, estabelece que uma das tarefas mais difíceis da nossa época será aprender a lidar com nossas novas dietas de mídia, seja individual, seja coletivamente. Nesse processo, desnaturalizar a intermediação feita pelas plataformas de internet é essencial, entendendo-a como a combinação complexa entre escolhas técnico-empresariais e do nosso comportamento na rede.

Francisco Brito Cruz é diretor do Internet Lab, centro independente de pesquisa interdisciplinar que promove o debate acadêmico e a produção de conhecimento nas áreas de Direito e Tecnologia, sobretudo no campo da internet. É especialista no monitoramento de políticas públicas ligadas à tecnologia e pesquisa sobre as relações delas com a democracia. É autor de artigos acadêmicos e de opinião sobre políticas de internet e coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da Universidade de São Paulo (NDIS-USP).

 

Internet, da utopia às redes sociais

Pablo Ornelas

Quando a internet deixou de ser uma rede conectando cientistas nas universidades e se abriu para os usuários comuns, no final de 1994, seu advento veio cheio de promessas. Vinte e cinco anos depois, muitas dessas expectativas se dissiparam e a ampliação do seu uso desperta hoje muito mais receios e temores do que esperança. Como foi que passamos de uma postura a outra?

Assim que a internet passou a poder ser acessada por meio de pagamento, o que se convencionou chamar de “privatização da internet”, ela gerou uma grande onda de entusiasmo, produzindo até mesmo uma pequena onda literária tecno-utópica. Embora a origem da internet esteja nos anos 1970 e serviços populares como os e-mails e fóruns de discussão já fossem bem difundidos nos anos 1980, até meados dos anos 1990 a internet era apenas uma rede de comunicação e colaboração entre laboratórios científicos nas universidades.

A rápida difusão do acesso à internet, a disponibilidade de todo tipo de informação por meio de páginas web e a pouca regulação que incidia sobre o novo meio deram origem a uma onda de esperança utópica. Em 1996, John Perry Barlow publicou sua influente “Declaração de independência do ciberespaço”, anunciando que as leis dos governos não alcançavam a internet, onde prevaleceria uma autorregulação anárquica, a suspensão dos direitos de propriedade e a liberdade de expressão mais plena.

Por pelo menos dez anos, variações dessas promessas repercutiram em diferentes manifestos e projetos políticos. A interconexão das páginas web universalizaria o acesso a todo o conhecimento humano, tornando anacrônicas as leis de propriedade intelectual; a universalização de ferramentas eletrônicas interativas faria prevalecer os plebiscitos e outras formas de democracia direta, tornando obsoletos os mecanismos de democracia representativa; por fim, o caráter internacional da infraestrutura da internet bloquearia qualquer tipo de regulação efetiva, fazendo viger a mais completa liberdade de expressão.

Em 2003, a Organização das Nações Unidas (ONU) ainda discutia com entusiasmo as potencialidades educacionais e políticas das tecnologias digitais numa “Cúpula Mundial da Sociedade da Informação” e em 2004 o jurista americano Lawrence Lessig, num influente livro sobre a “cultura livre”, apontava as potencialidades do acesso à informação e as barreiras que se opunham a elas na forma de leis de direitos autorais engessadas. Mas, em 2010, a difusão das mídias sociais freou o ímpeto otimista que marcou os dez ou 15 primeiros anos da internet privada.

Diferentemente de formas de comunicação que marcaram outras etapas da internet, como o e-mail ou os portais, as mídias sociais têm uma forma mista. No e-mail, por exemplo, a comunicação é interativa, mas no formato um-um, de uma pessoa para outra pessoa. Os portais, por outro lado, têm a forma de comunicação de massa, um-muitos, na qual a informação sai de um lugar centralizado, como uma redação jornalística, e segue para vários receptores passivos.

NESSAS MÍDIAS [SOCIAIS] UMA MENSAGEM SÓ CONSEGUE UMA DIFUSÃO AMPLA QUANDO É COMPARTILHADA DIVERSAS VEZES [...] NUM PROCESSO “VIRAL”

 

Caiu na rede

As mídias sociais, por sua vez, têm uma forma mista, um-muitos-muitos-um, na qual abrimos uma timeline ou feed de notícias e vemos o que muitos escreveram e, complementarmente, escrevemos para sermos lidos por muitos contatos. É uma comunicação ao mesmo tempo interativa e para muitas pessoas. Nessas mídias uma mensagem só consegue uma difusão ampla quando é compartilhada diversas vezes, isto é, quando vai passando sucessivamente por várias timelines ou feeds de notícias num processo “viral”. Por isso, nesse tipo de comunicação prevalece uma linguagem mobilizadora. Nela, a mensagem não busca apenas dizer algo sobre alguma coisa, ela precisa também estimular o receptor a apertar o botão de compartilhar, para que a informação siga se espalhando.

Esse é o motivo pelo qual nas mídias sociais predominam mensagens que provocam sentimentos fortes, que excitam, que criam um sentido de urgência, que geram medo, raiva, indignação ou entusiasmo. Mensagens “frias”, que fazem pensar, que informam com profundidade, detalhe ou nuance, não despertam esses sentimentos e, por isso, não são muito compartilhadas e têm um alcance limitado.

Quando essa característica estrutural da comunicação por meio das mídias sociais se evidenciou, ela logo foi apropriada por atores políticos. Grupos organizados perceberam que, se explorassem sentimentos fortes nas mídias sociais, eles poderiam exercer uma comunicação de amplo alcance sem precisar de uma gráfica ou de uma emissora de rádio ou de televisão.

Pouco a pouco, foram sendo construídas redes de comunicação – sites de notícias, páginas de Facebook, canais no YouTube e contas no Twitter – dedicadas a abalar a tranquilidade dos usuários, indignando, assustando, fomentando ódio e entusiasmo para conduzi-los a determinadas posições políticas.

O jornalismo que passava então a ser chamado de “tradicional” tornava-se, em comparação com essa comunicação hiperpartidária, inócuo e sem graça – sem nenhum apelo.

Quinze anos atrás, ainda sob o impacto das utopias tecnológicas, acreditávamos que a universalização da internet permitiria que as pessoas tivessem acesso a todas as informações produzidas pela humanidade, que o caráter interativo da tecnologia digital tornaria o debate na esfera pública mais diverso e permitiria desenvolver formas de consulta popular que poderiam, no limite, substituir os parlamentos. 

O desenvolvimento do uso social da tecnologia, porém, foi noutro sentido. A exploração política das mídias sociais fez prevalecer posições polarizadas inteiramente dedicadas a difundir mensagens desequilibradas e sensacionalistas. O predomínio desse tipo de comunicação é tamanho que está ameaçando nossa capacidade de compromisso político e está tornando completamente sem apelo a informação jornalística baseada na apuração, no aprofundamento e no equilíbrio.

Pablo Ornelas é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor dos programas de Mestrado em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (UVV). É autor de Drogas  e a Governamentalidade Neoliberal: Uma Genealogia da Redução de Danos (Insular, 2014) e organizou com Rosângela de Sena e Silva Juventude, Ativismo e Redução de Danos (Casa/Ministério da Saúde, 2010).
 

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