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"O brasileiro está destruindo o país"
por Francisco Luiz Noel
Cearense de Lavras da Mangabeira, cidade de 31 mil habitantes na caatinga que um dia foi povoada pelos índios cariris, no sul do estado, próximo à divisa com a Paraíba, o engenheiro agrônomo, biólogo e professor Melquíades Pinto Paiva encerrou 2010 cercado de reverências em sua terra. Doutor em ciências e especialista em peixes, ele recebeu, em dezembro, pelo conjunto da obra, o título de professor emérito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Seu currículo inclui mais de 300 trabalhos científicos publicados no país e no exterior, participação em missões internacionais e, em 1960, a criação da estação de biologia precursora do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), referência nacional em estudos da pesca e ecossistemas marinhos.
Semanas antes, Melquíades havia lançado uma alentada radiografia da realidade física e humana da região, Nordeste do Brasil – Terra, Mar e Gente (Bei Editora, 408 páginas). Às vésperas dos 80 anos, o professor não se resignou à aposentadoria acadêmica e pôs no papel reflexões e conhecimentos acumulados em seis décadas de atividades em seu estado e no Rio de Janeiro, onde se radicou nos anos 1970. À visão que associa o nordeste ao atraso, ele contrapõe o potencial de riquezas e o trabalho do povo nordestino. Para os problemas ambientais, reivindica energia dos governos. Para os sociais, receita a educação, atribuindo a ela poderes de antídoto também contra a corrupção, que, faz questão de ressaltar, não é exclusividade regional.
No prefácio de Nordeste do Brasil – Terra, Mar e Gente, o geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) Aziz Ab’Sáber se junta às manifestações de reconhecimento ao trabalho do cientista cearense, crítico do projeto de transposição das águas do rio São Francisco: “Parabéns, Melquíades, pelo fato de ter pensado mais diretamente nos pobres, membros de uma geografia humana sofrida, fato que transforma seu livro em um novo paradigma, aparecido muitos anos depois da grande obra Geografia da Fome, do saudoso Josué de Castro”.
Esta entrevista foi concedida no Rio de Janeiro, dias antes das homenagens na UFC, em Fortaleza.
Problemas Brasileiros – O que o motivou a radiografar o nordeste?
Melquíades Pinto Paiva – Este não é um livro nos moldes clássicos sobre a região, pois pouco fala de seca e miséria. Não aceito que só se olhe o nordeste como vítima da seca, lugar de povo atrasado, pobreza e analfabetismo. Eu quis mostrar que, ao contrário, o nordeste é potencialmente rico. Procurei dar uma visão global, integrada da região. Além de falar da ecologia e das condições de vida, abordo a riqueza em recursos naturais, inclusive os do mar, e em inteligência, principalmente dos mais humildes. Muitos nordestinos foram gênios, mesmo sem ler e escrever, como Luiz Gonzaga. O nordeste não é tão atrasado culturalmente quanto se pensa.
PB – Quantos nordestes há no nordeste?
Melquíades – Tento mostrar que há diversas regiões nordestinas, com recursos e culturas diferentes. O nordeste possui três grandes formações étnicas: a da zona da mata, a do homem da caatinga e a do praieiro. Na primeira, o homem é produto da civilização do açúcar, em que a presença do negro é grande. O homem da caatinga é da civilização do gado, com influência predominante do índio; e o da beira da praia, pescador, é mistura dos outros dois. A pesca no nordeste, por exemplo, é caracteristicamente indígena. Marca disso é a jangada, sem casco, que chega aonde não há porto, levada à praia com a força humana. Outras influências do índio são o curral de pesca e o jererê, arco com rede usado por muito tempo na captura da lagosta.
PB – O meio físico ainda é um grande condicionante para muitos nordestinos?
Melquíades – A região semiárida, dominante no nordeste, é a mais povoada do gênero no mundo. Há muita gente no sertão, caracterizado por um período de chuva e um de estiagem. Enquanto o homem da zona da mata, sedentário, engordou comendo doce, como tão bem mostra Gilberto Freyre, o do sertão, da caatinga, é um bravo, porque povoou zonas consideradas inapropriadas e se acostumou a enfrentar a luta a cada dia. No tempo da chuva, todo mundo trabalha; no outro, é hora da colheita, do divertimento e do preparo de um novo ciclo, porque não há mais o que fazer.
PB – E quando a chuva não vem?
Melquíades – O que desequilibra tudo é a falta de chuva na época de vida. A primeira consequência é o fenecimento das lavouras de curto ciclo, como milho, feijão e outras culturas de subsistência. Antigamente, a tragédia era maior, porque os proprietários rurais não sustentavam seus moradores, que migravam, no abandono e na miséria. O Quinze, de Rachel de Queiroz, retrata isso, assim como a vasta literatura sobre a seca de 1877, que durou três anos.
PB – O que mudou em relação às secas nas últimas décadas?
Melquíades – Uma brutal mudança vem ocorrendo. Com a penetração das comunicações e o aparelhamento do governo, o homem já não migra tanto. Até porque, no sudeste, já não há emprego. A grande migração no nordeste começou em direção à Amazônia, no apogeu da borracha, em inícios do século 20. Depois da 2ª Guerra Mundial, o fluxo foi para o sudeste, com o surgimento das estradas e do trabalho na construção civil. Foi o nordestino quem construiu Brasília. Hoje, o dono da terra bota seus moradores para fora para não pagar salário mínimo nem INSS, como o governo exige. O cinturão de miséria que existia na periferia das grandes cidades está aparecendo na das pequenas, no interior. São os boias-frias, à espera de trabalho ocasional.
PB – As migrações não divulgaram o nordeste?
Melquíades – Sempre houve muita discriminação. Agora, estão conhecendo o nordestino não porque ele se incluiu na sociedade do sudeste, mas porque o pessoal vai nas férias para as praias do nordeste e começa a penetrar no interior, graças às facilidades das comunicações e ao barateamento do turismo. Há também o turismo religioso, em cidades como Juazeiro do Norte, onde viveu Padre Cícero, no Ceará, e Bom Jesus da Lapa, na Bahia.
PB – Quais as grandes riquezas da região?
Melquíades – Onde há pedra e falta chuva, tem minério. É regra mundial. No nordeste, temos minerais radiativos, manganês, cobre, berilo, titânio, grafita.
Procurei localizar, estado por estado, todas as ocorrências de minerais importantes, tanto as já medidas quando aquelas ainda em pesquisa. A flora regional também é rica, com espécies importantíssimas, de grande potencial econômico para as indústrias de madeira, construção civil, alimentação e medicamentos.
Há a oiticica, que produz óleo fino, a carnaúba, que dá cera, a imburana-de-cheiro, de uso na indústria farmacêutica. Exemplo das potencialidades da flora é o umbuzeiro. O umbu dá uma passa e, se a pesquisa agronômica reduzir o tamanho da semente, poderá ser industrializado como a ameixa.
PB – E a fauna?
Melquíades – No caso da fauna terrestre, o maior interesse é conservacionista. Há aves com grande potencial para o turismo, como o soldadinho-do-araripe, que só existe nos municípios de Crato, Barbalha e Missão Velha. Em Barbalha não existe mais espingarda e a cidade recebe gente da Europa para fotografar e filmar o soldadinho. Há também aves que podem ser domesticadas, como a macuca e o mutum. É só o homem trabalhar.
PB – Tendo tudo isso, por que o nordeste parece andar tão devagar?
Melquíades – Porque tem uma elite desregionalizada, com grandes fortunas no sudeste. Os ricos do nordeste não aplicam na região. Tiram de onde é mais pobre para colocar onde é mais rico. E o que fizeram com os incentivos fiscais? A nação jogou dinheiro no nordeste, mas o retorno foi para o sudeste, por meio da corrupção. No Ceará, quando passava na rua um carro muito bom, na época da Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, criada em 1959], dizíamos: “lá vai um carro 34/18” [alusão a dois artigos de planos diretores da Sudene].
PB – Muitos incentivos foram desviados?
Melquíades – Uma vez, o porteiro do meu prédio no Rio contou que seu irmão trabalhava para um ricaço cearense que tinha acabado de comprar cinco apartamentos no Leblon e em Ipanema. Descobri, então, que havia acabado de sair dinheiro de incentivo fiscal para a empresa dele. Outra vez, quando determinado cidadão oriundo da Sudene candidatou-se a senador, houve uma “taxação” de 20% sobre o valor dos incentivos. Quem deu 20% do que recebeu da Sudene comprou impunidade.
PB – A Sudene, revitalizada em 2007, não foi tão eficaz quanto sonhava Celso Furtado, seu idealizador?
Melquíades – A ideia era brilhante e Furtado não teve culpa. O poder de corrupção das elites brasileiras é que é impressionante. Não há meritocracia, mas, sim, suborno e apadrinhamento.
Não é só no nordeste, mas no país todo. No caso dessa região, tudo isso é ruim porque, até certo ponto, incentiva a ideia de separação. O nordeste gera mais renda para o Brasil do que o país põe lá. Tem petróleo, produtos nobres, pesca.
PB – Por que o senhor critica o projeto de transposição das águas do rio São Francisco?
Melquíades – A ideia é antiga, não tem novidade. Não me refiro, no livro, aos aspectos de engenharia, mas à viabilidade econômica. Quando se transporta água, o custo sobe à medida que a extensão aumenta, porque há perdas por evaporação e infiltração e despesas de construção dos canais e de equipamentos. Para chegar ao Ceará e à Paraíba, a água tem de ser elevada a mais de 200 metros para atravessar as chapadas do Araripe e da Borborema. Quanto vai custar isso? O preço vai ser 10 vezes maior que o que é pago pela água em Petrolina [PE] e em Juazeiro [BA]. Como uma empresa que queira produzir uva no Ceará vai competir com uma de Petrolina? Só se o governo pagar a diferença.
PB – A obra vai mesmo ajudar a combater a pobreza?
Melquíades – Essa é a primeira das quatro grandes mentiras do projeto. Se água correndo significasse fim da pobreza, as populações do vale do São Francisco não seriam tão pobres, não só no nordeste, mas também em Minas.
A segunda mentira é que não vai faltar água para o nordestino. Ora, não é a do São Francisco que vai matar a sede nas grandes cidades. O nordeste tem outras alternativas, mas falta sistema de distribuição, como mostro quando escrevo sobre a grande quantidade de água represada nos açudes. Alguns foram construídos há cem anos, mas não foram feitos canais de irrigação, como no Cedro, em Quixadá [CE]. O nordeste também tem boqueirões que dariam grandes represas. E no Piauí há muitas reservas subterrâneas. O problema da água no nordeste é de aproveitamento. Há soluções caras e outras baratas, como a da cisterna, que coleta água da chuva.
PB – E a terceira e a quarta mentira?
Melquíades – Terceira: a água vai para todo mundo. Quem vai pagar? O país todo ou o usuário? Como o homem que mora numa tapera, distante centenas de metros ou até quilômetros de outra casa, vai pagar a construção da rede? Quarta mentira: vai favorecer a irrigação. Mas como, se o custo da água vai ser maior do que na beira do São Francisco? Isso só vai favorecer o agronegócio, à custa de incentivo fiscal. Minha conclusão é que o projeto, além de ser inviável economicamente, é eleitoreiro, feito para gerar comissão. É verdade que a entrada em cena do exército, com seus batalhões de engenharia, diminuiu a possibilidade de roubo. A grita no país foi tão grande que as empreiteiras que geram enormes comissões tiveram de se afastar.
PB – Como o senhor avalia o potencial econômico do mar no nordeste?
Melquíades – Os grandes recursos pesqueiros da região, assim como os do resto do país, estão superexplorados, em sobrepesca, como mostrei em 1997 no livro Recursos Pesqueiros Estuarinos e Marinhos do Brasil. Vi, no Ceará, o começo da pesca da lagosta, que antes era isca na da cavala e do peixe-serra. Na época, o Ceará produzia por ano 8 mil toneladas de cauda de lagosta. Hoje, essa pesca vai do Amapá ao Espírito Santo, mas o Brasil todo não obtém 4 mil toneladas. A ganância levou à destruição ambiental. Os empresários da pesca não aceitam a ideia de que a natureza tem limites.
PB – A pesca da lagosta está ameaçada?
Melquíades – No nordeste, praticamente, sim. Os barcos têm de ir ao Amapá. Para recuperá-la, é preciso autoridade e muita força. Quando começou a decair, a alternativa econômica foi o pargo. Mas também esgotaram os pesqueiros e tiveram de expandir a pesca em direção ao Amapá. O problema é que, à medida que se afastavam das bases, aumentava o custo. A falta de sistemas de congelamento nos barcos e o excesso de sol durante o manuseio baixaram a qualidade da produção, fazendo as partidas de filé de pargo voltarem dos Estados Unidos. E ainda passaram a filetar outro peixe, o pargo-negro, que não tem valor no mercado internacional. Houve um colapso que quase acabou com a atividade, porque os americanos não quiseram mais comprar. Só agora a pesca do pargo está se recuperando.
PB – O que fazer para organizar de modo sustentável a pesca no nordeste?
Melquíades – Em primeiro lugar, é essencial administrá-la com respeito à natureza. É preciso proibir realmente a captura de lagosta com rede e equipamento de mergulho, assim como a de lagosta pequena. Mas, para fazer tudo isso, o governo tem de mostrar força. Será que os industriais deixam? A natureza precisa se recuperar. Uma lagosta leva de três a quatro anos para chegar ao tamanho comercial. A segunda coisa a fazer é aproveitar os recursos de forma inteligente. Eliminar métodos de pesca danosos depende de investimento em tecnologia. Em terceiro lugar, é necessário agregar valor. Em vez de exportar camarão bruto, por que não já em conserva?
PB – Tecnologia então é fundamental?
Melquíades – Sim. Na minha instituição, desenvolvemos algumas ideias, como o caviar com ova de peixe-voador, produzido com a vantagem de não matar o peixe. O voador desova na superfície e a ova fica boiando. É recolher e fazer o produto. Propusemos também a cavala desidratada, jogada no leite de coco e depois cortada em postas. Mas os empresários não querem progresso tecnológico, porque ganham com o atraso e ainda têm ajuda do governo.
PB – O problema é antigo, não?
Melquíades – Saí do Ceará escorraçado, nos anos 1970, porque coloquei a nu a safadeza dos projetos de pesca. Naquele tempo, o Brasil vivia faminto de dólares. O sujeito exportava lagosta por preço menor que o de produção e ainda ganhava dinheiro, porque tinha incentivo fiscal. Era botar a partida de lagosta no navio e ir receber no Banco do Brasil, que ficava com os dólares e pagava em dinheiro brasileiro. Como o valor no mercado internacional era menor que os custos, o governo cobria a diferença. Quando estancou a mina dos recursos fiscais, várias empresas foram à falência.
PB – Como o senhor vê o programa governamental Bolsa Família, que atende a milhões de nordestinos pobres?
Melquíades – Não abordo esse tema no livro, mas considero que, de imediato, é uma coisa boa. Sou, porém, a favor e também contra, porque ele tende a cristalizar a pobreza, a acostumar o pobre a ser pobre. Isso tira a capacidade de criar, diminui a engenhosidade. Luiz Gonzaga já dizia que esmola não bota ninguém para a frente. É preciso que o programa tenha algum tipo de progressão. As pessoas não estão querendo que assinem sua carteira de trabalho por causa do Bolsa Família. O nordeste, como todo o Brasil, só tem uma solução: educação.
PB – Quais as perspectivas de futuro para a região?
Melquíades – Não são boas, como as do Brasil também não são. O problema não é o nordeste, mas a pobreza, que só se acaba com educação, para que as pessoas tenham acesso ao trabalho qualificado. Enquanto não se educar o povo, não se controla a roubalheira, o maior problema do Brasil. Outro problema: o brasileiro está destruindo o país. O que se faz no pantanal é um crime contra a humanidade. Estão acabando com o cerrado, a Amazônia, como se fez com a zona da mata e a caatinga, no nordeste.
PB – Por que o senhor não demonstra otimismo?
Melquíades – Sou conservacionista há mais de 50 anos e um desiludido, habituado a perder. O conservacionista no Brasil se acostumou a levar surra. Luta, luta, luta, vem um deputado e apresenta um projeto na Câmara para aumentar o desmatamento da Amazônia. Mas continuo acreditando que a ciência se faz em benefício do país. Defendi o Brasil com minha ciência e não com arma na mão. Minha arma é o cérebro, a defesa do conhecimento.