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Para adotar é preciso amar
por Silvia Kochen
Paivi Elina Erola Tikkanen é finlandesa, mas mora no Brasil desde 1982. Veio para cá por causa do marido, que é médico, brasileiro descendente de finlandeses. Aqui teve dois filhos e, como não conseguiu revalidar seu diploma de enfermeira, dispunha de muito tempo livre. Ela começou, então, a fazer trabalho voluntário em orfanatos e nutria o desejo de adotar uma menina. Porém, se apaixonou por Luis Henrique, o filho adotivo que ela conheceu há 15 anos e que é chamado pelo apelido de Gugu. “Foi amor à primeira vista”, diz.
Gugu era uma criança saudável de três meses de idade, abandonada pela mãe, que tinha problemas com drogas, quando Paivi o conheceu. Ela, então, levou sua família toda para vê-lo, “mas ninguém entendeu por que eu queria mais um filho”, conta. Alguns dias depois, porém, quando voltou ao orfanato, o bebê não estava mais lá, pois tinha sido levado pela avó.
Em casa, quem ficava cuidando do bebê era a irmã de quatro anos, pois a avó trabalhava fora. Paivi comprometeu-se então a ajudar no sustento do garoto, mas, mesmo assim, aos cinco meses ele voltou para o orfanato. Foi então que ofereceram a adoção do menino a Paivi. Ela e o marido conseguiram a guarda provisória e levaram a criança para casa.
Gugu foi crescendo, mas demorava a aprender a andar. “Achávamos que a dificuldade se devia ao fato de a mãe ter usado drogas”, conta Paivi. No entanto, os exames médicos revelaram que o menino tinha distrofia muscular de Duchenne. Essa enfermidade, de origem genética, é caracterizada pela degeneração progressiva dos músculos, inclusive o diafragma e o coração, que com o tempo vão perdendo a função, razão pela qual as vítimas da doença não ultrapassam os 20 anos de idade.
Mesmo assim, Paivi adotou o menino. A princípio a mãe biológica relutou em concordar com a adoção, mas acabou aceitando ao constatar que Paivi teria melhores condições para cuidar dele. Desde então, as duas famílias de Gugu, a adotiva e a biológica, se tornaram amigas e hoje convivem muito bem.
Luis Henrique, porém, só aprendeu a andar com um ano e meio e nunca conseguiu se vestir sozinho. Aos oito anos, parou de andar. Hoje, o menino depende de cadeira de rodas, o que levou a família a adaptar carros para transportá-lo. Há algum tempo, ele teve uma pneumonia que durou seis meses. Recentemente, sofreu uma parada respiratória, mas como Paivi é enfermeira conseguiu reanimá-lo.
Apesar de todos esses problemas, Paivi não se arrepende de ter adotado a criança. “Ele tem um sorriso lindo, e sua missão neste mundo é cativar as pessoas, mostrar a elas que é possível ser feliz com pouco”, afirma. Ela conta que o filho adotivo não considera que tem algum problema, diz apenas que não tem força. “Ele me passou uma experiência de vida que pouca gente tem.”
Dois a três anos
A história de Luis Henrique, porém, é exceção, não a regra. “O adotante brasileiro faz muitas exigências, e a maioria quer meninas brancas, recém-nascidas e saudáveis”, diz o desembargador Antonio Carlos Malheiros, titular da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). Quem só aceita uma criança com essas características está sujeito a uma demora de dois a três anos, já que há uma fila para adoção. Entretanto, há cerca de 7 mil crianças no Brasil esperando por adotantes e sem ter quem as queira porque são mais velhas, geralmente meninos negros, com irmãos ou com algum problema de saúde.
Como os brasileiros candidatos a adotantes preferem crianças loiras e de olhos azuis, era comum pessoas de vários locais se inscreverem na fila de adoção em tribunais do sul do país, onde predominam grupos étnicos com essas características. Por isso, em 2008 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu criar o Cadastro Nacional de Adoção, que unifica as informações sobre pretendentes e crianças disponíveis para adoção. O objetivo é disciplinar a “fila” e permitir que crianças de todo o país possam encontrar famílias que as acolham.
Malheiros explica que a legislação que rege a adoção no Brasil foi reformulada recentemente para se adequar ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. A Lei de Convivência Familiar, como é chamada a lei 12.010/09, dá prioridade à permanência da criança com a família biológica, mas quando isso não é possível o poder familiar é suspenso, ela é levada para um abrigo e, depois de algum tempo, colocada para adoção. Na maior parte das vezes, as crianças ficam no abrigo “para sempre” porque dificilmente se enquadram no padrão de exigência dos adotantes.
Ele explica que há uma crença de que as meninas dão menos trabalho, e que recém-nascidos não têm passado, o que evitaria problemas. No caso de irmãos, a lei pede empenho em mantê-los juntos, mas quando as condições econômicas impedem que o adotante fique com mais de uma criança, ele deve se comprometer a fazer com que seu filho visite os irmãos para manter o vínculo da família biológica.
Segundo Malheiros, boa parte dos adotantes está despreparada, o que pode mais tarde causar problemas, como o de “devolução” de crianças adotadas. O desembargador é categórico ao afirmar que isso só é possível quando a criança está sob a guarda provisória do candidato a adotante, uma fase que constitui uma espécie de test drive, feito enquanto se procede aos trâmites burocráticos necessários para a adoção de fato. “Não se devolve um filho adotado”, declara Malheiros, “a não ser em casos muito excepcionais; por exemplo, quando o adotante tem uma doença grave, está desenganado, e não quer privar a criança da oportunidade de crescer no seio de uma família.”
Ainda assim, há muitos casos de devolução, e o mais grave é que isso provoca um trauma na criança, que dificilmente supera o sentimento de rejeição. Por essa razão, tribunais de todo o país começam a condenar pais adotivos que devolvem os filhos à guarda do Estado ao pagamento de indenização a eles por danos morais. Na opinião do desembargador, esse tipo de problema acontece quando os pais adotivos buscam crianças para tentar formar uma família segundo o modelo de comercial de margarina (totalmente irreal), ou quando o casal tem como objetivo salvar o casamento, ou ainda quando o adotante está à procura de um remédio contra a solidão. “Para adotar é preciso amar, acima de tudo”, diz.
Condições essenciais
A psicóloga e psiquiatra Maria Antonieta Motta, coordenadora do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp, uma organização não governamental criada há oito anos para dar apoio a quem adotou ou pretende adotar), diz que há muitas devoluções de crianças – que acontecem, principalmente, por despreparo dos candidatos a pais –, embora não constituam a maioria dos casos. “Muitos dos pretendentes chegam aqui com uma série de questões, como qual deve ser a forma de contar à criança sua condição de adotada, como trabalhar com a adoção dentro da família extensa ou como lidar com isso socialmente”, diz Maria Antonieta. Ela acrescenta que existe preconceito social contra o adotado, porque se acha que a adoção é um caminho de segunda classe para se constituir uma família. “Há receio do peso dos laços de sangue porque quando o adotado faz algo errado, ainda se busca explicação na herança biológica.”
Já uma criança que é devolvida fica com um sentimento de rejeição difícil de superar. Não raro, fica estigmatizada e acaba sendo devolvida mais de uma vez. O mais surpreendente é que, muitas vezes, isso acontece depois de anos de convivência com a criança, frequentemente quando ela entra na adolescência. Maria Antonieta lembra um caso que ocorreu depois de 15 anos.
“As devoluções acontecem quando não há mobilização afetiva dos pais adotivos, quando eles não acolhem de fato a criança”, analisa. “As pessoas buscam a adoção pelos mais variados motivos: porque são inférteis, porque um filho morreu e querem fazer uma espécie de ‘reposição’, porque buscam um herdeiro... A principal motivação, no entanto, deveria ser a possibilidade de oferecer uma família à criança”, afirma a psicóloga.
Os motivos alegados para a devolução são vários: dificuldades de relacionamento, choro excessivo, acusações de furto ou de algum mau procedimento. “Eles pensam que vão pegar uma criança e moldá-la de acordo com o que acham bom, mas nem sempre é o que acontece, mesmo com um recém-nascido. Não se pode esquecer que ele teve uma vida uterina, passou por uma ruptura com a mãe biológica e tudo o mais”, lembra Maria Antonieta. Ela garante, porém, que até uma criança mais velha pode superar vivências ruins por meio do afeto.
A filha de Lígia Valéria Maranhão Pereira, Carolina, de 9 anos, demonstra como o afeto funciona na adoção. “Não tenho ciúme dos ‘irmãos’ de quatro patas, pois sei que sou atendida 24 horas por dia”, diz Carolina. Lígia tem uma filha adotiva e 45 cães. Ao sair de um casamento de cinco anos, ela decidiu ter filhos e começou a realizar exames para fazer uma inseminação artificial, mas viu-se impossibilitada de fazer o tratamento hormonal necessário ao descobrir que estava com câncer de mama. Lígia tratou-se e, recuperada, resolveu adotar uma criança.
Depois de um ano e meio de espera na fila, foi-lhe oferecida a guarda de duas gêmeas. “Quando vi as duas, entrei em pânico, pois achei que não daria conta”, lembra. Ao olhar para o lado, viu Carolina, um bebê de nove meses que “tinha cara de santa, não era manhosa, nem birrenta, nem chupava chupeta...” Com o tempo, Lígia descobriu que Carolina é uma criança normal, levada, moleca, que sobe em árvore... A menina, por sua vez, diz que ficou até os 6 anos sem entender o que era ser adotada, pois não lhe faltava nada. A “ficha caiu” só na hora em que a escola pediu o desenho da família.
Avaliação correta
Leila Dutra de Paiva, psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo, explica que atualmente os pedidos de adoção são avaliados a partir de um estudo psicossocial, pois quanto mais preparados os candidatos a pais, menor a chance de insucesso. Leila, que também é professora de psicologia jurídica da Universidade Mackenzie, diz que o maior problema no processo de adoção é a pressa dos pretendentes, que querem resolver tudo logo. “É preciso tempo para elaborar o significado de uma adoção no momento da vida em que ela acontece”, diz.
A avaliação, que antes se limitava às condições financeiras da família adotante, hoje contempla também fatores psicológicos, e muitos candidatos são considerados inaptos a adotar por terem expectativas irreais em relação à criança. Leila dá como exemplo os casos, já mencionados, de pessoas que buscam um bebê para substituir um filho falecido ou que tentam salvar o casamento. As crianças também têm expectativas, como a de morar em uma casa com piscina, mas elas “têm muito mais facilidade para aceitar a realidade”, explica a psicóloga.
Apesar disso, Leila acredita que a situação está mudando para melhor. Ela explica que hoje a devolução de filhos adotados é menos frequente e, à medida que o preconceito vai sendo banido da sociedade graças ao trabalho da mídia, crianças com mais idade estão ganhando a chance de adoção no Brasil. “Antigamente, com 3 ou 4 anos de idade já se dizia que era uma ‘adoção tardia’; hoje só se considera assim lá pelos 9 anos”, avalia.
A psicóloga Anna Christina Cardoso de Mello, coordenadora da equipe de gestão, controle e estatística em adoção da Vara de Infância e Juventude do Fórum de Pinheiros, na capital paulista, revela que nos últimos quatro anos a comarca recebeu 96 crianças para adoção, das quais 69 já estão acomodadas em famílias, adotadas ou em processo de adoção. As 27 restantes têm mais de 9 anos e aguardam adotantes.
Como normalmente há pouca chance de conseguir uma família no Brasil por causa da idade, essas crianças costumam ser encaminhadas para a adoção internacional, já que os estrangeiros aceitam crianças maiores. Nesses casos é feito um acompanhamento por dois anos e depois disso a Justiça brasileira não sabe o que acontece. Anna Christina diz que há notícias de alguns casos lá fora que dão errado, em que a criança acaba em um abrigo, mas não existe um estudo sobre o assunto. Ela lembra que as próprias pessoas muitas vezes só saberão se são bons pais depois de adotar. Apesar disso, há mais complicações ainda nas famílias biológicas que abandonam seus filhos.
Filho do coração
William* nunca conheceu sua mãe biológica, que tinha 16 anos quando ele nasceu. Seu pai adotivo, Francisco*, pensava em adotar uma criança em 1990, época em que William nasceu. Ele estava ao lado de uma colega de trabalho, que tinha adotado um bebê em Santa Catarina, quando ela recebeu o telefonema de um juiz oferecendo-lhe mais um recém-nascido. Francisco sentiu que essa era uma oportunidade que tinha “caído do céu”, e imediatamente se ofereceu para ficar com o bebê.
Francisco ligou para a esposa, Ângela*, e perguntou o que ela achava de adotar um bebê. “Tremi na base porque seria uma mudança radical na minha vida”, diz Ângela. Porém, ela se entusiasmou com a perspectiva, assim como sua filha Mônica*, de 12 anos. O outro filho, Carlos*, de 13 anos, conta que ficou surpreso com a ideia, proposta de supetão, mas acabou por simpatizar com ela depois de pensar um pouco.
Ângela ligou a um parente que tinha um filho de um ano pedindo roupinhas e mamadeira, e já na manhã seguinte, uma Sexta-Feira Santa, a família foi buscar o bebê. Pegaram a estrada até Porto União, em Santa Catarina, aonde chegaram tarde da noite. No sábado de manhã, o juiz foi procurá-los e os levou ao hospital onde estava a criança. “Quando nos mostrou o bebê, senti na hora que era meu filho”, diz Ângela.
Como era uma cidade pequena, tudo se arranjou facilmente. O juiz ligou para o responsável pelo cartório, que abriu o estabelecimento para fazer o termo de guarda. Em seguida, o magistrado levou todos a sua casa para que pudessem dar um banho no recém-nascido. No domingo pela manhã, a família, com seu mais novo integrante, pegou a estrada de volta para São Paulo.
Ao chegar, enfrentaram as reações da família. “Um de meus irmãos disse que eu era louca, mas outra irmã cedeu todo o enxoval, inclusive o carrinho, dos filhos dela, que já estavam crescidos”, conta Ângela. Os colegas de trabalho do casal também fizeram uma vaquinha para as coisas do bebê e, assim, o novo filho da família “nasceu” com tudo de que precisava. Ângela, no entanto, teve de esperar ainda nove meses, angustiada, pela formalização da adoção, que só aconteceu após a assinatura do termo de desistência da criança pela mãe biológica.
Apesar de crescer sem ela, William teve duas mães e dois pais. Como Ângela e Francisco trabalhavam o dia todo, os irmãos mais velhos cuidavam do bebê. “Mônica dava mamadeira e trocava fraldas, enquanto Carlos ficava filmando tudo, como se fosse o pai”, conta Ângela. Nunca houve diferenciação entre os três filhos. Foi por acaso que Ângela contou a William que ele era adotado. Aos cinco anos, quando sua professora estava grávida, o garoto disse, durante o banho, “eu saí daí”, apontando a barriga de Ângela. Ela respondeu: “Você não veio da barriga da mamãe, você nasceu do coração da mamãe”.
Já o próprio William conta que só aos 7 anos soube que era adotado, quando os pais o chamaram para lhe dizer isso. “Contudo, na hora não dei muita importância ao fato, pois sempre tive todo o apoio de que precisava.” Apesar disso, na infância e no início da adolescência ele evitava falar de sua condição aos colegas, “por medo de ser ‘zoado’”. Hoje, ele diz não se importar e ter orgulho dos pais; mesmo assim, só a namorada e alguns amigos mais próximos sabem que é adotado.
Atualmente, aos 21 anos, ele pensa em como sua genética vai moldá-lo no futuro – se ficará careca ou com fartos cabelos, se terá diabetes ou outro tipo de doença hereditária –, mas “nada que incomode muito”. Apesar de ter curiosidade acerca de sua mãe biológica, por enquanto ele não pretende procurá-la. Seus planos futuros incluem ter filhos e também adotar uma criança.
* Nomes fictícios.