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Nas prateleiras, a opção sustentável
por Mauricio Monteiro Filho
Imagine um supermercado no futuro. Um consumidor está diante de dois cortes de carne bovina iguais, com preço e qualidade semelhantes, mas de marca diferente. Ele tem dificuldade em decidir qual das peças levar para casa. Então, saca seu smartphone e fotografa um selo, disponível em apenas um dos produtos, parecido com um código de barras. Um programa no próprio aparelho faz a leitura das informações criptografadas na imagem e retorna ao comprador todos os dados sobre a cadeia produtiva da carne em questão: local da fazenda onde cresceu o boi, data do abate e frigorífico onde isso ocorreu, observância de normas de higiene e respeito às legislações trabalhista e ambiental.
Ciente de que o produto que está prestes a comprar está de acordo com estritamente todos os padrões de excelência, esse consumidor já não tem dúvidas: opta pela carne que lhe ofereceu maior transparência quanto à produção, da origem às prateleiras do supermercado.
Até 2010, isso parecia um devaneio futurista. No espaço de alguns meses, porém, os três gigantes brasileiros do ramo de supermercados – Carrefour, Pão de Açúcar e Walmart – lançaram programas que oferecem a seus clientes a oportunidade de conferir toda a cadeia de valor de uma parcela de suas mercadorias, dando-lhes a chance de decidir pela compra não apenas com base em preço ou qualidade, mas também em transparência e adequação a critérios sanitários, sociais e ambientais.
As iniciativas abrangem tanto marcas próprias quanto de fornecedores preferenciais. Entre as linhas de produtos incluídas nessas ações estão carnes, pescados, frutas, legumes, verduras e ovos, entre outros. Os nomes são variações sobre o mesmo tema: no Carrefour foi criado o programa Garantia de Origem, no Pão de Açúcar, o Qualidade desde a Origem, e no Walmart, o Qualidade Selecionada, Origem Garantida.
Por enquanto, os produtos estão disponíveis apenas em algumas das lojas das respectivas redes e ainda correspondem a parcelas pequenas do volume total comercializado por esses grupos. Por essa razão, ainda que tais iniciativas caminhem para um alargamento das responsabilidades do varejo para com o consumidor, há críticas por parte de organizações da sociedade civil. “Procuramos por carnes rastreadas em lojas e não as encontramos. Além disso, esses produtos são inacessíveis para uma boa parte da população. Ainda é um mercado em nichos”, atesta Adriana Charoux, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Contestações à parte, em tempos em que a expressão “consumo consciente” se tornou panaceia contra o esgotamento dos recursos do planeta e o aquecimento global, as ações do varejo sinalizam uma abertura maior dos agentes econômicos à pressão das organizações sociais. E, se ainda não são perfeitas, abrem caminho para uma discussão mais franca sobre a origem dos produtos que têm como destino a mesa dos brasileiros.
Concepção distorcida
Para entender o significado desses programas, porém, é preciso compreender o discurso que acabou por vincular a salvação do planeta à conduta adotada pelas pessoas nas gôndolas de supermercados mundo afora, e que está sintetizada na expressão “consumo consciente”.
A pedra fundamental desse raciocínio está na tão propalada noção de desenvolvimento sustentável, popularizada em 1987. Nesse ano, foi publicado um documento pela Oxford University Press que moldou o conceito que monopoliza as visões de futuro de organizações da sociedade civil, governos, empresas e indivíduos. O texto, conhecido como Relatório Brundtland, respondeu em uma frase à grande questão da contemporaneidade: como crescer e produzir sem esgotar os recursos do planeta? Nos termos do documento, desenvolvimento sustentável é aquele em que “satisfazemos as nossas necessidades sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”.
Essa formulação carrega embutida a percepção de que o estado atual das tecnologias e da organização social global são grandes vilões na busca por um futuro sustentável para todos. E, na esfera individual, o conceito consolidou a ideia de que um dos maiores impactos das pessoas sobre o futuro do planeta se dá quando elas exercem seu papel de consumidoras.
Não demorou muito, então, para que o inimigo da vez na jornada do desenvolvimento sustentável se tornasse justamente o consumismo desenfreado. Apesar da desvalorização global da mão de obra, da persistência de atentados aos direitos humanos fundamentais, como o trabalho escravo e o infantil, e do desrespeito maciço ao meio ambiente, perpetrado por empresas e governos, estava nas mãos do indivíduo, ou melhor, do consumidor, a opção por um mundo melhor. Afinal, se as pessoas continuam comprando mercadorias que envolveram, em qualquer etapa da cadeia produtiva, alguma agressão a florestas, rios ou trabalhadores, tornam-se cúmplices desses desvios. De pilares básicos do sistema capitalista, os consumidores passaram a coautores de toda espécie de exploração predatória dos recursos naturais e humanos.
Raciocínios como esse sustentam a ideia de consumo consciente. Segundo essa visão, na prática os consumidores estarão fazendo sua parte em nome do desenvolvimento sustentável somente se as decisões de compra forem tomadas com base na certeza de que toda a cadeia de valor de cada item no carrinho do supermercado esteja isenta de problemas sociais ou ambientais.
Na opinião de Adriana, do Idec, essa concepção é altamente distorcida. Segundo a pesquisadora, a corrente que fala em consumo consciente empurra para o consumidor uma responsabilidade que ele não tem meios de assumir de fato. “Esse discurso é muito focado na decisão individual. Expressa que é você [consumidor] quem tem o poder. Mas se não há sustentabilidade na produção, o comprador não tem como saber”, afirma. Em seu entender, portanto, o ideal seria trabalhar com o conceito de consumo responsável ou sustentável. Essa ideia continua exigindo ações dos indivíduos, como reciclagem de lixo e mesmo freios na hora de comprar, mas também inclui o restante da cadeia de valor – fornecedores e varejo – como atores com responsabilidades ainda maiores. Afinal, sem adequação às leis por parte de produtores e transparência por parte de supermercados, o consumidor não terá como exercer nenhuma compra consciente.
Em se tratando de responsabilidade, o Idec trabalha pesado. A entidade vem criticando sistematicamente as estratégias de rastreabilidade dos grandes varejistas e as práticas de fornecedores importantes, como frigoríficos. Segundo levantamento do instituto, que considera a cadeia da pecuária bovina a mais problemática em termos de impactos socioambientais, as carnes incluídas em determinado programa são mais caras que as não rastreadas e representam porcentagens pequenas de vendas em relação ao total. Isso evidencia que o acesso a produtos de origem controlada ainda não é democrático.
Por essa razão, Adriana enfatiza que é necessário seguir questionando as grandes redes de supermercados a fim de que elas melhorem suas práticas. “As empresas estão assumindo mais responsabilidades, mas muito por conta de pressão da sociedade civil organizada. Se não houver constrangimento ético, não mudarão os processos de produção. E estamos produzindo muito mais para manter padrões de consumo insustentáveis e exportações”, destaca ela.
Para incentivar esse comportamento crítico entre os consumidores, o Idec desenvolveu uma campanha bastante eloquente em parceria com o instituto Vitae Civilis. Sob o mote “Não quero ser cúmplice do desmatamento da Amazônia”, a ação estimula os clientes das grandes redes de supermercados a enviar postais – disponíveis no site http://www.idec.org.br/climaeconsumo/cartoespostais.html – pelo correio, deixá-los com os gerentes das lojas ou ainda nas caixas de sugestões.
Fornecedores
Segundo Herlene Monteiro, consumir produtos cuja origem é garantida é questão de qualidade de vida. “É o mesmo que conhecer a cozinha dos restaurantes que visitamos. Nossa vida melhora a partir do momento em que sabemos o que compramos. É a certeza de que estamos adquirindo algo de quem produziu com responsabilidade”, afirma. Suas falas poderiam remeter a uma consumidora atenta aos mais altos padrões de qualidade. Herlene, porém, é muito mais que isso: ela é uma das produtoras de banana preferidas pelas grandes redes de varejo.
Ela mesma já pensava em rastreabilidade, sem que isso fosse uma demanda do mercado, mais de dez anos atrás. Herlene tem mais de 1 milhão de pés de banana em Jacupiranga, cidade da região do vale do Ribeira, no extremo sul do estado de São Paulo. “Tudo isso produzido adequadamente”, orgulha-se.
Não foi nada fácil atingir esse patamar de excelência. Isso porque seus maiores concorrentes são produtores que, segundo ela, plantam e manejam seus frutos sem qualquer cuidado. “Existem muitos agricultores que não se importam com nada disso. Utilizam químicos não registrados, mão de obra escrava e qualidade que apenas os olhos veem. São maus produtores, mas não são responsabilizados por isso”, alerta ela.
Aí reside o maior benefício dos programas de certificação e rastreabilidade dos grandes atores do varejo. Antes mesmo de atingir o consumidor, essas iniciativas aumentam a justiça na competição entre produtores. Afinal, agricultores que não observam critérios sanitários, ambientais ou trabalhistas têm uma grande vantagem em relação aos honestos: seus preços finais são muito menores. Com toda a economia que fizeram ao longo da cadeia, praticam competição desleal com seus pares. “Eles visam ao lucro, mas sem responsabilidade. E há uma diferença de preço grande quando se produz com altos padrões”, explica Herlene.
Assim, à medida que as redes privilegiam a compra de parceiros conhecidos por sua conformidade com os padrões de qualidade, vão excluindo do mercado os maus produtores. Herlene sabe bem o que isso significa. Está entre as primeiras a ser incluída num desses programas e toma tantos cuidados em seus bananais que até dá palestras e treinamento para funcionários das redes.
No vocabulário de Herlene, ser responsável é saber de onde vêm as mudas e como foi o preparo do solo, preocupar-se com o meio ambiente, descartar corretamente o lixo de agrotóxicos, observar a jornada trabalhista de seus empregados, garantir atendimento dentário, certificar-se de que os filhos dos lavradores estão na escola e suas casas têm esgoto e banheiro. Com uma lista dessas de preocupações, não é à toa que hoje ela encabece os quadros de fornecedores de grandes redes varejistas. “Eles me descobriram e isso me ajudou muito”, comemora.
Varejo
Experiências como a de Herlene ajudaram a definir os programas que hoje começam a beneficiar o público, por meio de produtos com garantia de origem. Pioneiro no Brasil em ações desse tipo, o Carrefour desenvolveu o selo Garantia de Origem há mais de dez anos, mas só recentemente intensificou a publicidade sobre a iniciativa, para sensibilizar a clientela. Em 17 de dezembro de 2010, a rede lançou o site http://www.garantiadeorigem.com.br, onde o consumidor pode inserir o código dos produtos que estão no programa e obter informações sobre todo o trajeto dos alimentos, desde a fazenda até sua casa.
Num primeiro momento, isso valerá para algumas linhas de carne bovina, camarão e frango caipira. Produtos suínos também serão incluídos, inicialmente em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, com expansão para todo o país a partir do primeiro semestre de 2011. Até que isso aconteça, a intenção da rede é que 23 fornecedores, que produzem 149 itens diferentes, estejam adaptados à nova tecnologia.
Na opinião de Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade do Grupo Carrefour, iniciativas como essa ainda são incipientes no Brasil, mas estão entrando em voga à medida que a população mais jovem ingressa no mercado de consumo. “A responsabilidade de atestar a origem de determinado produto recai sobre o varejo. Nós somos o último elo da cadeia antes do consumidor. Por isso, identificar essa origem passa a ter dimensão importantíssima”, avalia.
No concorrente Pão de Açúcar, o foco do programa de rastreabilidade são as carnes da marca própria Taeq e a linha FLV (frutas, legumes e verduras). Desde junho de 2010, a certificação de origem da carne recebeu um aporte tecnológico importante, o chamado selo 2D. Usando um aparelho de celular smartphone com software específico, o consumidor pode fotografar a imagem, que se assemelha a um código de barras, e receber informações sobre todo o percurso da carne, direto em seu telefone. Uma alternativa para quem preferir tecnologias mais acessíveis é conferir o site http://www.qualidadedesdeaorigem.com.br. Lá, é possível inserir o código alfanumérico presente no selo e ter acesso aos mesmos dados.
Para os produtos FLV, a abordagem do programa restringe-se a questões sanitárias, especialmente a verificação de presença de resíduos de agrotóxicos nos alimentos. Segundo Leonardo Miyao, diretor comercial da área, a ação começou a ser desenhada em 2002, quando foram constatados traços de químicos acima do permitido em alguns produtos. Desde então, o grupo investiu R$ 4 milhões em análises. Uma parcela desses custos é encargo do fornecedor. De acordo com Miyao, os critérios do Pão de Açúcar chegaram até a influenciar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que hoje pesquisa as mesmas 256 moléculas de substâncias químicas nos alimentos que o grupo estabeleceu como padrão.
Na visão do executivo, o programa melhorou a relação entre o varejo e os fornecedores. Isso ocorre porque, com base nos resultados das análises, a rede criou um ranking de desempenho, que indica quem são os parceiros mais atentos aos níveis de resíduos. Assim, é possível planejar melhor o volume de negócios entre as duas partes, pois os agricultores sabem com antecedência quanto produto deverão entregar ao varejista.
“Esse processo nos levou a um ganho de qualidade muito grande. Meus fornecedores aprenderam a usar os agrotóxicos”, afirma Miyao. Dessa maneira, o índice de rejeição de produtos caiu significativamente, o que significa uma queda no risco de escassez nas prateleiras. “Eu ganho dinheiro com isso. Uma maior conformidade dos produtos é sinônimo de abastecimento. Para o fornecedor, é garantia de venda feita. E queremos que o programa diga para o consumidor o que ele quer saber”, arremata ele.
Em relação a questões socioambientais, a rastreabilidade de FLV do Pão de Açúcar ainda não adotou mecanismos de verificação. Apesar da publicação de listas de grandes desmatadores e de áreas embargadas por problemas ambientais, além do cadastro de empregadores que utilizaram mão de obra escrava, disponibilizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, Miyao considera que os indicadores ainda são insuficientes. “Estamos estudando o tema. Para não cair num vácuo, temos de poder verificar todos os itens”, justifica.
Com o programa Qualidade Selecionada, Origem Garantida, anunciado em agosto de 2010, o Walmart Brasil também apresenta suas estratégias de transparência quanto à origem dos produtos que comercializa. No endereço http://walmart.rastreabilidadeonline.com.br, os clientes da rede podem checar o trajeto das carnes da marca própria Campeiro, primeira a se adequar à iniciativa.
No Walmart, a ação faz parte do Pacto pela Sustentabilidade, firmado com seus principais fornecedores, que visa à preservação da Amazônia. Pelo acordo, a empresa monitorará as ações de toda a cadeia de abastecimento, no tocante a emissões de gases de efeito estufa, à comercialização de produtos que contribuam para o desmatamento da região amazônica e à assinatura ou não do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – tanto Walmart como Carrefour e Pão de Açúcar são signatários.
Além da carne bovina, o Walmart tem metas ousadas no que diz respeito à cadeia de pescados. Até 2013, o grupo pretende ter identificação de origem de 100% de seus fornecedores, além de estimular a pesca artesanal. “Entendemos que a sociedade está aberta e disposta a adotar o uso de produtos mais sustentáveis e, assim, fornecer o máximo de informações sobre como eles foram produzidos ou, no mínimo, sua origem, é fator preponderante para que as pessoas possam tomar decisões e incorporar essa questão no cotidiano”, afirma Felipe Zacari, gerente de Sustentabilidade do Walmart.
Diante dessa percepção, e não apenas para o caso do grupo, é possível vislumbrar voos mais altos num futuro não tão distante. “É razoável pensar que produtos certificados, com garantia de origem e com processos produtivos rastreados, tendem a ter maior destaque no médio e longo prazo, já que permitem que as decisões de compra sejam baseadas em fatos. Além disso, quanto mais produtos, fornecedores e redes adotarem essa prática, maiores serão a oferta e a qualidade colocadas à disposição dos consumidores”, conclui ele.