Postado em
Já pediu para a mamãe comprar?
por Marcelo Santos
Sites na internet, merchandising na tevê, atividades nas escolas disfarçadas de eventos educativos, embalagens coloridas e chamativas, colocação estratégica dos produtos nas gôndolas dos supermercados, licenciamento de personagens infantis e lanches com brindes, entre diversas outras ações de marketing. Todos os anos, uma formidável montanha de dinheiro é despejada nas agências publicitárias com um só objetivo: transformar os cerca de 50 milhões de crianças brasileiras em consumidores precoces, alavancando o lucro do mercado de produtos infantis, que movimenta mais de R$ 15 bilhões ao ano no país. De olho nessa clientela, em 2010 foram investidos R$ 288 milhões na publicidade infantil.
A economia agradece, mas os efeitos dessa prática, para as crianças, são no mínimo perversos. “A publicidade é a principal responsável pelo desenvolvimento de problemas como consumismo infantil, erotização precoce e exploração sexual, diminuição do tempo dedicado a brincar, violência, estresse familiar e, principalmente, obesidade e transtornos alimentares”, enumera Lais Fontenelle Pereira, psicóloga e coordenadora de educação e pesquisa do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana. O órgão existe há 15 anos, instalado no Jardim Pantanal, bairro da zona leste da cidade de São Paulo, onde atua na área educacional. A bandeira contra o consumismo infantil, porém, só foi hasteada há cinco anos, quando uma das educadoras recebeu uma aluna que tinha sido espancada pela mãe. A explicação para o ato de violência chocou as professoras. “A mãe ficou transtornada porque a filha descartou em apenas três dias uma boneca que ela havia comprado em dez prestações.” A publicidade direcionada às crianças mostrou, assim, sua face mais cruel. “É gerado um estresse muito grande, principalmente entre os que possuem baixa renda e não têm condições de adquirir esses bens”, lamenta Lais.
É no mundo encantado da televisão que a publicidade infantil age com mais força, apresentando soluções para qualquer necessidade. É possível colecionar amigos, tornar-se popular e dar gargalhadas de alegria. Tudo pode ser divertido, desde que se “compre” o produto oferecido na telinha. “Toda publicidade dirigida às crianças é abusiva, e elas precisam ser preservadas. Até os 12 anos de idade não se tem a consciência crítica e o entendimento de um discurso persuasivo formado”, adverte a psicóloga.
Um anúncio a cada dois minutos
No país em que as crianças passam mais tempo diante da televisão no mundo, com uma média diária de 4 horas e 54 minutos (para 4 horas e 26 minutos na escola), a publicidade infantil é voraz. No dia 1º de outubro do ano passado o Instituto Alana apurou a quantidade de inserções comerciais em sete canais com programação infantil. Entre o período das 8 às 18 horas foram contabilizadas 1.077 propagandas.
Curiosamente, os canais de tevê por assinatura, que supostamente seriam bancados por mensalidades, foram aqueles que mais exibiram anúncios. O Cartoon, que tem público-alvo formado por crianças entre 6 e 12 anos, por exemplo, veiculou 274 propagandas, com média de uma a cada dois minutos de programação. O Discovery Kids, que atrai crianças ainda na primeira infância, apresentou 227 anúncios. Talvez isso justifique o insistente “Compra, mãe!” ouvido por toda parte nas semanas que antecederam o Dia das Crianças. A ONG apurou que, entre os 390 produtos anunciados, 295 eram brinquedos, 30, peças de vestuário e 25, alimentos. A média de preço desses produtos era de R$ 160.
No primeiro semestre de 2010, o instituto Datafolha realizou uma pesquisa para medir a percepção de pais com filhos entre 3 e 11 anos a respeito dos reflexos das propagandas direcionadas às crianças. A intenção era descobrir se a publicidade exerce pressão de compra, causa mudanças alimentares e se, na opinião dos pais, deve sofrer algum tipo de restrição.
Descobriu-se que 80% das crianças das famílias pesquisadas tinham como atividade de lazer principal assistir televisão e 57% acessavam a internet com frequência, principalmente os sites de jogos on-line (40%) e canais infantis (21%). A rede de relacionamentos Orkut vinha na terceira posição, com 16% dos acessos das crianças.
De cada dez pais ouvidos, sete afirmaram ser influenciados pelos filhos na hora da compra de qualquer produto (não apenas os infantis) e oito disseram acreditar que a propaganda é determinante na escolha dos presentes pedidos pelas crianças. “A publicidade dirigida às crianças gera um consumo irrefletido. Cria-se um problema quando se começa a incutir nas crianças a ideia de que, para existir socialmente, devem possuir determinado objeto”, alerta Lais.
Legislação
Não existem leis específicas que impeçam a propaganda direcionada às crianças no país. Cabe ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) disciplinar as campanhas. Em 2006 o órgão proibiu o uso de verbos no imperativo, como “compre isso”, “não perca”, entre outros. Contudo, por se tratar de um conselho formado pelos próprios anunciantes, sua competência é questionada por especialistas na área de infância.
Preocupadas com os efeitos da publicidade nas crianças, 150 instituições lançaram, no fim de 2009, o “Manifesto pelo Fim da Publicidade e da Comunicação Mercadológica Dirigida ao Público Infantil”, que já reúne cerca de 13 mil assinaturas. Segundo o documento, a propaganda deve ser voltada aos pais ou responsáveis. “A utilização da criança como meio para a venda de qualquer produto ou serviço constitui prática antiética e abusiva, principalmente quando se sabe que 27 milhões de crianças brasileiras vivem em condição de miséria e dificilmente têm atendidos os desejos despertados pelo marketing”, adverte o manifesto.
No Congresso Nacional tramitam mais de 200 projetos de lei propondo restrições e até a proibição de propaganda para crianças. O mais emblemático é o PL 5.921/01, do deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR). “Em 2001, meu filho, à época com 11 anos, não parava de me pedir as novidades anunciadas através da televisão. Decidi promover o debate sobre o tema e radicalizei”, justificou em sua página na internet.
De acordo com Vidal Serrano Junior, promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo e professor titular de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica, também na capital paulista, mesmo sem uma legislação específica sobre o tema a propaganda direcionada às crianças pode ser contestada a partir da leitura da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Partidário de uma regulamentação sobre a publicidade infantil na mídia, ele cita o artigo 37 do CDC (lei federal 8.078/90), que proíbe toda propaganda enganosa ou abusiva, deixando claro no parágrafo 2º que “é abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.
Conforme Serrano explica, “o elemento essencial da publicidade é a persuasão. E, justamente em razão de seu intuito puramente comercial, a mensagem publicitária é elaborada para atingir o emocional daquele a quem se dirige, na medida em que é notório que o convencimento acontece de forma muito mais bem-sucedida quando o público consumidor é guiado pela emoção e não pela razão”. Daí a necessidade de preservar a criança, que, lembra ele, “não possui predicados sensoriais suficientemente formados para a plena intelecção do que seja a publicidade, de quais os seus objetivos e de como dela se proteger”.
Já na opinião do consultor em marketing infantil e professor universitário Arnaldo Rabelo, é um equívoco culpar a propaganda pelo consumismo infantil. “Os pais devem se manter na função de educar seus filhos e dar limites, evitar excessos e tomar a decisão final por produtos que sejam bons”, avalia. A seu ver, todos têm o direito de ser informados sobre os lançamentos de novos produtos e os fabricantes têm o direito de divulgar a existência deles. “É um princípio democrático. A proposta de proibição tem implícito que as crianças não distinguem um comercial de um programa de entretenimento e que os pais não são capazes de decidir o que é melhor para seus filhos. Vários estudos mostram que as crianças sabem quando uma mensagem é publicitária”, argumenta.
Diretor da Associação Brasileira de Licenciamento (Abral), ele considera que os mecanismos já existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, no CDC e no Conar sejam suficientes para coibir abusos dos anunciantes. “Fica claro que quem defende a proibição da publicidade infantil não compreende mais a fundo o assunto”, provoca.
Natália, de 9 anos, não entende bem do tema. Também não sabe se é contra ou a favor de propagandas para crianças. Apesar de estar com sobrepeso, ela adora comerciais de produtos alimentícios infantis. “Dá mais vontade de comer quando vejo a televisão”, admite. Suas refeições acontecem sempre diante da telinha. “Eu me sinto um pouco culpada ao negar, quando ela me pede para comer algo não saudável. É difícil dizer não quando a gente fica fora de casa o dia todo”, explica a mãe da menina.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados através da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) em agosto de 2010 estimam que uma em cada três crianças de 5 a 9 anos está acima do peso recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Os personagens do universo infantil nas embalagens são um chamariz e um estímulo para o consumo do alimento”, adverte a sanitarista Silvia Vignola, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Segundo ela, heróis do imaginário infantil estão se transformando em verdadeiros vilões ao ajudar a vender produtos com alto teor de sódio, açúcar e gordura. Foi o que ela constatou ao pesquisar 44 itens de 20 marcas diferentes, cujas embalagens mostram personagens infantis como super-heróis de filmes e desenhos em quadrinhos.
No dia 17 de dezembro passado, Silvia comandou uma mesa de debates na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. O evento marcava o lançamento da Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos. “Além de educar a população sobre o consumo de alimentos não saudáveis e a importância do exercício físico, precisamos cercear o incentivo ao consumo desse tipo de produto. Por isso essa frente tem um papel muito importante para o futuro deste país, especialmente no que respeita à saúde das crianças”, explica a especialista.
A iniciativa é uma resposta à decisão judicial que suspendeu a resolução nº 24/10 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que obrigava as propagandas de bebidas com baixo teor nutricional e de alimentos com elevadas quantidades de açúcar, gordura saturada ou trans e de sódio a conter mensagens alertando que seu consumo em excesso pode ser prejudicial à saúde. A regra entraria em vigor a partir de dezembro passado, mas a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) conseguiu sua suspensão na Justiça.
Em nota à revista Problemas Brasileiros, Edmundo Klotz, presidente da Abia, disse entender que a resolução 24 de 2010 “é inócua para o fim ao qual se destina, por não considerar o conjunto de alimentos ingeridos diariamente por um indivíduo, além de não educar o consumidor sobre como se alimentar adequadamente”. Além disso, a Abia considera a resolução inconstitucional. “Alimentos e bebidas não alcoólicas não constam da lista de produtos sujeitos a advertências definida pelo parágrafo 4º do artigo 220 da Constituição Federal, que contempla tabaco, medicamentos e terapias, bebidas alcoólicas e agrotóxicos. Logo, produtos alimentícios não podem ser objeto de alertas de malefícios”, afirma o texto.
Tal interpretação, no entanto, é equivocada, segundo o advogado Igor Rodrigues Britto. Professor da Faculdade de Direito de Vitória e autor do livro Infância e Publicidade: Proteção dos Direitos Fundamentais da Criança na Sociedade de Consumo, ele diz que o texto da Constituição nunca pode ser entendido de forma literal, mas com base nos princípios constitucionais, ou seja, nenhum artigo deve ser lido isoladamente e sim de acordo com o que é juridicamente chamado de “interpretação sistêmica”.
O professor explica que a Constituição prega como valor maior a proteção da vida e da saúde dos indivíduos. A intenção do legislador na redação do artigo 220 foi dizer que “deve haver restrição à publicidade de produtos que possam colocar em risco a saúde dos consumidores”. Na época da Assembleia Constituinte, foram incluídos aqueles que a ciência então reconhecia como perigosos. “Hoje, esse conceito foi ampliado, e a lista, estendida”, acrescenta.
Quanto à questão da educação do consumidor, o professor Carlos Augusto Monteiro, titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e um dos signatários da Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos, explica que a crescente troca de alimentos tradicionais como arroz, feijão, carne, ovos e verduras na mesa do brasileiro por produtos não saudáveis e industrializados se deve justamente ao marketing. “As campanhas publicitárias milionárias são extremamente eficazes em amplificar as ‘vantagens’ dos alimentos ultraprocessados, promovendo sua hiperpalatabilidade e sua conveniência e estimulando o consumo compulsivo”.
Com efeito, levantamento do IBGE feito entre os anos de 2003 e 2009 e divulgado em dezembro de 2010 confirma que o consumo anual por pessoa de alimentos como arroz e feijão diminuiu, ao passo que o dos processados, como embutidos, refrigerantes e refeições prontas, subiu. “A não regulação do marketing desses produtos no Brasil permite sua oferta e propaganda em todos os ambientes, como escolas, hospitais e farmácias, promoção por celebridades, uso de alegações saudáveis sem base científica comprovada, descontos na compra de grandes porções, uso de personagens e heróis do universo infantil e inclusão de brindes, entre tantas técnicas da publicidade”, explica Monteiro. O especialista lamentou a decisão da Justiça ao conceder a liminar à Abia. “O marketing molda normas sociais. Diz que o tamanho certo de um refrigerante, por exemplo, é de médio para grande. Há várias maneiras de fazer isso, e nossos publicitários são os mais competentes”.
Na casa do educador, escritor e músico Gerson Borges Martins, de 41 anos, a decisão foi radical. “Optamos por eleger a segunda-feira como o dia da televisão desligada. No começo as crianças estranharam, mas a gente sempre encontra outra atividade para se divertir”, explica. Casado com a professora Rosana Marcia Borges e pai de Bernardo e Pablo, ele procura os espaços públicos de lazer em sua cidade, São Bernardo, para levar os filhos. “É preciso pôr um freio nesse consumo desenfreado proposto pelas mídias, que gera crianças problemáticas e adultos emocionalmente infantilizados.”
A experiência foi inspirada em seu pai, ainda na cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu e passou a infância. “Ele era um homem simples, operário, mas muito sábio. Um dia radicalizou, tirou a televisão de casa. O efeito disso foi que aos 6 anos de idade eu já estava alfabetizado. Canalizei a criatividade para a música e a leitura.” Na casa de Gerson o efeito é semelhante. Bernardo, aos 6 anos, lê e adora mangás. “Hoje em dia não há como evitar o acesso às mídias. Temos de ser criteriosos e vigilantes”, diz o pai.
Como o mundo cuida das crianças
Algumas regras sobre publicidade infantil
• Alemanha – Os programas infantis não podem ser interrompidos por publicidade e não se devem usar crianças para apresentar vantagens especiais e características de produtos não adequados a elas.
• Áustria – A publicidade é proibida nas escolas.
• Bélgica – Não são permitidas propagandas voltadas a crianças menores de 12 anos na região flamenga. Cinco minutos antes ou depois dos programas infantis, não se pode veicular nenhum tipo de publicidade.
• Canadá – Pessoas ou personagens conhecidos pelas crianças não podem promover ou endossar produtos ou serviços. Há limite de 8 minutos de publicidade comercial a cada hora de programação para crianças. Na província de Quebec a publicidade de produtos direcionados a crianças menores de 13 anos não é permitida em nenhuma mídia.
• Dinamarca – É proibido todo tipo de publicidade durante programas infantis e cinco minutos antes ou depois.
• Estados Unidos – Limite de 10 minutos e 30 segundos de publicidade por hora, nos fins de semana. Durante a semana são 12 minutos por hora. É proibida a vinculação de personagens infantis à venda de produtos nos intervalos de programas desses mesmos personagens.
• Holanda – As tevês públicas não podem interromper programas infantis dirigidos a crianças menores de 12 anos com publicidade.
• Inglaterra – Proibidos, na televisão, anúncios de alimentos com alto teor de gordura, sal e açúcar para menores de 16 anos. Também não é permitida publicidade para crianças que ofereça produtos ou serviços por telefone, e-mail, correio, internet ou celular. Antes das 21 horas não são autorizadas propagandas apresentadas por personalidades ou personagens que despertem interesse particular das crianças, como fantoches, marionetes ou bonecos. Também são proibidos efeitos especiais que induzam a pensar que o produto faz mais do que na realidade.
• Irlanda – Proibida qualquer publicidade durante os programas infantis nas tevês abertas.
• Itália – Proibida a publicidade de qualquer produto ou serviço durante a programação de desenhos animados.
• Luxemburgo – Publicidade proibida nas escolas.
• Noruega – A publicidade não pode ocupar mais de 15% da programação diária da tevê. Peças direcionadas a crianças menores de 12 anos são proibidas. Durante a exibição da programação infantil não pode haver publicidade.
• Suécia – Proibida a publicidade na tevê dirigida a crianças menores de 12 anos até as 21 horas. Não há comerciais durante a programação infantil, nem imediatamente antes ou depois.
Fonte: Cartilha “Por Que a Publicidade Faz Mal para as Crianças?”, do Projeto Criança e Consumo